"Só me
atemorizam meses de agonia, camas de hospital,a tez
embaçada, o olhar dos outros". A frase acima está
no livro A
Doença, uma experiência (Companhia das Letras,
1996), onde o
cineasta Jean-Claude Bernardet, mistura ficção e
realidade para descrever seus
primeiros meses depois que descobriu ser soropositivo. Vinte e cinco
anos
depois pode-se dizer que houve mudanças significativas em
relação ao impacto da
Aids na vida dos portadores do vírus,
diminuição da discriminação
explícita
que, um dia, fez com que tivessem que enfrentar ao mesmo tempo uma
doença que
sabiam fatal, o isolamento e, muitas vezes, o abandono. Hoje, por conta
dos
avanços no tratamento dos sintomas, a Aids não
é mais sinônimo de morte iminente,
entretanto, segue como uma doença sem cura fazendo com que
medos e mitos
continuem latentes.
A Organização Mundial da
Saúde (OMS) estima que, no
Brasil, existem 600 mil pessoas infectadas pelo vírus HIV,
das quais 200 mil
sabem que são portadoras. É fato que a Aids
deixou de ser uma doença dos
chamados "grupos de risco" ou associada, sobretudo, aos homossexuais
e usuários de drogas injetáveis, como no passado.
A relação entre homens e
mulheres, que era de seis para um na década de 80,
é hoje de dois para um e em
algumas regiões do país é equivalente.
Apesar dos números, é
provável que muitos ainda
desconheçam a condição de
soropositivos de pessoas próximas. Segundo Silvia
Bellucci, diretora do Centro Corsini referência
nacional no tratamento da Aids, os portadores do vírus HIV
que recebem
acompanhamento se mantêm relativamente equilibrados em sua
vida social, afetiva
e profissional, o que difere do quadro vivido pelos primeiros
portadores e
doentes. Entretanto, muitos pacientes vivem os mesmos
percalços de outrora,
variando apenas a intensidade. "Eles têm um enorme receio de
ter sua
condição revelada. Vivem uma
situação de alerta permanente, que pode aumentar
a
possibilidade do desenvolvimento da doença, se esses
pacientes não estiverem
sendo acompanhados adequadamente", diz.
Sentimento de culpa, rejeição e
preconceito também podem acompanhar os soropositivos. A
sociedade, por mais
informada que esteja, afirma Bellucci, ainda demonstra sua
incompreensão em
relação à
situação do portador. O preconceito e a
discriminação existem e, como
são atitudes politicamente incorretas, se manifestam de
forma “escondida”.
"A situação de quem tem HIV é
difícil de ser vivenciada e exige um
trabalho ininterrupto de vigilância física, mental
e espiritual, para que a
doença não se desenvolva", enfatiza.
O papel das ONGs
Boa
parte desse acompanhamento é feito nas organizações
de
apoio aos portadores de HIV, que passaram a ser locais
não apenas de orientação
psicológica aos pacientes, mas centros de reunião
de soropositivos
politicamente ativos, mais integrados à sociedade e
defensores de seus
direitos. "Se no passado os soropositivos eram vistos como
vítimas da
doença, hoje eles vivem com uma qualidade de vida muito
melhor, comportam-se
como protagonistas na luta contra o vírus", explica
José Carlos Veloso,
presidente do Grupo de Apoio à
Prevenção à Aids (Gapa). De acordo com
ele, os
medicamentos antiretrovirais utilizados desde 1996, com o surgimento
das
terapias combinadas, são muito mais potentes permitindo a
redução da
mortalidade e de doenças oportunistas. O tratamento da
primeira
geração de medicamentos exigia que o paciente
tomasse ao menos 16 comprimidos
por dia apenas para o controle do HIV, sem contar com os
remédios para as
doenças oportunistas, quando era necessário.
Hoje, um soropositivo tem que
tomar três ou quatro comprimidos por dia. Nos Estados Unidos
já há tratamentos
que exigem apenas um comprimido diário. Jean-Claude
Bernardet conta que já teve
problemas com efeitos colaterais, mas concorda que o tratamento
é bem mais
simples atualmente.
