REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
Economia digital - Carlos Vogt
Reportagens
Política rege concessões de rádio e TV
Rodrigo Cunha
Os donos da bola
Yurij Castelfranchi
A briga pela TV Digital agora é no campo jurídico
Carolina Cantarino
Comunicação livre: delito ou direito?
André Gardini
Internet sem fio em benefício de quem?
Flávia Gouveia
Artigos
A sociedade dos poetas vivos
Takashi Tome
TV Digital: atropelos e mitos de um processo que não terminou
Michelle Prazeres
Espectro aberto e compartilhamento
Sérgio Amadeu da Silveira
Papel e a contribuição social da TV pública
Beth Carmona
TV pública e o trabalho da TV Cultura
Jorge da Cunha Lima
Resenha
Sob fogo cerrado
Susana Dias
Entrevista
Eugênio Bucci
Entrevistado por Marta Kanashiro. Foto: Pablo Lorenzzoni
Poema
Guerra Santa
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Artigo
Papel e a contribuição social da TV pública
Por Beth Carmona
10/10/2006

É relativamente recente o entendimento e a prática dos conceitos de TV pública no Brasil. O país optou desde o início pelo caminho da cessão de concessões para exploração dos sinais de TV ao setor privado, não implantando nenhuma política estratégica em relação à utilização do rádio e da televisão, com objetivos claramente sociais. A presença maior do Estado no campo dos meios de comunicação só se fez sentir no início dos anos 70, quando da implantação de um sistema educativo de rádio e televisão bastante irregular e frágil, nos diferentes estados da federação. Com uma trajetória cheia de interferências políticas, as televisões educativas, atualmente mais identificadas com o conceito de TVs públicas, encontram até hoje grandes dificuldades de sobrevivência, em função da falta de uma política clara em relação à utilização dos meios de comunicação a serviço da sociedade.

A TV brasileira, nascida na década de 50, desenvolveu-se num clima liberal, com emissoras traçando uma programação de entretenimento, alinhada por parâmetros comerciais que visam principalmente o mercado de consumo, tendo como objetivo principal sua sustentação empresarial e lucratividade, ao lado de uma política de competitividade que hoje opera praticamente sem limites ou obrigações no que se refere ao seu conteúdo.

A indústria televisiva brasileira cresceu, estabeleceu-se e tem mostrado sua eficiência. Telenovelas brasileiras viajam pelo mundo todo e trata-se de um gênero latino mais do que reconhecido no mercado industrial. Porém, a abertura de novos canais, a chegada da TV por assinatura, há mais de 10 anos, e a competição pela maior audiência na TV aberta passou a determinar a programação, gerando nos dias de hoje, por vezes, a banalização da violência, do sexo, a discriminação e o preconceito, ignorando valores culturais da identidade nacional e ferindo, muitas vezes, os valores éticos e humanos. Os excessos e a falta de regulamentação acabaram por colocar a discussão sobre a qualidade da TV na agenda social do país.

Hoje, a população e o Estado começam a se dar conta da necessidade de uma televisão voltada para a sociedade, com uma programação que valorize o público não somente como consumidor, mas fundamentalmente como cidadão. Um sistema público de comunicação é necessário para a democracia. Os parâmetros de qualidade dos conteúdos, a valorização da economia do audiovisual, a formação de profissionais de comunicação com espírito social, a experimentação, a diversidade de idéias e opiniões, são apenas alguns compromissos e missões do sistema público. Organizações Não Governamentais como TVER, Andi (Agência de Notícias dos Direitos da Infância) e Midiativa (Centro Brasileiro de Mídia para Crianças e Adolescentes), a Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, com iniciativas como a campanha "Quem financia a baixaria é contra a cidadania", a existência do Conselho de Comunicação Social, o movimento de democratização da comunicação, o coletivo InterVozes, são apenas algumas das ações que vêm debatendo os temas referentes à comunicação social com a opinião pública e com diferentes setores da sociedade.

