Ensino novo ou tradicional? Centrado no professor ou no aluno? Priorizar a teoria ou a prática? Formar para a cidadania ou para o trabalho? A Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP), uma proposta estadunidense adotada principalmente nos cursos de medicina brasileiros, coloca em cena as caras e coroas da educação e busca responder às demandas que caracterizam as sociedades contemporâneas. Partilhando dos princípios do construtivismo e do movimento da Escola Nova, investe na construção da autonomia do aluno no processo de ensino-aprendizagem. Aposta na formação de jovens ativos, hábeis em lidar com um mundo marcado pelo lançamento incessante de inovações tecnológicas e pelo excesso de circulação de informações, imagens, textos e sons. Habilidades e competências que interessam ao mercado de trabalho e que indicam tendências futuras do campo educacional.
Eduardo Terrazzan, no livro Pesquisa em ensino de ciências no Brasil, analisa como o progresso tecnológico, que caracterizou o século XX e, agora, o XXI, mudou as expectativas em relação à educação, fazendo como que os sistemas educacionais não procurem mais formar “mão-de-obra para empregos industriais estáveis”. Já há algum tempo, os educadores se deparam com o fato de que o conhecimento vem sendo produzido de forma tão rápida que não faz mais sentido um modelo de ensino dito “conteudista”. Os conteúdos a serem ensinados seriam continuamente mudados e mais informações são acrescentadas a todo momento, fazendo com que se manter atualizado seja extremamente difícil. O aparecimento das chamadas sociedades da informação ou do conhecimento expõe uma dimensão cada vez mais imaterial do trabalho e termina por acentuar o papel desempenhado pelas aptidões intelectuais e cognitivas. Segundo Terrazan, nesse cenário “trata-se de se formar pessoas para a complexidade e para a inovação, formar pessoas capazes de evoluir de modo crítico e ético, não só capazes de se adaptar a um mundo em rápida mudança, mas também capazes de atuar e influenciar nas transformações, dominando-as e orientando-as”.
Para Bayardo Baptista Torres, especialista em ensino de bioquímica da Universidade de São Paulo (USP), diante desse cenário, as mudanças esperadas na educação apontam para uma “quebra do paradigma vigente, estabelecendo novos papéis para os alunos e professores. O aumento exponencial do conhecimento acarreta a necessidade de desenvolver nos estudantes a autonomia para a atualização permanente, em lugar de lhes oferecer informações que poderão estar desatualizadas ao término de seus cursos”. Torres, que considera sua didática muito próxima à do APB, ou à Problem-based Learning (PBL), ressalta que essa proposta investe nos mesmos caminhos apontados pela United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (Unesco) e pelo Ministério da Educação (MEC): desenvolvimento de competências e habilidades, da capacidade de resolver problemas, do trabalho em equipe”.
Um grande apelo da ABP, segundo Evelin Maraguchi, coordenadora do Colegiado do Curso de Medicina da Universidade Estadual de Londrina (UEL), é o fato de que a informação obtida é armazenada de forma integrada, em um trabalho ativo que envolve o estudante e o professor orientador. O armazenamento integrado significa que não existem mais disciplinas em que os diferentes tópicos são tratados separadamente. Ao invés disso, o curso é orientado por problemas que envolvem diversos tópicos, num processo denominado aprendizagem significativa. “Os problemas são situações concretas relacionadas com sua vida, o que estimula a curiosidade do estudante, pois ele enxerga perfeitamente qual a utilidade daquilo para sua vida profissional”, diz Maraguchi.
Posição esta confirmada também pelo aluno Dario Garcia, do quarto ano da Faculdade de Medicina de Marília (Famema). Ele enumera como pontos positivos da PBL: a otimização do tempo, ensino significativo e não apenas memorização para fazer provas, promoção da autonomia dos estudantes para que, depois de formados, saibam onde e como adquirir os conhecimentos que necessitem, reforçando a postura de autossuficiência que deveria perdurar durante a vida profissional.
