Reportagem |
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Pátrias e intrigas no verde gramado |
Por Yurij Castelfranchi
10/08/2006
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“O homem italiano” - escrevia em junho o colunista
Achim Achilles no Der
Spiegel, um dos mais importantes periódicos
alemães - “é uma forma de vida
parasitária. É incapaz de sobreviver sem ajuda
alheia… Seu objetivo primário na vida
é evitar qualquer esforço. Seu animal hospedeiro
preferido é ‘la Mamma’, ama peituda que
lava suas meias de seda e cozinha todo dia sua massa com um bonito
molho grosso. Com cerca de 30 anos de idade, o homem italiano muda de
cozinheira, casa-se para se reproduzir. As
conseqüências são horríveis:
uma italiana, antes linda, se transforma, em poucos meses, numa
máquina de cozinhar de ancas largas, uma nova
Mamma”. O intento do colunista era, obviamente,
irônico. O tema era a atuação da
seleção italiana no campeonato mundial de
futebol.
Os alemães, que sediaram os jogos, acolheram inicialmente a
Copa do Mundo sem muito entusiasmo. Mas, pouco a pouco, o patriotismo
acabou sendo despertado, talvez graças à
propaganda do próprio governo; à
presença de milhares de apaixonados torcedores vindos de
dúzias de países; ou à
mídia, que refletia e multiplicava as paixões num
jogo de espelhos. E, sem dúvida, graças ao
próprio fascínio do esporte. “O
futebol”, comenta Leonardo Affonso de Miranda Pereira,
professor no Departamento de História da Universidade de
Brasília (UnB), “funciona nas sociedades
contemporâneas como forma de
articulação de vários
níveis de identidade, como a que liga os sócios
de um clube, de uma cidade ou de uma nação. Nesse
contexto, ele pode ao mesmo tempo expressar e intensificar tanto
diferenças sociais entre grupos diversos, quanto
tensões e rivalidades nacionais”.
Assim, em pleno fervor futebolístico, o jornalista
do Spiegel
descrevia a vitória italiana contra Austrália
como “suja e oleosa”. Dizia (comentando um gesto do
Francesco Totti ao converter um pênalti contra
Austrália) que “chupar o dedão
é coisa normal para o homem italiano”.
Acrescentava que o italiano, no esporte, é
“particularmente maligno” e
“incapaz”, como se pode observar nas praias onde
“precisa de horas para untar seu corpo magro e sua cabeleira,
para libertar suas costas dos pelos supérfluos e enfiar sua
genitália muito pouco espetacular numa sunga estreita
demais”. Depois, segundo o Spiegel, o italiano
joga futebol no máximo por cinco minutos nos quais pula
feito louco, berrando, golpeia pouco a bola e muito os ossos dos
adversários. Cai melodramaticamente ao mais leve toque e
busca os “olhares moles das turistas
alemãs”, que são sua “base de
vida”. dois dias depois da publicação,
o Der Spiegel retirou o texto da internet, pedindo desculpas em três
idiomas pois a sátira havia passado do limite.
Jornalistas italianos replicaram: “pode até ser
que sejamos, em parte, assim. Mas não exatamente assim.
Seria como se um semanal italiano dissesse que o macho
alemão é um cara com a barriga fora da
calça e a sensualidade de um microondas, um fulano que
arrota cerveja e, quando bebe demais, sente um certo desejo de invadir
a Polônia”. E continuavam: “o livro mais
curto do mundo é a história do humorismo
alemão. Ser pouco espirituosos não é
defeito quando, como os alemães, se tem muitas outras
qualidades… Melhor ficar sérios, então,
se o relaxamento do espírito mostra um persistente desprezo
para as outras formas de vida”.
“Minha opinião”, comenta Igor
José de Renó Machado, antropólogo da
Universidade Federal de São Carlos (Ufscar),
“é que o futebol é um caso especial de
arregimentação de paixões”.
