10/04/2007
Estamos todos no mesmo barco: com uma necessidade premente de substituir os combustíveis fósseis por alternativas renováveis. O mar, entretanto, não está para peixe. O potencial brasileiro para exploração do álcool combustível agita o oceano de negócios em todo mundo. Para Bautista Vidal, engenheiro e físico apaixonado pelos biocombustíveis, em especial pelo etanol, o Brasil tem um enorme potencial, mas está sem leme. Não há nenhuma instituição cuidando rigorosamente da energia renovável. Sem uma estrutura que determine a direção da proa brasileira, o Estado não conseguirá ajudar os pequenos agricultores, desenvolver tecnologia e abrir o mercado externo. Vidal defende a criação de uma empresa de economia mista para gerir o álcool – como temos a Petrobras para o petróleo – para que o barco não fique à deriva, navegando ao sabor dos ventos das grandes corporações que querem dominar o setor. Ainda nesta entrevista, o pai do Proálcool faz severas críticas: à “parceria” com os Estados Unidos; à possibilidade de transformação do álcool em commodity, que considera uma deformação brutal; e à aposta nos transgênicos de biocombustíveis.
ComCiência – A aposta no álcool pode provocar uma competição da cultura da cana com outras culturas, gerar falta de alimento e aumento do preço do próprio álcool e de alimentos. Como o senhor avalia essas críticas?
Bautista Vidal - Li sobre os pronunciamentos de Fidel Castro combatendo o programa do álcool. Ele está profundamente equivocado, porque a produção de álcool dá como subproduto uma grande quantidade de alimentos. Esses comentários demonstram falta de informação. Estou até procurando o embaixador para passar as informações corretas. Por exemplo, as micro usinas novas estão acoplando a produção de cana com a criação de gado confinado. O gado é alimentado com bagaço de cana e o vinhoto. Uma usina de 200 litros/dia permite criar 80 cabeças de gado, produzindo carne e leite. Como consequência, você tem uma grande quantidade de adubo orgânico, que eleva a produtividade da agricultura. Outro exemplo é a mandioca. A raiz dá álcool e a parte aérea da folha é um rico alimento que tem 27% de proteína. É possível produzir uma quantidade enorme de ração animal e humana a partir das folhas. O dendê é outro exemplo. Ao esmagar o dendê retira-se o óleo e o que sobra se transforma em ração. O girassol também. Já a mamona dá adubo. Em geral, a produção de biocombustíveis dá como consequência um aumento na produção de alimentos. Então, é um equívoco total essa história de que o álcool vai substituir outras plantações, ou diminuir a produção de alimentos. O que vai acontecer é um barateamento do álcool. Essas usinas com tecnologias novas produzem álcool, mas também produzem cachaça, açúcar mascavo e alimentam gado, produzindo carne, leite e adubo orgânico. São o caminho para implantarmos um milhão de micro usinas no Brasil e aumentar enormemente a produção de carne, leite e adubo.
ComCiência – Essas micro usinas funcionam por cooperativas de pequenos agricultores?
Vidal - Não ainda. Por enquanto o que há é uma usina piloto que está em operação há três anos e que fica próxima a Belo Horizonte. Nós estamos aperfeiçoando ao máximo a tecnologia dela porque o preço do álcool sai muito reduzido e ainda são produzidos todos esses outros agregados.
ComCiência – Como o senhor imagina que esse um milhão de micro usinas pode ser implementado?
