É relativamente recente o entendimento e a prática dos conceitos de TV
pública no Brasil. O país optou desde o início pelo caminho da cessão
de concessões para exploração dos sinais de TV ao setor privado, não
implantando nenhuma política estratégica em relação à utilização do
rádio e da televisão, com objetivos claramente sociais. A presença
maior do Estado no campo dos meios de comunicação só se fez sentir no
início dos anos 70, quando da implantação de um sistema educativo de
rádio e televisão bastante irregular e frágil, nos diferentes estados
da federação. Com uma trajetória cheia de interferências políticas, as
televisões educativas, atualmente mais identificadas com o conceito de
TVs públicas, encontram até hoje grandes dificuldades de sobrevivência,
em função da falta de uma política clara em relação à utilização dos
meios de comunicação a serviço da sociedade.
A TV brasileira, nascida na década de 50, desenvolveu-se num clima
liberal, com emissoras traçando uma programação de entretenimento,
alinhada por parâmetros comerciais que visam principalmente o mercado
de consumo, tendo como objetivo principal sua sustentação empresarial e
lucratividade, ao lado de uma política de competitividade que hoje
opera praticamente sem limites ou obrigações no que se refere ao seu
conteúdo.
A indústria televisiva brasileira cresceu, estabeleceu-se e tem
mostrado sua eficiência. Telenovelas brasileiras viajam pelo mundo todo
e trata-se de um gênero latino mais do que reconhecido no mercado
industrial. Porém, a abertura de novos canais, a chegada da TV por
assinatura, há mais de 10 anos, e a competição pela maior audiência na
TV aberta passou a determinar a programação, gerando nos dias de hoje,
por vezes, a banalização da violência, do sexo, a discriminação e o
preconceito, ignorando valores culturais da identidade nacional e
ferindo, muitas vezes, os valores éticos e humanos. Os excessos e a
falta de regulamentação acabaram por colocar a discussão sobre a
qualidade da TV na agenda social do país.
Hoje, a população e o Estado começam a se dar conta da necessidade de
uma televisão voltada para a sociedade, com uma programação que
valorize o público não somente como consumidor, mas fundamentalmente
como cidadão. Um sistema público de comunicação é necessário para a
democracia. Os parâmetros de qualidade dos conteúdos, a valorização da
economia do audiovisual, a formação de profissionais de comunicação com
espírito social, a experimentação, a diversidade de idéias e opiniões,
são apenas alguns compromissos e missões do sistema público.
Organizações Não Governamentais como TVER, Andi (Agência de Notícias
dos Direitos da Infância) e Midiativa (Centro Brasileiro de Mídia para
Crianças e Adolescentes), a Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos
Deputados, com iniciativas como a campanha "Quem financia a baixaria é
contra a cidadania", a existência do Conselho de Comunicação Social, o
movimento de democratização da comunicação, o coletivo InterVozes, são
apenas algumas das ações que vêm debatendo os temas referentes à
comunicação social com a opinião pública e com diferentes setores da
sociedade.
A televisão é um poderoso instrumento de fortalecimento dos valores e
costumes e, portanto, deveria ser contemplada dentro de políticas
públicas. O Estado praticamente tem se limitado a conceder o canal,
controlá-lo do ponto de vista técnico, para a disciplina e ordenação do
espectro eletromagnético. As últimas tentativas de discussão ou revisão
do modelo de radiodifusão e regulamentação têm sido freqüentemente
atropeladas. Inimá Simões em "A nossa televisão brasileira: por um
controle social da televisão" reforça, "A inexistência de uma política
cultural para a televisão é um dos mais sérios problemas do
Brasil....apesar dos compromissos estabelecidos na Constituição de
1988, o tema permanece em hibernação até há pouco tempo porque nunca
interessou às elites brasileiras discutir uma regulamentação que se
consolidasse em leis fundamentadas e aplicáveis."(1). Vera de Oliveira
Nusdeo Lopes, jornalista e procuradora do Estado, no ensaio "A lei da
selva", afirma que a legislação existente hoje no Brasil não contribui
para a formação de uma mentalidade, tanto em quem assiste como nos
concessionários de televisão, baseada no direito à informação, na
prestação do serviço e no respeito a valores éticos e morais. Se
comparada à legislação de outros países, o exercício da atividade
televisiva no Brasil, no que diz respeito ao seu aspecto
jurídico-legal, "...é de um laconismo que reflete com perfeição a falta
de consciência da relevância do meio televisivo no mundo contemporâneo
e, conseqüentemente, a responsabilidade social subjacente ao exercício
desta atividade" (2).
