“Na fotografia um detalhe conquista toda minha leitura; trata-se de uma mutação viva de meu interesse, de uma fulguração. Pela marca de uma coisa, a foto não é mais qualquer. Essa alguma coisa deu um estalo, provocou em mim um pequeno abalo, um satori, a passagem de um vazio”. (Roland Barthes, 1984)
Na escola, lugar de passagens, há muitos que não deixam seus nomes e há os que passam e que insistentemente querem marcar o espaço: nomes, imagens e palavras por todos os lados, paredes, mesas, cadeiras, portas de banheiro, cartazes, ofícios, livros de registro... Coisas que corporificam a passagem de seres, diferentes formas escolhidas para deixar rastros dos encontros. O que fica depois de nossos encontros com seres e coisas? Marcas? Vazios? Como expressar essas forças? Como a fotografia entra nesse jogo?
Há uma intensidade de desejos de dizer do vivido nas fotografias produzidas no interior das escolas, como tentativas de reter sentidos, de preencher materialmente os vazios abertos pelo tempo que insistentemente corre. Como se a imagem pudesse eternizar efemeridades. Há uma carga de narrativas desejantes de comunicação na invisibilidade do cotidiano. Uma forma de contar sem palavras, de trazer à vista cenas, práticas e políticas pouco aparentes nas edições comumente realizadas sobre escolas: os gestos sutis do aprender a ler, os olhares por entre as fileiras escolares, os instantes de ajuda entre as crianças, a diferença que há na repetição do cotidiano da sala de aula, corpos a escrever, a modelar, a afagar, a ajudar, a brincar, a ler, a formar palavras... A retenção fotográfica desses seres, coisas e gestos é uma forma de ser cúmplice deles, de torná-los dignos e de conceder-lhes certa continuidade. Montagem a partir de fotografias de Silvana Lessio e Anna Paula Silva
Esses pensamentos, fragmentos de minha tese de doutorado, fizeram-se no encontro com leituras, com educadores e com fotografias de cenas cotidianas de escolas produzidas por eles em cursos sobre a linguagem fotográfica e a educação que realizei entre 2003 e 2006 na rede pública de ensino em Campinas, São Paulo. As imagens apresentadas aqui são ora fotografias produzidas por educadoras nos cursos, ora composições feitas por mim a partir de suas imagens.
Os diferentes cursos não tinham como proposta gerar pensamentos sobre o olhar e possibilitar que cada educador encontrasse seu próprio modo de dizer por meio da linguagem fotográfica. A intenção era centrar nas possibilidades da fotografia como expressão de certas visões, de encantamentos e assombros em relação ao que se vive na escola, e também como geradora de outras visibilidades e perplexidades. Nessa perspectiva, ao final dos cursos, fizemos o convite aos educadores de realizarem um ensaio fotográfico individual sobre a sua escola.
Em sua maioria, as experiências escolhidas para perdurar nos ensaios fotográficos, trazem crianças a manipular coisas e sendo manipuladas por elas: jornal, tela, parede, giz, bambolê, tinta, boneca, garfo... As imagens nos fazem imaginar uma escola onde se deseja ensinar o uso das coisas e dar um sentido às ações ditadas por elas. Um convite a adentrar a um certo mundo de sentidos. Uma pedagogia silenciosa e invisível, a todo instante a lapidar gestos: crianças em ações de aprendizagem. As fotografias tratadas apenas como retenção do tempo vivido dão força aos sentidos que se querem fazer caber nelas. Efetuam num silêncio persistente, desejando que durem em repetição. Mas, as fotografias também são coisas... E como coisas, o que ensinam?
Para além de reterem os sentidos dos encontros, as fotografias também efetuam sobre eles. As fotografias desarranjam os nossos discursos sobre as coisas e os seres; nelas, eles também ganham outras formas. Há a potência do corte, do apagamento, da sombra, da luz, da transformação das cores, em especial nas imagens preto e branco, da justaposição, do adensamento de corpos e da retenção do efêmero. Fotografia de Sidnéia Oliveira dos Santos
As fotografias além de reterem marcas, também criam outras. Os sentidos dessas fotografias de escola não são habitantes fixos que podem ser reconhecidos, descritos e analisados. Há uma potência do inominável, dos sentidos em constante escape e desconexão. Mesmo sendo um objeto produzido com a intenção de reter e aprisionar sentidos, a fotografia possui uma força outra, efetua em sua superficialidade, em seu silêncio, em dizeres balbuciantes, em tênues expressões e deixa um potente espaço vazio para sentidos não determinados.