Vidal - Bastaria o governo criar uma demanda organizada e dar mais atenção à questão energética. O governo está falando muito, mas não está fazendo nada. Não há nenhuma instituição cuidando rigorosamente da energia renovável. Quando nós quisemos entrar na era do petróleo criamos a Petrobras. É preciso criar um organismo do Estado para ajudar os pequenos agricultores, desenvolver tecnologia, abrir o mercado externo, porque o mercado de energia renovável é mundial. Está faltando uma instituição que conheça com profundidade as peculiaridades do setor e que possa ajudar o pequeno produtor. Por exemplo, o Lula foi ontem para os EUA, esteve em Camp David, quem o assessorou. Não teve nenhuma instituição que desse para ele as informações corretas. Até nessa chamada “parceria” com os EUA, nós entramos com tudo e os americanos entram para dominar, para controlar o mercado externo, controlar o setor. Como eles já fizeram com a soja, com o leite e com o petróleo, em termos mundiais. Dominando a distribuição, eles dominam o setor. Agora, o grande risco, que já está acontecendo, é o da compra de terras e usinas, porque o Brasil é o único território capaz de produzir energia renovável em grandes proporções. Nós vamos ser apenas o local onde o álcool será explorado por corporações estrangeiras, que vão distribuir esses combustíveis a nível mundial.
ComCiência – Como o senhor avalia essa “diplomacia do etanol” com o presidente Bush? A “parceria” pode ser vantajosa?
Vidal - Eu só vejo perdas. Porque o Brasil tem um potencial enorme, muita luz solar, muita terra, a melhor tecnologia do mundo e 30 anos de experiência. Temos gente muito preparada trabalhando há 30 anos. Essa diplomacia veio pra tomar conta disso, distribuir a nível mundial e definir as políticas. Ontem, por exemplo, li uma coisa que acho uma barbaridade: a idéia de irmos para o Haiti e Angola para desenvolver o povo de lá com a produção de álcool. Países complicadíssimos. Daqui há pouco vamos ter que mandar soldados para soltar os técnicos do álcool, porque o povos desses lugares vão reagir a essa idéia. Nós temos tudo para fazer no Brasil, temos o mercado mundial aberto para nós ocuparmos, mas nós não somos preparados para isso. Não temos uma instituição que cuide disso. O despreparo é total. Um momento como esse representa políticas que têm um alcance de vinte anos futuros. Qual é a informação que o Lula tem para discutir com o Bush essas coisas? Não tem. Nossa perspectiva é de sermos uma colônia de sexta categoria, sem que tenhamos nem o território mais, porque eles já estão comprando.
Comciência – Quem seriam os melhores parceiros para o Brasil?
Vidal - Primeiro os países que dependem do petróleo e não têm uma gota sequer. Por exemplo, o Japão, a Alemanha e a China. A China está queimando carvão mineral adoidado e precisa de alternativas por causa do efeito estufa, do aquecimento global. Precisa parar de queimar carvão mineral e o único país que pode ajudar a China nisso é o Brasil. São parceiros de grande consumo, envolvendo populações gigantescas. Por curiosidade, agora estão se tornando parceiros brasileiros os países do Golfo, que detêm grandes reservas de petróleo. Esses países estão com medo da invasão americana e a solução brasileira reduz as tensões sobre eles. Por isso eles estão interessados em participar como nossos sócios na produção das energias renováveis. Além disso, tem a Itália, a Espanha etc. Há um mercado mundial aberto, nunca nenhum país teve uma oportunidade dessa. E nós estamos despreparados para enfrentar isso, por falta de uma estrutura, de uma instituição que cuide do assunto. Quando o Programa do Álcool foi implantado havia a Secretaria de Tecnologia Industrial, que cuidava da coordenação geral, dos investimentos. Na época do “Petróleo é nosso” foi criada a Petrobras. Hoje não existe ninguém. Como vamos exportar para o Japão, China e Índia grandes demandas, se não temos uma instituição cuidando disso? A Petrobras cuida de mineração e vê essas energias como competidoras. O que existe no governo é negativo. O Ministério de Minas e Energia é ocupado pelas energias convencionais. Nós estamos muito mal de estruturas que cuidem do assunto e possam assessorar o governo, no momento que o mundo todo está cobrando do Brasil. No prazo de duas semanas vieram três grandes chefes de Estado: primeiro, o presidente da Alemanha Horst Köhler, depois o primeiro ministro italiano Romano Prodi e o Bush. E virão mais. China, Japão... Virão porque a única solução mundial para a questão energética é o continente tropical brasileiro.
