Em
2001, a Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas¹ requereu diagnósticos, desafios e propostas aos países participantes da “III
Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
Intolerância Correlata”, realizada em Durban, África do Sul. No Brasil, foi
realizada uma série de discussões que culminaram na realização da Conferência
Nacional Contra o Racismo e a Intolerância, realizada no Rio de Janeiro em oito
de julho do mesmo ano. Os trabalhos foram organizados em 13 eixos temáticos:
Raça e Etnia; Cultura e Comunicação; Religião; Orientação Sexual; Educação,
Saúde e Trabalho; Acesso à Justiça e Defesa dos Direitos Humanos; Questão
Indígena; Necessidades Especiais; Gênero; Remanescentes de Quilombos;
Xenofobia; Migrações Internas e Juventude. A Carta do Rio, como ficou conhecido
o documento síntese dessa conferência, tornou-se a base do Plano Nacional de
Combate ao Racismo e à Intolerância, bem como o fio condutor do documento
oficial brasileiro apresentado na III Conferência de Durban.
O
relatório final do eixo temático “Raça e Etnia” ficou sob a responsabilidade de
Edna Roland, a quem caberia também a virtuosa tarefa da relatoria geral em
Durban. Ali, encontra-se um amplo leque de reivindicações de diferentes grupos
étnicos que compõem a sociedade brasileira, dentre os quais ciganos, índios,
negros e judeus. Conforme constatação de pesquisa realizada por Verena Aberti e
Almicar Araújo Pereira²,
foi no interior do repertório de proposições definido nesse eixo que, pela
primeira vez em documento oficial, surgiu a questão das cotas. No documento
foram inseridos os seguintes encaminhamentos:
* Que sejam
implementadas políticas de ação afirmativa na área de educação como instrumento
fundamental de promoção da igualdade.
* Que se estabeleça
cotas para negros na universidade.3 Assim, enquanto componente do debate público
nacional, a questão das cotas remonta ao contexto de preparação para a III
Conferência Contra o Racismo, sobretudo pela iniciativa de integrantes do
movimento negro. Ao relembrar os instantes que antecederam a Conferência e aagitada
fase de elaboração do relatório a ser apresentado pela delegação brasileira no
evento, a relatora Edna Roland afirmou:
Eu não sei quantas páginas o relatório tem, mas
tem esta linha, ‘cotas para negros nas universidades’, que entrou no último
minuto, que ele pôs no documento. Quando o governo brasileiro tornou público o
relatório para a mídia, tudo o que a mídia queria falar era sobre cotas para
negros na universidade. E aí, antes de ir para Durban, quando já tinha sido
anunciado que meu nome ia ser indicado, o pessoal da imprensa vinha falar
comigo e só queria falar sobre cotas”.4
Naquele
contexto, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), de 1999, o índice de negros(as) com mais de 25 anos com
ensino superior era de cerca 2,3%, mesmo índice da população parda, enquanto que
a população branca, na mesma faixa etária, atingia 9,8% de titulados. Mediante
diagnósticos como esses, movimentos sociais e intelectuais a eles vinculados
formularam e difundiram propostas acerca da promoção da igualdade racial no
ensino superior brasileiro. Deste então, o assunto cotas para negros nas
universidades e ações afirmativas ganharam dimensões significativas, não
raramente desdobrando-se no delineamento de políticas públicas. Neste percurso,
em 2005, o debate foi impulsionado pela apresentação do projeto de lei que
instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, aprovado pelo Congresso Nacional, em
20 de julho 2010 (Lei 12.288).
Incitada,
a comunidade acadêmica não se absteve da discussão. Intelectuais de todas as
partes do Brasil dividiram-se entre favoráveis e contrários ao Estatuto e ao
sistema de cotas. Manifestos de repercussão nacional e midiáticos foram
lançados. Os riscos de se criar um Estado racial ou do comprometimento com a
qualidade do ensino superior figurava (e figura) entre os argumentos contrários
expostos em documentos como “Todos têm direito iguais na república democrática”
(30 de maio de 2006) e “Cidadãos anti-racistas contra as leis raciais” (2008).
Por outro lado, os que defenderam (e defendem) os mecanismos de ação
afirmativa, articulados aos movimentos sociais, divulgaram, entre outros, o
“Manifesto em favor da lei de cotas e do estatuto da igualdade racial” (03 de
julho de 2006). Para este grupo, as cotas raciais correspondem ao conjunto de
medidas necessárias para que o Estado brasileiro reconheça as injustiças
cometidas contra a população afrodescendente no período da escravidão e de sua
herança histórica. Não
obstante o legítimo debate entre acadêmicos, nesse mesmo período, as ações
afirmativas consolidaram espaço nas universidades públicas. Desde o pioneirismo
da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), reservando, ainda em 2001,
cotas para negros no acesso aos seus cursos. Neste ano, cerca de 70
universidades públicas (32 estaduais e 38 federais) adotaram algum tipo de ação
afirmativa na forma de cotas raciais ou sociais. Em 10 anos, ações afirmativas
atenderam 330 mil cotistas, entre os quais 110 mil afrodescendentes! O Programa
Universidade Para Todos (Prouni) incluiu outros 440 mil afrodescendentes em
universidades privadas ou comunitárias.
Todavia,
muito embora se constitua como realidade no cotidiano do ensino superior
brasileiro, o tema é objeto de contestação judicial e encontra-se sob a análise
do Superior Tribunal Federal (STF). No sentido de subsidiar o voto dos
ministros, o STF convidou diversos segmentos sociais para apresentarem, em
audiência pública, os argumentos pró e contra cotas. Assim, nos dias 03, 04 e
05 de março de 2011, participaram representantes de diversos órgãos públicos,
movimentos sociais e universidades5.
