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Artigo
Por uma estética da psicanálise
Por Carlos Augusto Peixoto Junior
10/07/2006

Neste ano em que se comemoram os 150 anos do nascimento de Sigmund Freud, não deixa de ser relevante a necessidade de repensarmos a psicanálise, tal como ela veio se desenvolvendo desde os seus primórdios. Neste sentido, a proposta de uma estética da psicanálise se mostra extremamente valorosa. Não foram poucos os debates até os dias atuais a propósito da cientificidade da teoria e da prática psicanalíticas. O próprio Freud, desde o momento em que abandonava o campo da neurologia do século XIX já se colocava questões a esse respeito, confrontando-se com algumas das ciências mais bem estabelecidas à época, dentre as quais se destacavam a medicina e a psiquiatria. Mesmo se mostrando crítico com relação aos parâmetros científicos estabelecidos por essas ciências – principalmente no que dizia respeito ao tratamento da histeria – ele sempre se viu às voltas com a necessidade de situar a psicanálise entre os campos das ciências da natureza ou do espírito, optando em última instância pelo primeiro 1. Do seu ponto de vista, a psicanálise só sobreviveria num embate direto com o seu maior inimigo, a religião, e embora não tivesse negligenciado a importância da arte, a ciência sempre lhe pareceu a melhor arma para combater o discurso religioso. Mesmo se diferenciando de outros discursos científicos, parecia necessário que o discurso psicanalítico fundasse uma outra dimensão do saber científico para que, só então, viesse a se estabelecer como uma referência fundamental no domínio dos saberes ocidentais.

Desde Freud o debate em torno da cientificidade da psicanálise ganhou contornos diferenciados entre os seus discípulos. Na psicanálise inglesa, por exemplo, esta questão não parece ter obtido um destaque maior. Os analistas desta escola se mostraram mais preocupados com o desenvolvimento de novas modalidades da técnica – das quais surgiram algumas inovações conceituais – do que com o estatuto propriamente científico da psicanálise. Já entre a escola francesa, foi possível notar, principalmente sob a influência de Jacques Lacan, notório personagem responsável por mudanças radicais na teoria e na técnica psicanalíticas, um interesse em buscar novas referências em diferentes ciências tais como a Lingüística, a Antropologia, a Lógica e a Matemática. Com isso, o discurso psicanalítico foi ganhando um teor cada vez mais formalista, e manteve-se a suposição de que as relações entre a ciência e a verdade fossem problemas que realmente devessem interessar aos analistas. Talvez como resposta a esse excesso de formalização do campo psicanalítico alguns analistas tenham buscado se aproximar da neurologia e do cognitivismo, enquanto as receitas de auto-ajuda proliferavam e alcançavam um sucesso tão estrondoso quanto preocupante. Já no domínio da psiquiatria observou-se o incremento das pesquisas farmacológicas com as quais ela supunha poder lidar com o sofrimento subjetivo crescente. No entanto, caberia perguntar: será que este é o melhor caminho a ser seguido pelos psicanalistas contemporâneos? Ou seria melhor deixar definitivamente em segundo plano as questões sobre a cientificidade e enveredar pelo caminho da estética?

Do nosso ponto de vista, não há qualquer dúvida de que a psicanálise teria muito mais a ganhar buscando aproximar-se mais da arte do que das ciências. Mas essa busca de uma proximidade com o campo da estética não se reduz de modo algum a um debate a respeito do tema da sublimação das pulsões, tal como foi promulgado por alguns psicanalistas freudianos ou pós-freudianos. Sublimar as pulsões sexuais ou mortíferas como componentes básicos do psiquismo humano, procurando na arte uma espécie de amortecedor para essas tendências, ainda nos parece pouco. Certamente seria mais interessante fazer da arte e da estética uma arma no combate aos niilismos moderno e contemporâneo tal como Nietzsche nos propôs. Segundo ele, só através delas poderíamos combater as tendências reativas provenientes não somente da religião, mas da própria ciência. Nessas condições, a arte serviria como um antídoto contra todas as forças que depreciam a vida em sua potência de afirmação da criatividade, combatendo o ressentimento e a má consciência que assolam a humanidade moderna desde que esta começou a buscar na ciência e na religião as melhores alternativas para o mal-estar na cultura. O homem, com sua tendência demasiado humana, via nestes saberes e discursos uma espécie de consolo para os aspectos trágicos da vida e com isso acabou por esvaziar cada vez mais as suas possibilidades de reinvenção de si e do mundo 2.