ComCiência – O senhor mencionou a possibilidade do Brasil exportar álcool e óleo vegetal. Existem posições contrárias a essa, inclusive no governo, que questionam a viabilidade do Brasil exportar álcool e a real vantagem econômica disso. A saída, dizem, seria exportar tecnologias, equipamentos e conhecimentos. Fornecer possibilidades para que países, como China e Japão, possam produzir. Como o sr. avalia essas posições? Exportar álcool é um bom negócio?
Bautista Vidal - Sim. Como é que o mundo vai funcionar? O álcool é melhor combustível do que a gasolina. Os óleos vegetais, não apenas o álcool, são uma alternativa muito vantajosa. Quem defende que a exportação de etanol não é interessante economicamente, está em defesa dos interesses das corporações americanas, que querem tomar conta do programa brasileiro, trinta anos depois de ter sido criado.
ComCiência – Em que consiste a idéia que tem circulado bastante nas mídias: a transformação do álcool em commodity. O que vem a ser isso? Como o senhor analisa essa possibilidade?
Vidal - O álcool é substituto de um importante derivado do petróleo e o mundo está hoje em guerra devido ao fim do petróleo. Como um substituto dele vira uma commodity? Commodity é um negócio que se vende na esquina, que se entrega à manipulação nas bolsas de valores. A condução do petróleo no mundo é uma questão militar, estratégica. No caso do Brasil, o álcool é a única solução para superar o problema do petróleo. O açúcar é uma commodity, mas ele é uma sobremesa, já o álcool não. É um produto altamente estratégico que substitui o petróleo. Essa idéia é uma barbaridade. Por exemplo, o primeiro dano que vai acontecer com isso é essa sobretaxa norte-americana se estender pelo mundo. No Brasil, o preço do álcool vai duplicar, porque nos EUA ele custa o dobro. É uma barbaridade. Até conceitualmente não tem nenhum sentido. O álcool é um produto altamente estratégico, que tem que ficar nas mãos dos brasileiros, o que implica em posse de território, que é sagrado, e isso não tem nada a ver com commodity. Isso é uma deformação brutal que querem implantar para que os grandes tecnocratas estrangeiros continuem a dominar o setor. E nós não teremos o controle de um produto estratégico como esse. Essa idéia é altamente deformadora, que visa entregar a produção a grupos externos que manipulam as bolsas de valores. O Brasil não vai ter nenhuma possibilidade de controle, porque as grandes corporações vão tomar conta. Isso feito com açúcar tudo bem, porque é uma sobremesa, mas álcool não. Ele substitui o petróleo. É um bem estratégico. Isso foi feito com o petróleo e veja no que resultou: as corporações americanas dominam absolutamente os banqueiros. Ficam donos. É o que eles querem com essa energia do futuro do mundo: o petróleo é a energia do passado, eles querem se apoderar, transformando em commodity. Esse é um equívoco enorme do governo brasileiro aceitar essa hipótese.
ComCiência – Em termos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico, onde o sr. acha que o Brasil deveria investir para se manter na posição de liderança?
Vidal - O Brasil tem 40 anos investindo pesado nisso. A origem do programa do álcool foi a Secretaria de Tecnologia Industrial, e eu era o secretário. Nós fizemos a rede tecnológica nacional funcionar em toda a sua plenitude. Uma rede importante. Temos o melhor centro do mundo de tecnologia de motores para uso do álcool: o Centro Técnico Aeroespacial Brasileiro. Temos também o maior instituto de produção de tecnologia de álcool em Piracicaba, São Paulo, a Copersucar. Vem gente do mundo inteiro para conhecer essas instituições, inclusive os americanos. Foi o investimento de 40 anos nessa tecnologia que alavancou o Programa do Álcool. Um programa muito bem fundamentado, ao contrário da maioria dos setores industriais brasileiros que não têm capacidade tecnológica. Nós temos a melhor tecnologia do mundo, mas é preciso investir sempre. Por exemplo, os americanos estão falando em retirar álcool de celulose de madeira. Nós fizemos isso há 30 anos atrás e depois chegamos a conclusão que não era um caminho razoável, porque era muito caro. O José Goldenberg físico, ex-diretor de empresas de energia chegou a comprar uma tecnologia russa, e nós tivemos acesso a ela e a toda complementação industrial que existia lá. Enviamos um especialista nosso para lá, que desaconselhou o investimento nessa tecnologia. Mais tarde o Goldenberg resolveu comprar essa tecnologia dos russos. Montaram uma usina em Uberlândia. Essa usina que nunca produziu e foi sucateada. É isso que os americanos querem fazer agora. Algo que nós já experimentamos há 30 anos atrás.
