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Artigo
Ouvir a ciência, salvar a floresta, enfrentar as controvérsias, pensar a democracia
Por Jean C. H. Miguel e Léa Velho
10/10/2013

“A ciência deve ser ouvida”.

Essa reivindicação, feita por Helena Nader, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), aconteceu em vários números do Jornal da Ciência publicados durante o período de elaboração do novo Código Florestal no Congresso Nacional (2009-2012). Também defendida por outros pesquisadores, Nader argumentava que a inclusão de cientistas no processo deliberativo parlamentar iluminaria a discussão sobre questões como: quais parâmetros adotar para as Áreas de Preservação Permanentes (APP’s) no novo Código, como recompor áreas de Reservas Legais (RL) e APP’s ocupadas com produção agropecuária, como aumentar a produtividade dessas áreas através de práticas agrícolas intensivas e de baixa emissão de carbono.

De fato, e como ocorre com alguma frequência na deliberação de questões que envolvem conhecimento técnico-científico no Congresso, especialistas foram chamados a expor sua opinião sobre as questões acima, através do convite de parlamentares para que participassem como conselheiros em audiências públicas. Com a finalidade de entender como ocorre esse processo de inclusão e participação de membros da comunidade acadêmica nesses espaços, foram analisados os convites e as notas taquigráficas das 46 audiências públicas realizadas pelo Congresso Nacional para discutir o novo Código Florestal, entre 2009 e 2012.

A primeira observação sobre as audiências públicas foi que a escolha de especialistas convidados é uma prerrogativa dos parlamentares através de requerimentos à mesa da presidência da(s) comissão(ões) competente(s). A aprovação ou rejeição dos requerimentos é decidida por votação dos membros da comissão e só então são convidados os especialistas que tiveram o nome aprovado.

No caso da Comissão Especial da Câmara que inicialmente discutiu a matéria do Código Florestal, houve um acordo para que nenhum requerimento dirigido à mesa fosse rejeitado. Esse acordo possibilitou o convite de uma grande variedade de especialistas como recurso para sustentar o posicionamento das diferentes bancadas.

A análise dos requerimentos emitidos revelou que a seleção dos convidados ocorreu de maneira polarizada entre os diferentes grupos parlamentares. Se por um lado parlamentares da bancada ruralista emitiram requerimentos convidando especialistas que, em sua maioria, tinham relação com o setor de produção e pesquisa agropecuária, por outro, os parlamentares de oposição à bancada escolheram majoritariamente especialistas comprometidos com causas preservacionistas. Ficou claro, portanto, que as diferentes posições políticas orientaram as escolhas dos especialistas convidados. Dessa maneira, através do convite de especialistas que, possivelmente, poderiam depor do seu lado da controvérsia, os parlamentares tentaram mostrar que suas posições não eram motivadas somente por interesses políticos, mas sustentadas por conhecimentos específicos.

Sobre os especialistas convidados, destaca-se que a diversidade de atores considerados pelos parlamentares como aqueles que possuíam conhecimento relevante para a discussão do novo Código Florestal não se restringiu às áreas técnicas, mas reuniu um conjunto diversificado de expertises. Além de doutores em ciências naturais e agrárias, foram convidados representantes de confederações da agricultura, representantes de ONG´s ambientalistas, ministros da Agricultura e do Meio Ambiente, doutores em direito, promotores, representantes de conselhos regionais e federais, prefeitos de municípios que apresentavam casos considerados pertinentes às discussões, dentre outros. Essa diversidade de atores, reconhecidos como especialistas pelos parlamentares, trouxe uma questão fundamental:

Qual papel foi atribuído pelos parlamentares aos porta-vozes da comunidade científica nessas audiências?

Ao longo das audiências públicas analisadas, a importância de ouvir a ciência sobre a elaboração do novo Código Florestal foi amplamente reconhecida pelos parlamentares. Tanto políticos ligados ao setor agropecuário quanto representantes da causa ambientalista concordaram com a necessidade de “trazer a ciência para o debate”.

Em seus discursos, os parlamentares frequentemente conferiam aos pesquisadores a capacidade de elucidar as controvérsias presentes no debate como, por exemplo, com relação aos parâmetros a serem adotados no novo Código para as APP’s. Os parlamentares enfatizaram que a melhor forma de romper com o dualismo entre preservar a natureza ou avançar na produção de gêneros agrícolas seria através de laudos técnicos que definissem os limites e possíveis usos dessas áreas. A atribuição desse papel à ciência foi discursivamente amparada em uma noção de que o conhecimento científico é neutro e que, portanto, seria capaz de “desideologizar” o debate. Muito embora o consenso em torno dessa proposta de tornar o debate técnico acerca das APP’s tenha sido alcançado, a posição dos pesquisadores a respeito do tema mostrou-se controversa.

Para o pedólogo da Embrapa Floresta, Gustavo Ribas Curcio, os limites das APP’s definidos pelo Código Florestal na época de sua elaboração “foram números tirados da cartola”, uma vez que não foram obtidos através do “rigor da ciência”1 . O especialista em solos destacou nas audiências que o novo Código Florestal não deveria manter essas medidas fixas para todo o território nacional. Segundo ele, as medidas deveriam ser obtidas por pesquisas científicas locais que levassem em conta fatores como declividade, textura e espessura do solo. Assim, “cada estado poderia legislar sobre as APP’s segundo as particularidades da natureza local informadas por órgãos de pesquisa competentes”2 .