As fotografias afetam-nos pela efemeridade de seus gestos incompletos, pelas suas improváveis formas, cores e sombras, por pairarem em uma lacuna do tempo e do espaço. Outros acontecimentos na superficialidade do visto, invisibilidades, imprevisões, outras visões. Nessas lâminas impregnadas de sentidos, a retenção de algo do visto que se esvai em infinitos instantes, em visões multifacetadas daquilo que sempre passa. Nas fotografias produzidas cotidianamente nas escolas, acredito na possibilidade do acontecimento (na proposição realizada por Deleuze, 2003) que se dá pelas superfícies das imagens, quase que descolado do tempo fotografado. Nesse plano sem profundidades há algo que não se consegue apreender e representar em palavras conhecidas. Outros tempos, outros sentidos fazem-se no silêncio inapreensível das imagens. As fotografias, ao quererem reter o tempo, ser um objeto que materialize sentidos, também “são posses imaginárias de um passado irreal” (Sontag, 1984, p.19). Há nesta irrealidade do passado algo a pensar sobre o gesto de deixar aos outros uma herança do tempo.
O gesto de uma criança na escola pode nos remeter a um momento finito, que passou e não mais retorna, a partir de uma imagem de tempo encadeado em passado-presente-futuro. Mas, seu gesto retido também cria a suspensão de uma imagem de tempo que somente passa, cria uma outra temporalidade. A fotografia pára o movimento e, ao mesmo tempo, mantém sua potência, num constante saltar, pender, cair... gesto que não termina, que paira suspenso na vibração de um desequilíbrio. Por mais que tentemos legendar as imagens, compô-las em ordem cronológica ou em qualquer outra organização (álbuns, painéis, sites, relatórios...), há sempre uma impossibilidade de contextualização espacial e temporal. As fotografias de cenas comuns das escolas são ao mesmo tempo singulares e plurais, ficam entre a particularidade daquele instante efêmero e os efeitos múltiplos e improváveis que se fazem nos nossos encontros com esses instantes plasmados na superfície-papel. Assim, a fotografia da mesma maneira que retém o instante não possibilita nos apropriarmos dele, lança-nos a outros tempos além daquele particular e datado. Oferecem-nos “instantes inapropriáveis” (Vilela, 2006, p.126) como um acontecimento que nos rompe inesperadamente. Um lugar de trânsito como um labirinto entre o que foi e o que é na imagem. O acontecimento como um vazio, uma lacuna dos sentidos, a emergência de algo novo, uma rachadura, linha do sentido rasgada, desfiada, triturada, esmigalhada que abre forças de pensamento. O acontecimento é inapreensível, irredutível ao mundo das palavras e das imagens, espalham sentidos em deriva. No efeito de um sentido desse instante não interpretável, não compreensível, outros são gerados. Montagem a partir de fotografias de Márcia de Jesus Ferreira Toma e de Lídice Ferreira
Esses pensamentos vão no sentido de considerar a fotografia menos como um meio material que transporta uma mensagem no tempo, como um sentido que possa ser retido e comunicado de antemão. Nesta outra perspectiva, fotografar e observar fotografias seriam mais uma dança entre a informação e a imaginação, entre o registro e a invenção, entre a compreensão e o assombro, gestos que abrem possibilidades de expressão e criação de sentidos sobre as escolas e a educação. Dizeres fissurados pelos sentidos do que foi e pelos sentidos que vem sem controle pelo adensamento silencioso de luzes no papel, e nesta fissura, e neste vazio, acredito habitar a força da imagem fotográfica.