Pode, diz Machado, muitas vezes, ser mal canalizado, no sentido que a
mídia pode aproveitar disso para levantar preconceitos que
estão à tona. “O futebol permite, em
certa medida, uma desculpa para ser preconceituoso sem ser
‘tão politicamente incorreto’. É como se o futebol criasse uma espécie de
exceção, em que pode-se falar tudo, porque, no fim, ‘é só
futebol’”. Por outro lado, continua o pesquisador,
“foi interessante que, na Alemanha, vimos uma coisa
diferente: o surgimento de um nacionalismo alemão
não tão racializado”. Embora
expressando, às vezes, preconceitos contra outras
nações, explica, os alemães puderam se
sentir alemães sem medo de evocar o nazismo.
O futebol, então, é capaz de evocar
paixões coletivas de grande porte. E de fortalecer (ou
até mesmo construir) sentimentos marcados de pertencimento a
um grupo e de conflito com “os outros”.
Uma paixão
filha da Revolução Industrial
Por um lado, esse extraordinário poder
socializador do futebol é ligado a suas origens. O
historiador Nicolau Sevcenko, por exemplo, afirma, em seu artigo
“Futebol, metrópoles e desatinos”, que a
extraordinária expansão das cidades que se deu a
partir da Revolução
Científico-Tecnológica. A
multiplicação acelerada da massa trabalhadora,
que ocorreu em sucessivas e gigantescas ondas migratórias,
criou em muitos países, inclusive no Brasil,
metrópoles e megalópoles onde
“ninguém tinha raízes ou
tradições, todos vinham de diferentes partes do
território nacional ou do mundo”. Assim, continua,
“na sua busca de novos traços de identidade e de
solidariedade coletiva, de novas bases emocionais de coesão
que substituíssem as comunidades e os laços de
parentesco que cada um deixou ao emigrar”, essas pessoas
foram “dragadas para a paixão
futebolística que imana estranhos, os faz comungarem ideais,
objetivos e sonhos, consolida gigantescas famílias vestindo
as mesmas cores”. Para Sevcenko, por um lado esse esporte foi
funcional à administração das novas
grande metrópoles, onde os corpos tinham que ser treinados
com estímulos de condicionamento para as novas necessidades
do trabalho na indústria e na linha de montagem. Por outro,
o futebol se expandiu rápida e extraordinariamente entre a
classe trabalhadora por criar laços de identidade e por ser
um esporte de equipe com diversificadas funções.
Praticado com os pés, tem (principalmente ao ser praticado
de forma amadora) menores exigências de destaque
físico: o jogador pode ter o padrão
físico da sociedade à que pertencia,
não precisando ser demasiado alto, forte ou extremamente
veloz, sendo basilar o uso malicioso dos movimentos do corpo.
O antropólogo Roberto da Matta, em seu artigo
“Antropologia do óbvio: notas em torno do
significado social do futebol brasileiro”, ressalta que o
fato de o futebol ser jogado com os pés e não com
as mãos, acarreta ainda outras duas
conseqüências. Por um lado, “engendra
imprecisão tática, exige grande qualidade
técnica e faz com que o jogo decorra num ritmo de altas
improbabilidades”, o que faz com que nele se insinuem as
idéias de sorte, destino,
predestinação à vitória.
Por outro, obriga a inclusão de todo o corpo,
“institui o jogo de cintura como estilo nacional” e
salienta pernas, quadril, cintura, partes da anatomia que no Brasil
“são alvo de um elaborado simbolismo”.
Mas os motivos que levam o futebol a ser um
“formidável código de
integração social”, continua o
antropólogo, são muitos. É o futebol,
afirma, que “nos faz ser patriotas”: foi
só com o futebol “que conseguimos, no Brasil,
somar Estado nacional e sociedade”.
“Futebol é questão seríssima
no Brasil”, diz Igor José de Renó
Machado, sorrindo. “Especialmente aqui, no Brasil, tem uma
dimensão central na constituição da
própria definição de
nação. A Copa de 1950 foi importante para
constituir nacionalidade”. “Em muitos
momentos”, continua o pesquisador, “esse esporte
produz uma narrativa de nação que se
opõe de fato à situação
social como ela se encontra. Seu time pode perder ou vencer, mas
através do futebol você pode se relacionar com
pessoas de estratos sociais diferentes. A relação
que você tem com essas pessoas acaba sendo equalizada pelo
futebol: você sempre pode ser ridiculizado por
alguém que, por exemplo, é bem mais pobre que
você”.
