A literatura relacionada com temas aéreos não se interessa pelos
elementos centrais do vôo – regularidade, segurança, velocidade,
custos. A terminologia técnica lhes é indiferente. Seu interesse é
despertado pela aventura estética, mais do que pela utilidade e
pragmatismo. Liberada da vida e da morte, a literatura se propaga em um
ritmo ainda mais acelerado que a própria aviação, se apoderando das
façanhas e das tragédias, mas, sobretudo, da ânsia humana por voar.
O desejo de voar é uma antiga aspiração humana presente nos sonhos
ancestrais. Principalmente na infância e adolescência, é comum sonhar
com o vôo e a queda. Os chamados “sonhos de vôo” que Freud interpretou
como uma expressão do desejo oculto das atividades sexuais (“Uma
lembrança de infância de Leonardo da Vinci”) e Havelock Ellis estudou
do ponto de vista das sensações respiratórias, não possuem um vínculo
direto com a aviação, mas ajudam a explicar o porque da rápida
incorporação e proliferação do tema da aviação na literatura. Ingold
(1978) analisou a literatura européia de aviação entre 1909 e 1927 e
encontrou uma vasta produção na França, Alemanha, Itália, Rússia,
Inglaterra, Áustria e Hungria. Produção composta por autores já, então,
conhecidos: Marinetti, Kafka, D’Annunzio, Rilke, Musil, Proust, Wells,
Von Hofmannsthal, Chlebnikov, Jünger, Zweig, entre outros.
Em abril de 1909, foi produzida a primeira fotografia cinematográfica
tirada de cima de uma máquina mais pesada que o ar. Trata-se de um ano
de grande importância simbólica para a modernidade cinética: Marinetti
publica o manifesto “O futurismo”, em Paris, Blériot atravessa o Canal
da Mancha num aeroplano, o engenheiro eletrônico Marconi é premiado com
o prêmio Nobel de Física. No mesmo ano, Franz Kafka veraneava com seus
amigos Max e Otto Brod, em Riva, quando tomou conhecimento do 1o
Circuito Aéreo Internacional de Brescia. Tinha 26 anos e nunca havia
visto um aeroplano. Aparentemente, Max Brod lança-lhe um desafio para
saber quem seria capaz de escrever o melhor artigo sobre aquele evento
e, assim, Kafka escreve “Os aeroplanos em Brescia”, publicado na Bohemia
em 28 de setembro de 1909. O artigo resume o clima de efervescência dos
eventos cinéticos. No Circuito, além de aeroplanos, havia trens,
ciclistas, carruagens, automóveis e uma massa estimada em 50 mil
pessoas, cuja presença a polícia tentava controlar. O campo de aviação
era enorme e não oferecia uma estrutura de entretenimento comum em
outros eventos desportivos. Em particular, Blériot chamava a atenção do
público quando levantava vôo com seu monoplano.
Poucos meses depois, em fevereiro de 1910, o famoso escritor Gabriele
D´Annunzio, que também participou como espectador do Grande Prêmio de
Brescia e a quem foi concedida a honra de voar, oito minutos, com o
piloto americano Curtiss, publicou Forse che sì, forse che no (Talvez sim, talvez não) romance aéreo de quinhentas páginas.
A modernidade cinética questiona a tradição e se expande por intermédio
dos objetos da circulação, principalmente o automóvel e o aeroplano.
Depois do automóvel, o aeroplano se transforma na nova musa mecânica do
futurismo. No “Manifesto técnico da literatura futurista” (11/05/1912),
F.T Marinetti parte da metáfora aérea para pôr em dúvida o valor do
passado: “No avião, sentado sobre o tanque de gasolina, com o ventre
aquecido pela cabeça do aviador, eu senti a inanidade ridícula da velha
sintaxe herdada de Homero”. O futurismo tentará criar novas formas
artísticas por intermédio da metáfora do vôo, substituindo a retórica
romântica do pássaro pela do avião em movimentos acrobáticos e compondo
aeropoemas e aeropinturas. Enquanto Fedele Azari se definia como um
“piloto aviador futurista”, Marinetti organizava um grande
“aerobanquete” na Casa Del Fascio, onde as mesas eram colocadas em
ângulos diversos passando a impressão de um aeroplano e o appetizer se chamava “Aeroplano picante”.