Pensar pelo instante inapropriável das fotografias seria uma tentativa de “habitar de uma outra forma o mundo e o sentido” (Vilela, 2006), deixando-se contaminar por uma força vibrátil, por efeitos outros além da luta de sentidos que se quer fazer aderir. Um dizer com imagens que nasce do estado limite entre a vida e a morte do sentido, que rompe com o modo de pensar que quer desvendar o mundo, ser espelho de uma nítida imagem ideal. Um deixar-se afetar pelos sentidos que nunca se fixam. Fotografia de Gene Heber
As fotografias de escolas como objetos lançados ao tempo lançam luzes e presenças, sombras e ausências. São dizeres de um passado, de um tempo de encontros entre o aprender e o ensinar, e também são silêncios. “Não reproduzem o que transmitem, não reproduzem o mesmo, avançam em silêncio obliquando-se, mudando de direção, variando sua tela, perpetuamente herdada do outro” (Deleuze, 2003, p.334). Estas fotografias resistem a um dizer último com seus silêncios, criam uma sombra “dissidente de uma imagem definitiva” ( Vilela, 2004, p.126) do passado, do tempo, da criança, do aprender, da escola, do professor, do educar...
Busco uma poética e política de possibilidades para pensar as fotografias da escola não como documentos que atestam fatos ou como objeto de análise de visibilidades, mas como lâminas que possibilitam novas e infinitas dobras de sentidos. Um pensar que mude seus rumos pela passagem inexorável da luz: uma forma, um brilho, um gesto que nos atinge. Uma aventura não programada de nossos dizeres. O pó de giz na lousa, no chão, nas mãos, sombras e luzes singulares e cotidianas na concretude das paredes, o intenso e fugaz encontro de olhos, o instante em que a tinta se adensa na superfície do papel e que se esvai na água, um toque de corpos, a corda azul que se apaga e se adensa na superfície-papel.
Se a educação se faz no desejo de deixar marcas, de ensi(g)nar – e se a fotografia entra como potencializadora desse seu desejo, que ela também possa expandi-lo (talvez subvertê-lo) na sua potência como um dizer em fulguração. Coisas e seres passam, passam-se, não se passam, marcam, marcam-se, não se marcam, abrem vazões, não abrem... Um movimento contínuo entre o controle e o acaso, entre marcar (não marcar) e ser (não ser) atingido por inesperadas e inapreensíveis aberturas. E se elas ensinam, talvez seja um pensar/dizer aberto ao imprevisível e incontrolável. Um ensi(g)nar que se faz como rasgo na pele de um tempo controlado que quer emoldurar com imagens o que lhe escapa. Poética fissura, abertura a um outro tempo em constante variação com luzes e palavras. Na “estática humildade” (Pessoa, 2007, p.50) da imagem corriqueira, as mínimas coisas sem função, sem utilidade, sem importância carregam a força sutil daquilo que está esvaziado de sentidos. Nas frestas dessas janelas-superfícies de vazias paisagens, uma rajada de vento, imaterial e efêmera que contém a força de nos tirar do lugar. “Um cheio e um vazio de poética insuficiência” (Zambrano, 1999, p.101).
Este texto é uma versão reduzida do artigo “Restos quase mortais: fotografia, acontecimento e escola” enviado para a 31ª Reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação Pesquisa em Educação (Anped – 2008), fragmento da tese de doutorado Foto quase grafias, o acontecimento por fotografias de escolas (Faculdade de Educação – Unicamp, 2008).
Alik Wunder é doutora em educação pelo Olho - Laboratório de Estudos Audiovisuais, da Faculdade de Educação, da Universidade Estadual de Campinas
Bibliografia
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2003.
VILELA, Eugénia. "Resistência e acontecimento. As palavras sem centro". In: KOHAN, Walter Omar. Foucault 80 anos. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p.107-128.
VILELA, Eugénia. Corpo, resistência e testemunho nos espaços contemporâneos de abandono. Dissertação de doutoramento em filosofia, Universidade de Letras do Porto, 2004.
PESSOA, Fernando. O livro do desassossego de Bernardo Soares. Lisboa: Planeta DeAgostini, 2006.
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
ZAMBRANO, Maria. Dictados y sentencias (edición de Antoni Marí). Barcelona: Edhasa, 1999.
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