Em busca da TV pública - as emissoras educativas e culturais
Frente
a esta situação é mais do que oportuno que se discuta e se reflita
sobre os caminhos e descaminhos da TV educativa e cultural no Brasil.
Com a existência de um panorama comercial na TV aberta e por assinatura
e de concessionárias plenamente estabelecidas, e com o sistema digital
a ser implantado num futuro próximo, a importância e reafirmação da
necessidade de canais de expressão e emissoras públicas é inevitável e
fundamental. Qual seria o papel e a contribuição social da TV pública
no Brasil, neste século XXI, que anuncia a revolução das tecnologias de
distribuição de sinais e o amplo desenvolvimento dos processos de
digitalização? Como financiar essa mudança?
Um pouco da história
A
trajetória da televisão educativa sempre foi confusa. Algumas emissoras
tiveram como raiz de sua criação razões de ordem política, outras
deveram sua existência à tenacidade individual de idealistas, mas de
forma geral foram todas concebidas com objetivos instrucionais, de
complementar a lacuna do ensino básico neste imenso país. Mas já no
decorrer dos anos 80, o conceito em torno das TVs educativas se
modificou. Jamais a TV poderia substituir a escola e, assim, elas
passaram a oferecer uma programação comprometida com a identidade
nacional, a cultura brasileira, a cidadania e a formação profissional
do comunicador social financiadas sempre pelos governos federais e
estaduais.
A
Abepec - Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e
Culturais surgiu em 1998, após desintegração do Sinred - Sistema
Nacional de Rede Educativa criado ainda nos anos 70, e tenta criar uma
certa regularidade de ações para organizar esse panorama carente de
legislação e regulação para as outorgas públicas, numa dimensão
atualizada e moderna. Composta hoje pelas quase 20 geradoras educativas
localizadas nas capitais e aproximadamente 1500 retransmissoras pelo
país inteiro, a Abepec luta pela sustentabilidade das emissoras educativas e culturais no Brasil.
O modelo estrutural das TV educativas, instaladas principalmente no Rio
de Janeiro e São Paulo, geraram situações atuais complexas, mas sem
dúvida possibilitaram algumas experimentações e formaram profissionais
diferenciados, condições fundamentais que justificaram sua existência
nesse complexo sistema brasileiro, dominado pelo modelo comercial de
televisão.
Foi ao refletir sobre a importância da televisão na vida de milhões de
brasileiros, no número de horas que são passadas em frente ao aparelho,
na carência educacional de nossa população e na força de penetração do
veículo, que as TVs culturais e educativas fizeram nos anos 90 uma
escolha estratégica: uma programação orientada para as questões da
infância. A TV Cultura de São Paulo, ligada ao governo do estado de São
Paulo e a TVE Brasil, emissora ligada ao poder federal e sediada no Rio
de Janeiro, ao transmitir hoje em rede para as demais educativas
brasileiras, muitas horas de programação infantil de extrema qualidade,
conquistaram uma boa parcela dessas crianças e de seus familiares,
oferecendo quantidade e variedade de programas infanto-juvenis, muitos
deles produzidos no Brasil, conseguindo bons índices de audiência.
Sem a implantação desse modelo, sem a presença de
parcerias com o Sesi, Fiesp, Ministérios da Cultura e da Educação,
Petrobras e Fundação Bradesco e sem a paixão, a dedicação, a
consciência e o talento de uma equipe de qualidade, nada teria
acontecido. Com essa opção, podemos dizer que a programação caminhou ao encontro
dos princípios da cidadania e, no decorrer de sua história de mais de
30 anos, nunca a TV educativa esteve tão perto da população como no
momento em que fez essa opção determinante. Foi pensando nas crianças e
nos jovens, indivíduos em formação, e pensando na educação dessa
geração televisiva que a emissora conseguiu grande simpatia e
justificou sua existência perante a sociedade. Os bons programas para
crianças e sobre as crianças passaram a ser fundamentais, e a educação
foi perseguida como pauta obrigatória, inclusive nos setores
jornalísticos da TV. Outros produtos se somaram à família Rá Tim Bum,
como A turma do Pererê, Cocoricó, Um menino muito maluquinho, Curta
criança, entre outros.