Por isso, de acordo com muitos autores, o futebol tem, por um lado, a
capacidade de influenciar a política, por outro, as
emoções coletivas que gera podem ser aproveitadas
ou instrumentalizadas para fins ideológicos. Para Sevcenko,
por exemplo, esse esporte é particularmente adequado para o
populismo: a paixão das torcidas “incorpora sempre
esses elementos de agressividade, virilidade, machismo,
vingança e arrogância que são
consubstanciais à simbologia e à
dinâmica social do populismo”.
Futebol
político?
Pouco antes da eliminação do Brasil
na Copa, Boris Fausto, professor da USP declarava: “Se o
Brasil ganhar, Lula se beneficia” mesmo que, obviamente, de
forma indireta e não com uso explícito da
vitória na campanha política. Analogamente, a
vitória da seleção italiana, em 1934 e
1938 foi interpretada ideologicamente como prova da superioridade do
fascismo, enquanto em 1970, no Brasil da ditadura, os militantes da
resistência debatiam se podia-se ou não torcer
para a vitória da seleção no
México, que podia fortalecer o governo militar.
Tal massificação e capacidade do futebol de
fomentar uma ampla identidade nacional fez com que o historiador
inglês Eric Hobsbawn chamasse o jogo de
“religião leiga da classe
operária”, enquanto o brasilianista Robert Levine
chegou a defini-lo “ópio do povo
brasileiro” e pensá-lo como instrumento da classe
dominante para manipular as massas. Leonardo Affonso de Miranda Pereira
não concorda. “A tentativa de aproveitamento da
popularidade do jogo por parte dos governantes”, comenta,
“é antiga e generalizada” e, por isso,
“o futebol aparece, para muitos, como elemento de
alienação, que ajudaria a fomentar um sentimento
nacional falso e enganoso, que eclipsaria uma realidade feita de
desigualdade e exclusão”. Essa é, no
entanto, apenas uma das maneiras de ver a questão,
explica o pesquisador. “Tal raciocínio ignora algo
importante no que diz respeito à paixão
esportiva: o ponto de vista dos que a compartilham. A verdadeira
pergunta que se coloca não é sobre as tentativas
governamentais de manipular o jogo, mas sobre o resultado dessa
tentativa”. Por exemplo, diz, “foi a partir da
pressão de torcedores negros e mestiços que os
times nacionais passaram progressivamente a aceitar a
presença de jogadores afro-descendentes nos campeonatos e na
seleção”. E foi a
consolidação dessa presença que
permitiu que o jogo se transformasse, definitivamente, em grande
fenômeno nacional, “com a emergência de
grandes ídolos como Domingos da Guia e Leônidas da
Silva. Desse modo, se governantes podem tentar fazer do jogo meio de
fortalecer seus projetos, o fazem em contexto de intenso embate e
comunicação com os anseios e
aspirações dos apaixonados pelo jogo”.
Leia mais
SEVCENKO, Nicolau. “Futebol, metrópoles e
desatinos”, in: Revista
USP: Dossiê Futebol. Número 22, 1994.
DA MATTA, Roberto. “Antropologia do óbvio: notas
em torno do significado social do futebol brasileiro”, in: Revista
USP: Dossiê
Futebol. Número 22, 1994
MACHADO, I. J. R. "Futebol, clãs e nação". Dados,
Rio de Janeiro, v. 43, n. 1, p. 183-197, 2000.
SILVA, F. C. T. (Org.); SANTOS, R. P. (Org.). Memória social dos
esportes - Futebol e política: a
construção de uma identidade nacional.
1. ed. Rio de Janeiro: Mauad Ed., FAPERJ, 2006. v. 2. 400 p.
GUEDES, S.L. O Brasil
no campo de futebol: estudos antropológicos sobre os
significados do futebol brasileiro, Niterói,
1998, Eduff.
PEREIRA, L. A. M. Footballmania.
Uma história social do futebol no Rio de Janeiro.
1. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. v. 1. 374
TOLEDO, L. H. No
país do futebol. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar
Editor, 2000. v. 1.
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