O coquetel para o tratamento da Aids é composto
por 16
tipos diferentes de medicamentos, separados por classes, sendo um deles
injetável, usado como última alternativa em
função da necessidade de ser
aplicado duas vezes ao dia. Cada paciente tem um acompanhamento
específico com
uma composição de medicamentos dessas classes,
mas normalmente o tratamento é contínuo
e exige disciplina para que os comprimidos sejam administrados a cada
12 horas.
Embora os efeitos colaterais associados tenham toxicidade mais baixa,
algumas
drogas provocam, de imediato,
náuseas,
diarréias, dores de estômago; enquanto outras
causam o que os médicos chamam de
efeito metabólico, como aumentar a incidência do
diabetes, doenças do coração,
perda de massa muscular, emagrecimento e mesmo deformidades decorrentes
do
acúmulo de gordura na região abdominal,
conhecidas como lipodistrofia.
Mário Scheffer, coordenador do Grupo pela
Valorização,
Integração e Dignidade do Doente de Aids (Grupo
pela Vidda), acredita que as
maiores dificuldades hoje são a adesão ao
tratamento e os efeitos colaterais,
presentes em cerca de 30% dos pacientes. Ele ressalta, entretanto,
outra
mudança importante no tratamento dos soropositivos:
"Atualmente, os
médicos preferem retardar o início do tratamento
para o momento em que se
verifica um aumento da quantidade de vírus no sangue; assim,
o paciente não
precisa mudar imediatamente sua rotina após o
diagnóstico e evita os efeitos
colaterais dos medicamentos", completa.
Para combater a doença o governo oferece,
gratuitamente, há
dez anos, os medicamentos para o tratamento dos pacientes,
graças ao Programa
Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e
Aids (PNDST/Aids). "O
grande trunfo do Brasil no tratamento contra a Aids é a
distribuição gratuita
de medicamentos pelo Sistema Único de Saúde
(SUS), que atende hoje 170 mil
pacientes", afirma Scheffer. Apesar de inegáveis, os
resultados do PNDST
ainda não livram os portadores das dificuldades de serem
atendidos pelo serviço
público. Há 20 anos atrás Bernardet
dizia: "O que vai me matar não é a
doença, é a rede que está se fechando
em volta de mim, salas de espera, os
corredores dos serviços públicos, o
médico de quem desconfio". Segundo
ele, ainda hoje o tratamento pelo serviço público
é difícil. "Os
soropositivos têm que fazer exames de sangue periodicamente e
isso, às vezes,
pode demorar de dois a três meses nos postos de
saúde ou hospitais públicos. Faço
minhas análises de sangue pelo convênio", admite.
Discriminação
no trabalho persiste
Desde o diagnóstico, Jean-Claude Bernardet não
escondeu
sua condição de soropositivo. Professor
aposentado da Escola de Comunicação e
Artes da USP, ele acredita que não sentiu tanto o impacto do
preconceito pelo
fato de atuar no meio universitário. "Bem antes de publicar
o livro, todos
já sabiam e me apoiaram", conta ele. Esse não
é, entretanto, a regra. O acesso
à informação foi importante para
diminuir o preconceito em relação a portadores
do vírus HIV, mas há ainda muitos casos de
discriminação, sobretudo no ambiente
de trabalho. Apenas no estado de São Paulo, existem
atualmente 170 ONGs de
apoio contra ações discriminatórias.
Elas oferecem serviços jurídicos de defesa
dos soropositivos prejudicados por seus empregadores, como os pedidos
de
reintegração ou de
indenizações. O Gapa recebe aproximadamente cinco
novos
casos de discriminação no trabalho por semana e
desde sua criação, em 1985,
acumula cerca de 3 mil reclamações desta
natureza. Já o Grupo pela Vidda
registra 15 casos por mês.
Além da legislação
trabalhista contra a discriminação em
geral, os soropositivos se apóiam na Lei Estadual 11.119,
que proíbe toda e
qualquer discriminação contra pessoas vivendo com
Aids, seja no aspecto
profissional, pessoal ou social. A Lei, de 12 de julho de 2002, de
autoria do
deputado Roberto Gouveia, do PT de São Paulo, pode levar o
infrator a processos
no âmbito administrativo, civil e criminal. Se praticada por
empresas ou
entidades de direito privado, a punição ocorre em
forma de multa, referente a
10 mil vezes o valor nominal da Unidade Fiscal do Estado de
São Paulo (UFESP)
vigente (equivalente a R$ 13,93 em 2006).
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