A televisão é um poderoso instrumento de fortalecimento dos valores e costumes e, portanto, deveria ser contemplada dentro de políticas públicas. O Estado praticamente tem se limitado a conceder o canal, controlá-lo do ponto de vista técnico, para a disciplina e ordenação do espectro eletromagnético. As últimas tentativas de discussão ou revisão do modelo de radiodifusão e regulamentação têm sido freqüentemente atropeladas. Inimá Simões em "A nossa televisão brasileira: por um controle social da televisão" reforça, "A inexistência de uma política cultural para a televisão é um dos mais sérios problemas do Brasil....apesar dos compromissos estabelecidos na Constituição de 1988, o tema permanece em hibernação até há pouco tempo porque nunca interessou às elites brasileiras discutir uma regulamentação que se consolidasse em leis fundamentadas e aplicáveis."(1). Vera de Oliveira Nusdeo Lopes, jornalista e procuradora do Estado, no ensaio "A lei da selva", afirma que a legislação existente hoje no Brasil não contribui para a formação de uma mentalidade, tanto em quem assiste como nos concessionários de televisão, baseada no direito à informação, na prestação do serviço e no respeito a valores éticos e morais. Se comparada à legislação de outros países, o exercício da atividade televisiva no Brasil, no que diz respeito ao seu aspecto jurídico-legal, "...é de um laconismo que reflete com perfeição a falta de consciência da relevância do meio televisivo no mundo contemporâneo e, conseqüentemente, a responsabilidade social subjacente ao exercício desta atividade" (2).

Em busca da TV pública - as emissoras educativas e culturais

Frente a esta situação é mais do que oportuno que se discuta e se reflita sobre os caminhos e descaminhos da TV educativa e cultural no Brasil. Com a existência de um panorama comercial na TV aberta e por assinatura e de concessionárias plenamente estabelecidas, e com o sistema digital a ser implantado num futuro próximo, a importância e reafirmação da necessidade de canais de expressão e emissoras públicas é inevitável e fundamental. Qual seria o papel e a contribuição social da TV pública no Brasil, neste século XXI, que anuncia a revolução das tecnologias de distribuição de sinais e o amplo desenvolvimento dos processos de digitalização? Como financiar essa mudança?

Um pouco da história

A trajetória da televisão educativa sempre foi confusa. Algumas emissoras tiveram como raiz de sua criação razões de ordem política, outras deveram sua existência à tenacidade individual de idealistas, mas de forma geral foram todas concebidas com objetivos instrucionais, de complementar a lacuna do ensino básico neste imenso país. Mas já no decorrer dos anos 80, o conceito em torno das TVs educativas se modificou. Jamais a TV poderia substituir a escola e, assim, elas passaram a oferecer uma programação comprometida com a identidade nacional, a cultura brasileira, a cidadania e a formação profissional do comunicador social financiadas sempre pelos governos federais e estaduais.

A Abepec - Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais surgiu em 1998, após desintegração do Sinred - Sistema Nacional de Rede Educativa criado ainda nos anos 70, e tenta criar uma certa regularidade de ações para organizar esse panorama carente de legislação e regulação para as outorgas públicas, numa dimensão atualizada e moderna. Composta hoje pelas quase 20 geradoras educativas localizadas nas capitais e aproximadamente 1500 retransmissoras pelo país inteiro, a Abepec luta pela sustentabilidade das emissoras educativas e culturais no Brasil.

O modelo estrutural das TV educativas, instaladas principalmente no Rio de Janeiro e São Paulo, geraram situações atuais complexas, mas sem dúvida possibilitaram algumas experimentações e formaram profissionais diferenciados, condições fundamentais que justificaram sua existência nesse complexo sistema brasileiro, dominado pelo modelo comercial de televisão. Foi ao refletir sobre a importância da televisão na vida de milhões de brasileiros, no número de horas que são passadas em frente ao aparelho, na carência educacional de nossa população e na força de penetração do veículo, que as TVs culturais e educativas fizeram nos anos 90 uma escolha estratégica: uma programação orientada para as questões da infância. A TV Cultura de São Paulo, ligada ao governo do estado de São Paulo e a TVE Brasil, emissora ligada ao poder federal e sediada no Rio de Janeiro, ao transmitir hoje em rede para as demais educativas brasileiras, muitas horas de programação infantil de extrema qualidade, conquistaram uma boa parcela dessas crianças e de seus familiares, oferecendo quantidade e variedade de programas infanto-juvenis, muitos deles produzidos no Brasil, conseguindo bons índices de audiência.

Sem a implantação desse modelo, sem a presença de parcerias com o Sesi, Fiesp, Ministérios da Cultura e da Educação, Petrobras e Fundação Bradesco e sem a paixão, a dedicação, a consciência e o talento de uma equipe de qualidade, nada teria acontecido.

