Neste ano
em que se comemoram os 150 anos do nascimento de Sigmund Freud, não deixa de
ser relevante a necessidade de repensarmos a psicanálise, tal como ela veio se
desenvolvendo desde os seus primórdios. Neste sentido, a proposta de uma
estética da psicanálise se mostra extremamente valorosa. Não foram poucos os
debates até os dias atuais a propósito da cientificidade da teoria e da prática
psicanalíticas. O próprio Freud, desde o momento em que abandonava o campo da
neurologia do século XIX já se colocava questões a esse respeito,
confrontando-se com algumas das ciências mais bem estabelecidas à época, dentre
as quais se destacavam a medicina e a psiquiatria. Mesmo se mostrando crítico
com relação aos parâmetros científicos estabelecidos por essas ciências –
principalmente no que dizia respeito ao tratamento da histeria – ele sempre se
viu às voltas com a necessidade de situar a psicanálise entre os campos das
ciências da natureza ou do espírito, optando em última instância pelo primeiro 1. Do seu ponto de
vista, a psicanálise só sobreviveria num embate direto com o seu maior inimigo,
a religião, e embora não tivesse negligenciado a importância da arte, a ciência
sempre lhe pareceu a melhor arma para combater o discurso religioso. Mesmo se
diferenciando de outros discursos científicos, parecia necessário que o
discurso psicanalítico fundasse uma outra dimensão do saber científico para
que, só então, viesse a se estabelecer como uma referência fundamental no
domínio dos saberes ocidentais.
Desde
Freud o debate em torno da cientificidade da psicanálise ganhou contornos
diferenciados entre os seus discípulos. Na psicanálise inglesa, por exemplo,
esta questão não parece ter obtido um destaque maior. Os analistas desta escola
se mostraram mais preocupados com o desenvolvimento de novas modalidades da
técnica – das quais surgiram algumas inovações conceituais – do que com o
estatuto propriamente científico da psicanálise. Já entre a escola francesa, foi
possível notar, principalmente sob a influência de Jacques Lacan, notório
personagem responsável por mudanças radicais na teoria e na técnica
psicanalíticas, um interesse em buscar novas referências em diferentes ciências
tais como a Lingüística, a Antropologia, a Lógica e a Matemática. Com isso, o
discurso psicanalítico foi ganhando um teor cada vez mais formalista, e
manteve-se a suposição de que as relações entre a ciência e a verdade fossem
problemas que realmente devessem interessar aos analistas. Talvez como resposta
a esse excesso de formalização do campo psicanalítico alguns analistas tenham
buscado se aproximar da neurologia e do cognitivismo, enquanto as receitas de
auto-ajuda proliferavam e alcançavam um sucesso tão estrondoso quanto preocupante.
Já no domínio da psiquiatria observou-se o incremento das pesquisas
farmacológicas com as quais ela supunha poder lidar com o sofrimento subjetivo
crescente. No entanto, caberia perguntar: será que este é o melhor caminho a
ser seguido pelos psicanalistas contemporâneos? Ou seria melhor deixar
definitivamente em segundo plano as questões sobre a cientificidade e enveredar
pelo caminho da estética?
Do nosso
ponto de vista, não há qualquer dúvida de que a psicanálise teria muito mais a
ganhar buscando aproximar-se mais da arte do que das ciências. Mas essa busca
de uma proximidade com o campo da estética não se reduz de modo algum a um
debate a respeito do tema da sublimação das pulsões, tal como foi promulgado
por alguns psicanalistas freudianos ou pós-freudianos. Sublimar as pulsões
sexuais ou mortíferas como componentes básicos do psiquismo humano, procurando
na arte uma espécie de amortecedor para essas tendências, ainda nos parece
pouco. Certamente seria mais interessante fazer da arte e da estética uma arma
no combate aos niilismos moderno e contemporâneo tal como Nietzsche nos propôs.
Segundo ele, só através delas poderíamos combater as tendências reativas
provenientes não somente da religião, mas da própria ciência. Nessas condições,
a arte serviria como um antídoto contra todas as forças que depreciam a vida em
sua potência de afirmação da criatividade, combatendo o ressentimento e a má
consciência que assolam a humanidade moderna desde que esta começou a buscar na
ciência e na religião as melhores alternativas para o mal-estar na cultura. O
homem, com sua tendência demasiado humana, via nestes saberes e discursos uma
espécie de consolo para os aspectos trágicos da vida e com isso acabou por
esvaziar cada vez mais as suas possibilidades de reinvenção de si e do mundo 2.
Talvez
por não ter levado em conta essas considerações nietzscheanas a própria
psicanálise tenha acabado por contribuir para o ressentimento e o niilismo que
imperam em nossa sociedade, não apenas nos termos da teoria que ela construiu como
também de sua prática clínica. Excessivamente preocupados com questões
familialistas a partir de uma edipianização geral da subjetividade, muitos
psicanalistas ortodoxos acabaram não se apercebendo da necessidade de rever
alguns de seus parâmetros teóricos e clínicos, contribuindo para a manutenção
do atual estado de coisas no que se refere aos anseios e sofrimentos humanos.