Mas como sustentar a TV pública?
A parceria com a iniciativa privada e a entrada de
patrocinadores privados com inserções publicitárias tem sido uma
realidade, mesmo que não assumida em lei. Mas como vamos estabelecer
direitos e limites que não resultem em outros interesses, que não os da
sociedade? Podemos justificar o uso comercial do espaço público com o
discurso da carência de recursos públicos ou ainda de financiamento
insuficiente para a manutenção de suas estruturas e necessidades? A TV
pública deve ser patrocinada por aqueles que comungam de seus objetivos
e que compartilham da sua missão. Num sistema predominantemente
comercial como o nosso, a TV pública deve fazer o contraponto e a
diferença. Por isso ela é pública e as outras são comerciais.
Como construir a TV para as novas gerações?
TV pública - O futuro
O Brasil se comunica pela televisão. Em Videologias,
obra lançada recentemente, que contém análises de Maria Rita Kehl e
Eugenio Bucci, os autores provam que existe um Brasil que se conhece e
reconhece pela TV, que hoje reina absoluta sobre o público nacional,
com um impacto e força muito superior aos outros veículos. "A TV
monologa dentro das casas brasileiras... A TV dá a primeira e a última
imagem sobre todos os assuntos.... A TV une e iguala, no plano
imaginário, um país cuja realidade é constituída de contrastes,
conflitos e contradições violentas" (3).
Há
no Brasil cerca de 40 milhões de lares com pelo menos um aparelho de
TV, e estima-se que em cada uma dessas casas exista em torno de duas
crianças. Estatísticas recentes nos informam que os brasileiros e
principalmente as crianças passam em média quase 4 horas em frente à TV
e muitas delas estão fora da escola.
Hoje
não basta diferenciar a TV pública utilizando a premissa da programação
de qualidade. Hoje não basta diferenciar a TV pública só por seu
conteúdo nacional, pois outros já se apoderaram dessas marcas. Hoje, a
rede pública que faz sentido se dará pela possibilidade de diversificar
as opiniões, de abrir os conteúdos, de tratar de todos os temas e
abordar todas as localidades. Essa será sua marca e sua qualidade.
Hoje, no Brasil, é preciso abrir as oportunidades, ouvir outras vozes e
ver e propiciar outros modelos e formatos.
O advento da digitalização permite colocar em pauta mais uma vez o
papel da TV pública no Brasil. Precisamos definir com clareza os
direitos e os deveres das TVs públicas nesse novo cenário. Construir um
projeto único de TV pública para o país, que fomente a produção
nacional, avalie os conteúdos, garanta a difusão por todo o território
nacional, contribuindo assim para a inclusão social e a democratização
da comunicação.
Para tanto, políticas públicas cuidadosas e conscientes são
necessárias, e a discussão deve acontecer da forma mais ampla possível
para que todos os atores possam se sentir representados e a TV pública
possa cumprir plenamente sua missão.
Beth Carmona é diretora presidente da
TVE Brasil e também preside a organização não-governamental Midiativa -
Centro Brasileiro de Mídia para Crianças. Foi diretora de programação
na TV Cultura de São Paulo, de 1990 a 1997.
Notas: 1. SIMÕES, Inimá. A nossa televisão brasileira: por um controle social da televisa. São Paulo, Senac, . p. 119. 2. LOPES, Vera de Oliveira Nusdeo. A lei da selva, em A TV aos 50 - Criticando a televisão brasileira no seu cinqüentenário. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, . p. 167. 3. KEHL, Maria Rita e BUCCI, Eugênio. Videologias. São Paulo, Boitempo Editorial, pp. 242 e 222.
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