Com essa opção, podemos dizer que a programação caminhou ao encontro dos princípios da cidadania e, no decorrer de sua história de mais de 30 anos, nunca a TV educativa esteve tão perto da população como no momento em que fez essa opção determinante. Foi pensando nas crianças e nos jovens, indivíduos em formação, e pensando na educação dessa geração televisiva que a emissora conseguiu grande simpatia e justificou sua existência perante a sociedade. Os bons programas para crianças e sobre as crianças passaram a ser fundamentais, e a educação foi perseguida como pauta obrigatória, inclusive nos setores jornalísticos da TV. Outros produtos se somaram à família Rá Tim Bum, como A turma do Pererê, Cocoricó, Um menino muito maluquinho, Curta criança, entre outros.

Mas como sustentar a TV pública?

A parceria com a iniciativa privada e a entrada de patrocinadores privados com inserções publicitárias tem sido uma realidade, mesmo que não assumida em lei. Mas como vamos estabelecer direitos e limites que não resultem em outros interesses, que não os da sociedade? Podemos justificar o uso comercial do espaço público com o discurso da carência de recursos públicos ou ainda de financiamento insuficiente para a manutenção de suas estruturas e necessidades? A TV pública deve ser patrocinada por aqueles que comungam de seus objetivos e que compartilham da sua missão. Num sistema predominantemente comercial como o nosso, a TV pública deve fazer o contraponto e a diferença. Por isso ela é pública e as outras são comerciais.

Como construir a TV para as novas gerações?
TV pública - O futuro

O Brasil se comunica pela televisão. Em Videologias, obra lançada recentemente, que contém análises de Maria Rita Kehl e Eugenio Bucci, os autores provam que existe um Brasil que se conhece e reconhece pela TV, que hoje reina absoluta sobre o público nacional, com um impacto e força muito superior aos outros veículos. "A TV monologa dentro das casas brasileiras... A TV dá a primeira e a última imagem sobre todos os assuntos.... A TV une e iguala, no plano imaginário, um país cuja realidade é constituída de contrastes, conflitos e contradições violentas" (3).

Há no Brasil cerca de 40 milhões de lares com pelo menos um aparelho de TV, e estima-se que em cada uma dessas casas exista em torno de duas crianças. Estatísticas recentes nos informam que os brasileiros e principalmente as crianças passam em média quase 4 horas em frente à TV e muitas delas estão fora da escola.

Hoje não basta diferenciar a TV pública utilizando a premissa da programação de qualidade. Hoje não basta diferenciar a TV pública só por seu conteúdo nacional, pois outros já se apoderaram dessas marcas. Hoje, a rede pública que faz sentido se dará pela possibilidade de diversificar as opiniões, de abrir os conteúdos, de tratar de todos os temas e abordar todas as localidades. Essa será sua marca e sua qualidade. Hoje, no Brasil, é preciso abrir as oportunidades, ouvir outras vozes e ver e propiciar outros modelos e formatos.

O advento da digitalização permite colocar em pauta mais uma vez o papel da TV pública no Brasil. Precisamos definir com clareza os direitos e os deveres das TVs públicas nesse novo cenário. Construir um projeto único de TV pública para o país, que fomente a produção nacional, avalie os conteúdos, garanta a difusão por todo o território nacional, contribuindo assim para a inclusão social e a democratização da comunicação. Para tanto, políticas públicas cuidadosas e conscientes são necessárias, e a discussão deve acontecer da forma mais ampla possível para que todos os atores possam se sentir representados e a TV pública possa cumprir plenamente sua missão.


Beth Carmona é diretora presidente da TVE Brasil e também preside a organização não-governamental Midiativa - Centro Brasileiro de Mídia para Crianças. Foi diretora de programação na TV Cultura de São Paulo, de 1990 a 1997.


Notas:

1. SIMÕES, Inimá. A nossa televisão brasileira: por um controle social da televisa. São Paulo, Senac, . p. 119.
2. LOPES, Vera de Oliveira Nusdeo. A lei da selva, em A TV aos 50 - Criticando a televisão brasileira no seu cinqüentenário. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, . p. 167.
3. KEHL, Maria Rita e BUCCI, Eugênio. Videologias. São Paulo, Boitempo Editorial, pp. 242 e 222.