Assim, ressaltar a importância de uma estética da psicanálise significa trazer
de volta para o campo psicanalítico a potência de subversão que o caracterizou
nos seus primórdios, e que por certo se perdeu justamente em função de
preocupações excessivas com questões a propósito de sua cientificidade. Em
termos teóricos, isso significa que é preciso rever e talvez abrir mão de alguns
conceitos em benefício de outros. Questões tais como a importância da pulsão de
morte, a necessidade da castração e da culpa como referentes universais de
subjetivação, deveriam dar lugar a temas como o da intensificação de um
potencial de afirmação dos aspectos criativos para que se pudesse resistir ao
modo de subjetivação que a cultura e a civilização contemporâneas procuram
impor aos diversos modos singulares de subjetivação.
Propor um
modo de reflexão prioritariamente estético para o saber psicanalítico,
portanto, implica também em considerar um fator de extrema relevância: o de que
a clínica psicanalítica não pode ser pensada independentemente do modo de
produção de subjetividade que caracteriza o nosso mundo. Dito de outro modo,
não há clínica sem crítica da cultura. E esta precisa de novas referências tais
como as oferecidas pela arte, para que seja possível acompanhar as rápidas
transformações pelas quais estamos passando. No entanto, trata-se não apenas de
acompanhar as mudanças, mas de considerar ainda o que pode ser oferecido à
subjetividade em termos de resistência ao modelo de serialização que vem
buscando homogeneizar as subjetividades. Esta modelização captura a potência de
criação subjetiva e procura transformá-la no combustível que retroalimenta uma
máquina que pretende se eternizar no seu modo de produção. Diante disso, propor
uma estética da psicanálise é ao mesmo tempo formular uma ética e uma política
que possam se contrapor às pretensões da ciência e da religião, no que elas
podem funcionar como instrumentos de uma civilização e de uma cultura que têm
produzido resultados absolutamente catastróficos para o futuro da humanidade.
Considerando
a cartografia do mundo contemporâneo, fica óbvio que formas de sofrimento agudo
tais como o esvaziamento subjetivo provocado por depressões graves, drogadições
compulsivas, anorexias e bulimias são o resultado direto de uma redução
drástica no potencial de criatividade próprio às subjetividades que podem
afirmar a vida naquilo que ela tem de mais digno de ser vivido. Pensar uma
estética enquanto plano de composição no qual a psicanálise possa ser recriada,
implica ainda em fazer dela um instrumento terapêutico que nos ofereça também
alguma saída para os impasses diante dos quais o biopoder colocou as subjetividades.
Impasses nos quais a vida e a singularidade tornaram-se mais um objeto de
consumo dentre tantos, e perderam o valor que elas deveriam ter enquanto
instrumentos de transformação num mundo que ainda pode resistir às pretensões
hegemônicas do capital. Quem sabe assim talvez seja possível abrir passagem
para novas formas de subjetivação, que proporcionem com elas novas alternativas
de construção de um espaço comum onde todos possam criar, em conjunto,
territórios existenciais que viabilizem outras maneiras de viver a vida no que
ela comporta uma força de invenção cada vez mais enfraquecida nas sociedades
atuais.
Nesses
termos, como dizia Félix Guattari, ressaltar a importância de uma perspectiva
estética que vá de encontro à funcionalidade dominante parece no mínimo salutar 3. Mas é preciso
dizer que destacar determinados coeficientes de liberdade criadora não
significa, sob o pretexto da estética, naufragar num ecletismo que renunciaria
a toda visão social. É o socius em toda a sua complexidade que exige ser
re-singularizado, re-trabalhado e re-experimentado. Se a teoria psicanalítica
continua marcada por uma ferida de origem que consiste no fato de ela ter
nascido sob a égide de um paradigma científico, enfocar a invenção
psicanalítica a partir de um prisma estético não significa de forma alguma
desvalorizá-la. Pois se a cura não é uma obra de arte, não devemos nos esquecer
de que ela pode proceder do mesmo tipo de criatividade. Talvez só por essa via
a psicanálise possa reconquistar a potência subversiva de seus melhores
momentos. Articulada a dispositivos, procedimentos e referências abertos à
mudança ela pode recuperar sua vocação para engendrar uma subjetividade que
escape aos modelos normativos e tornar-se apta para se agenciar com as singularidades
e mutações de nossa época.
Carlos
Augusto Peixoto Junior é psicanalista; professor do Programa de Pós-graduação em
Psicologia Clínica da PUC-Rio; Pesquisador do CNPq; autor de Metamorfoses entre o sexual e o social,
Editora Civilização Brasileira e organizador de Formas de subjetivação, Editora Contracapa.
1 Sobre isso ver Freud, S.
“Presentación autobiográfica” (1925) e “Epílogo a ‘Pueden los legos exercer el
análisis?” (1927) in Obras completas,
vol. XX, B. Aires, Amorrortu Editores, 1990; Assoun, P. L. Introdução à epistemologia freudiana, RJ, Imago, 1983.
2
Cf. Nietzsche, F. La naissance de la
tragédie, Paris, Gallimard, 1977 e Le
gai savoir, Paris Gallimard, 1982.
3 Guattari, F. Caosmose: um novo paradigma estético, SP, Editora 34, 1992.
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