Talvez por não ter levado em conta essas considerações nietzscheanas a própria psicanálise tenha acabado por contribuir para o ressentimento e o niilismo que imperam em nossa sociedade, não apenas nos termos da teoria que ela construiu como também de sua prática clínica. Excessivamente preocupados com questões familialistas a partir de uma edipianização geral da subjetividade, muitos psicanalistas ortodoxos acabaram não se apercebendo da necessidade de rever alguns de seus parâmetros teóricos e clínicos, contribuindo para a manutenção do atual estado de coisas no que se refere aos anseios e sofrimentos humanos. Assim, ressaltar a importância de uma estética da psicanálise significa trazer de volta para o campo psicanalítico a potência de subversão que o caracterizou nos seus primórdios, e que por certo se perdeu justamente em função de preocupações excessivas com questões a propósito de sua cientificidade. Em termos teóricos, isso significa que é preciso rever e talvez abrir mão de alguns conceitos em benefício de outros. Questões tais como a importância da pulsão de morte, a necessidade da castração e da culpa como referentes universais de subjetivação, deveriam dar lugar a temas como o da intensificação de um potencial de afirmação dos aspectos criativos para que se pudesse resistir ao modo de subjetivação que a cultura e a civilização contemporâneas procuram impor aos diversos modos singulares de subjetivação.

Propor um modo de reflexão prioritariamente estético para o saber psicanalítico, portanto, implica também em considerar um fator de extrema relevância: o de que a clínica psicanalítica não pode ser pensada independentemente do modo de produção de subjetividade que caracteriza o nosso mundo. Dito de outro modo, não há clínica sem crítica da cultura. E esta precisa de novas referências tais como as oferecidas pela arte, para que seja possível acompanhar as rápidas transformações pelas quais estamos passando. No entanto, trata-se não apenas de acompanhar as mudanças, mas de considerar ainda o que pode ser oferecido à subjetividade em termos de resistência ao modelo de serialização que vem buscando homogeneizar as subjetividades. Esta modelização captura a potência de criação subjetiva e procura transformá-la no combustível que retroalimenta uma máquina que pretende se eternizar no seu modo de produção. Diante disso, propor uma estética da psicanálise é ao mesmo tempo formular uma ética e uma política que possam se contrapor às pretensões da ciência e da religião, no que elas podem funcionar como instrumentos de uma civilização e de uma cultura que têm produzido resultados absolutamente catastróficos para o futuro da humanidade.

Considerando a cartografia do mundo contemporâneo, fica óbvio que formas de sofrimento agudo tais como o esvaziamento subjetivo provocado por depressões graves, drogadições compulsivas, anorexias e bulimias são o resultado direto de uma redução drástica no potencial de criatividade próprio às subjetividades que podem afirmar a vida naquilo que ela tem de mais digno de ser vivido. Pensar uma estética enquanto plano de composição no qual a psicanálise possa ser recriada, implica ainda em fazer dela um instrumento terapêutico que nos ofereça também alguma saída para os impasses diante dos quais o biopoder colocou as subjetividades. Impasses nos quais a vida e a singularidade tornaram-se mais um objeto de consumo dentre tantos, e perderam o valor que elas deveriam ter enquanto instrumentos de transformação num mundo que ainda pode resistir às pretensões hegemônicas do capital. Quem sabe assim talvez seja possível abrir passagem para novas formas de subjetivação, que proporcionem com elas novas alternativas de construção de um espaço comum onde todos possam criar, em conjunto, territórios existenciais que viabilizem outras maneiras de viver a vida no que ela comporta uma força de invenção cada vez mais enfraquecida nas sociedades atuais.

Nesses termos, como dizia Félix Guattari, ressaltar a importância de uma perspectiva estética que vá de encontro à funcionalidade dominante parece no mínimo salutar 3. Mas é preciso dizer que destacar determinados coeficientes de liberdade criadora não significa, sob o pretexto da estética, naufragar num ecletismo que renunciaria a toda visão social. É o socius em toda a sua complexidade que exige ser re-singularizado, re-trabalhado e re-experimentado. Se a teoria psicanalítica continua marcada por uma ferida de origem que consiste no fato de ela ter nascido sob a égide de um paradigma científico, enfocar a invenção psicanalítica a partir de um prisma estético não significa de forma alguma desvalorizá-la. Pois se a cura não é uma obra de arte, não devemos nos esquecer de que ela pode proceder do mesmo tipo de criatividade. Talvez só por essa via a psicanálise possa reconquistar a potência subversiva de seus melhores momentos. Articulada a dispositivos, procedimentos e referências abertos à mudança ela pode recuperar sua vocação para engendrar uma subjetividade que escape aos modelos normativos e tornar-se apta para se agenciar com as singularidades e mutações de nossa época.


Carlos Augusto Peixoto Junior é psicanalista; professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio; Pesquisador do CNPq; autor de Metamorfoses entre o sexual e o social, Editora Civilização Brasileira e organizador de Formas de subjetivação, Editora Contracapa.


1 Sobre isso ver Freud, S. “Presentación autobiográfica” (1925) e “Epílogo a ‘Pueden los legos exercer el análisis?” (1927) in Obras completas, vol. XX, B. Aires, Amorrortu Editores, 1990; Assoun, P. L. Introdução à epistemologia freudiana, RJ, Imago, 1983.

2 Cf. Nietzsche, F. La naissance de la tragédie, Paris, Gallimard, 1977 e Le gai savoir, Paris Gallimard, 1982.

3 Guattari, F. Caosmose: um novo paradigma estético, SP, Editora 34, 1992.