Já o pesquisador da Esalq/USP, Paulo Kageyama, enfatizou nas audiências que as medidas estabelecidas no Código para as APP’s têm fundamento científico comprovado. Segundo ele, os 30 metros de mata ciliar em torno dos rios são uma largura mínima para que essas áreas não sejam degradadas. Os dados apresentados pelo pesquisador foram atribuídos a pesquisas realizadas na USP. Baseado nessas pesquisas, Kageyama afirmou que “meros 30 metros de largura não são tirados da cartola; eles têm alguma razão de ser”3.

Esse dissenso entre os pesquisadores acerca dos limites das APP’s tornou a controvérsia cientificamente irredutível nos debates. A partir de então, “houve ciência” para ambos os lados da disputa. A informação científica fornecida pelos pesquisadores da Embrapa Floresta passou a ser mobilizada como recurso pelos ruralistas que defendiam a alteração das medidas nacionais das APP’s definidas no Código Florestal. Já as informações fornecidas pelos pesquisadores da Esalq/USP serviram de sustentação à posição dos ambientalistas e demais opositores das propostas dos ruralistas.

Diante da complexidade apresentada nessa disputa, uma questão pertinente seria: quando as controvérsias apresentam-se cientificamente irredutíveis na deliberação de assuntos públicos quem decide qual ciência deve ser ouvida?

No caso do Código Florestal, em meio às discussões parlamentares, essa escolha não coube aos cientistas e ao público. Novamente, a prerrogativa foi dos parlamentares que optaram por utilizar como recursos argumentativos informações científicas mais adequadas aos seus objetivos políticos.

Essa condição ilustrou-se também em outra controvérsia presente nas audiências: a questão dos riscos relacionados às mudanças climáticas, sua relação com o desmatamento e as emissões de carbono da agricultura.

Dois pesquisadores participantes, o doutor em física José Azevedo (UnB) e o meteorologista Luis Carlos Molion (Ufal), afirmaram que não há uma relação entre o desmatamento e o maior aquecimento da atmosfera. Ambos, reconhecidos expoentes do grupo que é popularmente conhecido como “céticos do clima”, destacaram em suas falas que as mudanças climáticas são pseudoameaças, pois não há evidências científicas de que o CO 2 está aquecendo a atmosfera. Logo, a necessidade de não desmatar não se justifica pelo argumento da necessidade de conter as emissões de carbono4.

Contrários a essa posição, os pesquisadores Carlos Nobre (Inpe) e Eduardo Assad (Embrapa Meio Ambiente), participantes na elaboração do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, destacaram que há uma relação direta entre a concentração de CO 2 e o aumento da temperatura. No caso brasileiro, ambos destacaram que as maiores emissões ocorrem devido às queimadas e ao uso indevido do solo na agricultura. Portanto, levar em conta o problema das mudanças climáticas nas discussões sobre o novo Código Florestal é de suma importância5.

Observa-se que, também nessa controvérsia, há ciência para ambos os lados da disputa. Nesse caso, os ruralistas valeram-se dos argumentos de Azevedo e Molion para afastar dos debates o tema das mudanças climáticas, enquanto os parlamentares de oposição à bancada ruralista incorporaram em seus discursos as informações trazidas por Nobre e Assad para fortalecer o argumento da necessidade de manter as medidas estabelecidas no Código como padrão de conservação das florestas.

Através das duas controvérsias apresentadas, percebe-se que o processo de aconselhamento científico da decisão política não é uma via de mão única que vai do conhecimento objetivo e consensual da ciência ao meio ideológico e conflituoso da política, mas um processo contínuo de entrelaçamento de políticas e expertises, uma relação de envolvimento, marcada por disputas que perpassam esses campos e os redefinem mutuamente.

Portanto, a reivindicação “a ciência deve ser ouvida” precisa ser acompanhada de uma reflexão a respeito das condições pelas quais ser ouvido enquanto cientista torna-se possível na deliberação dos assuntos públicos. O caso das audiências públicas do Código Florestal demonstra que a participação de especialistas pode ser condicionada por diversos fatores presentes no desenrolar das discussões, dentre eles, a prerrogativa da seleção dos convidados pelos parlamentares, o desenho institucional das audiências públicas, a natureza do tema discutido, os grupos para os quais os especialistas falam e o uso feito de suas informações em diferentes momentos das discussões.

A percepção desses fatores condicionantes pode sugerir novas formas e novos espaços, junto aos parlamentos ou fora deles, para que a ciência possa contribuir para o diálogo com a política. Essa reflexão precisa ser acompanha da discussão a respeito de qual papel os porta-vozes do conhecimento científico pretendem desempenhar na discussão dos assuntos públicos e em como desempenhá-lo de maneira que seja possível incluir e integrar outros tipos de conhecimento nesse processo. Essa discussão torna-se cada vez mais importante, sobretudo quando se verifica que, nas sociedades contemporâneas, a complexidade das controvérsias já ultrapassa a capacidade de resolução dos espaços tradicionais da política e da ciência moderna, fato que desafia quem pensa no futuro da democracia.

Jean Carlos Hochsprung Miguel é doutorando em política científica e tecnológica e Léa Velho é professora titular em estudos sociais da ciência e da tecnologia junto ao Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp.


Notas: 1-Audiência Pública da Câmara, 10/11/2009.

          2-Idem.

          3-Audiência Pública da Câmara, 01/12/2009.

          4-Audiências Públicas da Câmara, 12/11/2009 e 01/12/2009.

          5-Audiência Pública do Senado, 30/08/2011; Audiência Pública da Câmara, 10/11/2009.