Progressista versus tradicional
Lousa, giz e professor. Computador, internet e aluno. Estes objetos e personagens são quase sempre acionados pelos discursos que caracterizam um ensino tradicional ou progressista. As propostas de aprendizagem ativa e baseada em problemas propõem uma inovação no ambiente escolar, com uma revisão dos papéis que seriam desempenhados tradicionalmente por professores e alunos em sala de aula, colocando-se como um discurso progressista na educação. Tal discurso, segundo Guilherme Marson, químico e especialista na área de educação da USP, opõe-se “ao método tradicional que, na prática, ainda prevalece nas escolas”.
Marson explica que uma das grandes diferenças do discurso progressista em relação ao método tradicional é a forma como o próprio aluno é visto. “O aluno é encarado como uma pessoa que sabe coisas, que traz uma história, que traz um conjunto de saberes originados das vivências pessoais, da cultura, do ambiente socioeconômico dessa pessoa”. O aluno, então, deixa de ser alguém sem conhecimentos e que vai à escola aprender sobre tudo. Ao invés disso, a escola passa a ser o local onde este, com todos os seus conhecimentos prévios e saberes, entra em contato com o legado cultural. Para existir coerência com essa postura, Marson acredita que esse contato deve ser baseado na exploração e na descoberta, de forma a permitir que o estudante estabeleça uma relação pessoal com esse legado cultural.
Da mesma forma que a definição de aluno se modifica no discurso progressista, também muda o papel do professor na escola. O professor deixa de ser um “transmissor do conhecimento”, ou o “verificador da memorização desse conhecimento estático”, e passa a ser um companheiro do estudante, alguém que vai o auxiliar nessa trajetória. A relação entre professor e aluno, continuaria assimétrica, uma vez que, “o professor é o representante do legado cultural, com tudo que ele tem de bom e com tudo que ele tem de ruim”, como explica Marson. Entretanto, nessa concepção, o sujeito central da aprendizagem seria o aluno. Outra mudança significativa que se dá é a do espaço escolar, que deixa de estar centrado na escola e passa a ser tudo o que o estudante vive e experimenta. “O espaço de aprendizagem transborda a escola, ele passa a ser a sociedade também, tudo isso num continuum de um espaço determinado. Então, não é mais o exemplo do dia a dia, é o dia a dia mesmo”, explica Marson.
Se, por um lado, a ênfase no aluno, na autonomia, na autossuficiência é vista como forma de se atingir uma aprendizagem significativa, também aparece como um obstáculo no processo de ensino-aprendizagem. Mariana Nobre, que estuda no quarto ano da Faculdade de Medicina de Marília (Famema), que adota o método de ensino PBL, destaca como pontos positivos do método da PBL a maior produtividade do aluno e a assimilação do conteúdo, mas enfatiza a dificuldade inicial de adaptação, principalmente nos dois primeiros anos. “Em alguns momentos nos sentimos meio que desamparados, pois não temos a noção de até onde teremos que estudar sozinhos, porque não temos aulas com o professor explicando toda a matéria ” , diz.
A simples oposição entre ensino progressista e tradicional é, entretanto, recusada por professores e pesquisadores da própria área e que atuam com o método no ensino de medicina. Maraguchi, por exemplo, conta que o curso de medicina da UEL, que segue a linha PBL da primeira à quarta série, não abandonou completamente as metodologias do ensino tradicional. “Existem tópicos que são mais bem abordados pelos especialistas, que mostram em palestras, mesas redondas ou discussões de casos, sua experiência com aquele tema, e permitem discussões mais ricas e uma melhor formação profissional”, diz a professora da UEL.
Para os autores do artigo “Os anéis da serpente: a aprendizagem baseada em problemas e as sociedades de controle”, publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva , Rodrigo Siqueira-Batista e Romulo Siqueira-Batista, não cabe dizer se a ABP, ou qualquer outra proposta é tradicional ou inovadora, não cabe dizer qual seria o melhor método – porque todos enfrentam suas liberações e sujeições –, mas “resistir a conceber a educação permanente como negação da terminalidade, que oculta, de fato, uma perspectiva de condução dividual dos profissionais de saúde, em termos da lógica de mercado”.
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