O avião representa o novo e como tal é incorporado com força no léxico
das vanguardas. Apollinaire encarna o espírito internacionalista do avant-garde
em seu poema “Zona” (Alcools, 1913), levando ao extremo os processos de
fragmentação e simultaneidade. Apollinaire reescreve a imagem cristã da
Ascensão tomando o ponto de vista do vôo mecânico. Já se vivera
demasiadamente na antiguidade dos gregos e romanos: havia chegado a
época dos hangares do campo de aviação. Cristo se eleva onde nenhum
aviador se aventura e é o recordista do mundo na altura, mas o século
tem a forma do pássaro metálico e ascende como Jesus, enquanto o Diabo
em seu abismo levanta os olhos para vê-lo.
O
que Apollinaire poeticamente sugere - a importância do aeroplano - é
aquilo que os porta-vozes da modernidade cinética não deixam de
enfatizar. Em 1914, Harry Harper e Claude Grahame-White publicam The aeroplane
e antecipam a unificação do planeta pelo avião. Embora as tecnologias
do transporte, primeiramente, evidenciem o progresso técnico, e apesar
do risco de acidentes, a aviação também podia ser utilizada para
difundir a fé, já que acelerava os deslocamentos e permitia o alcance
de regiões remotas. Em 1920, Benedito XV transformou Nossa Senhora de
Lorette em padroeira das forças aéreas italianas e de todos os
aviadores. As metáforas religiosas se adaptaram ao avião: tanto Cristo
quanto o aviador deviam “elevar-se acima das coisas da terra”; assim
como os aviões evitavam as tempestades, os jovens deviam evitar a
companhia dos ímpios, era arriscado voar sem a luz da fé; o pára-quedas
simbolizava o arrependimento e a confissão.
As máquinas de voar se difundem na produção cultural: romances, contos,
poemas, caricaturas, pôsteres e fotografias; na pintura de Robert
Delaunay, Malevich e Henri Rousseau; nos escritos de Le Corbusier e nos
retratos do Duce.
Em 1924, Blaise Cendrars oferece uma conferência, em São Paulo, sobre
as tendências gerais da estética contemporânea e sustenta que o avião
modelo Spad, exposto no último Salão da Aviação, é a mais bela das
criações da engenharia, superior a qualquer obra de arte moderna.
Cendrars nunca havia visto uma obra de arte tão sobriamente poderosa:
além disso, era possível entrar nela e voar.
Surge a primeira antologia do vôo, The poetry of flight,
editada em 1925 por Stella Wolfe Murray. O aeroplano e o aviador são
figuras consagradas na imaginação dos anos de 1920, sendo o vôo
motorizado uma parte integral das visões coletivas e individuais do
futuro. O escritor guatemalense Miguel Ángel Asturias, que nunca pôde
andar de bicicleta, decide aprender a pilotar na França, onde havia
inúmeras escolas. As mulheres não estão excluídas da cultura da
aviação. Lady Health e Stella Wolfe Murray publicam, em 1929, Woman and flying,
para demonstrar a participação feminina na aviação civil. As próprias
aviadoras narram suas experiências e selecionam exemplos históricos de
mulheres interessadas na prática do vôo. É, particularmente,
interessante o capítulo dedicado aos novos aspectos da aviação e as
oportunidades que a mesma podia oferecer às mulheres.
A relação entre mulheres e tecnologia levanta a questão do gênero
sexual. No início da aviação era comum considerar que a mulher não
tinha capacidade para dominar uma máquina de voar, visto que se tratava
de um esporte masculino. Não apenas estava em jogo o risco, mas a
própria feminilidade. Harriet Quimby, a conhecida pioneira
norte-americana, preocupava-se com sua aparência e demonstrou que não
existia nenhuma incompatibilidade entre o vôo e a feminilidade. Foi uma
“mulher-espetáculo” que em 1912 cruzou o Canal da Mancha e, no mesmo
ano, morreu durante uma exibição aérea. Muitas outras a seguiram,
culminando com Amélia Earhat. Em todo caso, as mulheres tiveram,
freqüentemente, que justificar seu vínculo com a tecnologia da
mobilidade.
Guillermo Giucci é professor do Instituto de Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Texto traduzido Leda Maria da Costa
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