No último dia do evento, experiências de
aplicação de políticas de ação afirmativa foram relatadas por representantes da
Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino
Superior; União Nacional dos Estudantes; Instituto Universitário de Pesquisas
do Rio de Janeiro; Universidade Estadual de Campinas; Universidade Federal de
Juiz de Fora; Universidade Federal de Santa Maria; Universidade do Estado do
Amazonas; e Universidade Federal de Santa Catarina. Os estudos apresentados
concluem que não há diferenças significativas do ponto de vista do desempenho
acadêmico entre cotistas e não cotistas6.
Ao mesmo tempo, alertam para a necessidade de programas especiais para
assegurar a permanência dos alunos carentes, os cotistas sociais ou raciais na
universidade até a conclusão do curso. É ocaso do
PNAES (Programa Nacional de Assistência Estudantil)7,
lançado em 2007 (Portaria Normativa n. 39, 13/12/2007), que prevê investimentos
na construção de moradias estudantis, auxílio alimentação, transportes e outras
ferramentas destinadas ao bem-estar dos alunos de universidades públicas
federais.
Enquanto
o STF não se pronuncia sobre a legalidade ou não das cotas, o IBGE indica
mudanças importantes no ensino superior brasileiro. Em 1999, 6,7% da população
brasileira com mais de 25 anos concluiu o nível superior. Desses, 9,8% da
população branca; 2,3% de negros e 2,3% de pardos. Em 2009, 15% da população
branca; 4,7% dos pretos e 5,3% dos pardos. Assim como aumentou o percentual de
afrodescendentes nas universidades, também aumentou o número de pessoas que se
autodeclaram pretas ou pardas. De tal modo que a população que se declarava
preta, que era de 5,4% em 1999, passou para 6,9% em 2009; enquanto os pardos
saltaram de 40,0% para 44, 2%; já a população branca, que era de 54% (1999), recuou
para 48, 2% (2009). “Provavelmente, um dos fatores para esse crescimento é uma
recuperação da identidade racial”, explica a Síntese de Indicadores Sociais
2010 do IBGE8.
Certamente, o intenso debate provocado pela questão das cotas desde seu
lançamento em documento oficial, em 2001, na Carta do Rio, foi decisivo tanto
para o aumento de matrículas de afrodescendentes em universidades, quanto para
afirmação da entidade dos afrodescendentes. Quiçá, tornou-se o veículo de maior
impacto nas discussões sobre a promoção da igualdade racial como fator de
direitos humanos.
Cleber
Santos Vieira é professor do Departamento de Educação e do Programa de
Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e Adolescência da Unifesp.
1 Sobre a compreensão os vínculos entre
ações afirmativas e direitos humanos ver: Piovesam, Flavia. Ações afirmativas
sob perspectiva dos direitos humanos. In: Santos, Sales Augusto dos (org.)
Ações afirmativas e combate ao racismo na América Latina. Brasília: MEC / Unesco,
2005. pp.35-45.
2 Alberti, V.; Pereira, A.A. A defesa das
cotas como estratégia política do movimento negro contemporâneo. In: Estudos Históricos, n.37, jan/jun, p.143-166,
2006.
3 Plano Nacional de Combate ao Racismo. Carta do Rio. Rio de Janeiro, 08 de
julho de 2001. http://portal.mj.gov.br/sedh/rndh/Carta%20do%20Rio.pdf.
4 Apud.
Alberti, V.; Pereira, A.A. op. cit.
p. 147.
5 Procuradoria Geral da República, Ordem dos Advogados do
Brasil, Advocacia Geral da União, Secretaria Especial de Políticas de Promoção
de Igualdade Racial, Secretaria Especial de Direitos Humanos; Ministério da
Educação; Fundação Nacional do Índio; Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada;
2ª Vara Federal de Florianópolis; Conselho Estadual de Desenvolvimento da
Comunidade Negra do Governo do Estado de São Paulo; Universidade de Brasília;
Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Universidade Federal do Rio de
Janeiro; Universidade Federal de Minas Gerais; da Faculdade Latino-Americana de
Ciências Sociais; Universidade de São Paulo; Instituto de Ensino Superior
Brasília; Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Pontifícia
Universidade Católica do Paraná. Pelas entidades dos movimentos sociais
participaram: Anape (Associação de Procuradores de Estado); Centro de Estudos
Africanos da Universidade de São Paulo; da CDH (Conectas Direitos Humanos);
Afrobras (Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento Sociocultural); Educafro
(Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes); Fundo Brasil de Direitos
Humanos; Conen (Coordenação Nacional de Entidades Negras); Geledés, Instituto
da Mulher Negra de São Paulo; Esquerda Marxista; Movimento Negro Socialista;
MPMB (Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro) e da Acra (Associação dos Caboclos e
Ribeirinhos da Amazônia).
6 Ver, por ex. Jaccoud, Luciana (org.). A construção
de uma política de promoção da igualdade racial. Uma análise dos últimos 20
anos. Brasília: IPEA, 2009; Velloso, Jacques. Cotistas e não-cotistas:
rendimento de alunos na Universidade de Brasília. Cadernos de Pesquisa, v.39, nº137, p.621-644, maio/ago, 2009.
7 Ver: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/portaria_pnaes.pdf
e Andifes. Plano Nacional de Assistência Estudantil, 2007.
8 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Síntese de indicadores sociais. Uma análise das condições de vida da sociedade
brasileira contemporânea 2010. (Estudos e Pesquisas – Informações demográficas
e econômicas, n. 28). Rio de Janeiro: IBGE, 2010.
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