ComCiência - Com a aposta nos biocombustíveis ganham força as discussões sobre os transgênicos (de cana, de mandioca, de milho) que prometem aumentar a produção por hectare, melhor adaptação aos solos pobres e menor necessidade de água. Qual a sua opinião sobre essas tecnologias?
Vidal - Os transgênicos são uma barbaridade. São o controle monopolítico através das patentes. O problema não é apenas o transgênico, mas a patente. Eles ficam donos mundiais. Quem usar o produto patenteado pega cadeia, pela legislação brasileira. A vida está sendo atingida. Além disso, o transgênico permite o monopólio por um grupo pequeno de grandes corporações estrangeiras e destrói a agricultura brasileira. Os agricultores têm que ficar subordinados aos donos da patente.
ComCiência – Como o senhor avalia a participação da CTNBio na gestão dos recursos genéticos?
Vidal - Eu estou vendo com muita preocupação. Soube que na última reunião houve uma confusão porque colocaram o patenteamento do transgênico do milho. O Brasil daqui há pouco vai ficar com toda sua produção de alimentos nas mãos de duas ou três corporações estrangeiras, e o agricultor nacional vai à falência. Aliás, o Lula prestou um grande desserviço quando retirou os ambientalistas – eu não sou ambientalista, mas defendo o meio ambiente –, que estavam contra o transgênico do milho, por causa dos conflitos. Ele retirou para facilitar a aprovação. Isso é uma coisa bárbara. O único que está resistindo, aparentemente, é o governador do Paraná.
ComCiência – O senhor gostaria de dizer mais alguma coisa antes de terminarmos?
Vidal - Eu queria dizer que a alternativa dos combustíveis renováveis é a solução para o mundo, porque os combustíveis não renováveis acabam e levam à guerra, como já levaram. O mundo todo está preocupado. O mundo todo está com a esperança que o Brasil leve avante esse programa de energia renovável, para abastecer o mundo com a única coisa concreta que existe para evitar essa guerra. Além disso, o Brasil descobriu um caminho: o uso da grande fonte de energia quase eterna, o Sol. É o Brasil que vai resolver o problema energético do mundo e a questão ambiental do efeito estufa, assuntos que estão intimamente vinculados. Mas esse salto qualitativo e quantitativo não acontece sem instrumentos adequados, sem instituições que conheçam o assunto, invistam no assunto, desenvolvam tecnologia, protejam os pequenos produtores, que sabem plantar e produzir, mas que são muito vulneráveis. Sobretudo vulneráveis aos investidores internacionais que compram essas pequenas produções e usinas. O território tropical passa a ter um valor muito grande porque vai substituir os campos de petróleo da Arábia Saudita. Nós inventamos plantar a energia, ao invés de depender da energia fóssil. Essa é uma contribuição decisiva para a humanidade que depende, fundamentalmente disso. Isso nos dá uma responsabilidade muito grande, de ter instrumentos operativos, criar rapidamente essa empresa de economia mista, para que possa cuidar do mercado externo, cuidar do desenvolvimento tecnológico, proteger o pequeno produtor e assessorar o presidente da República. Nós não podemos entregar tudo isso a troco de nada. Isso seria um crime contra o povo brasileiro e contra a esperança mundial que se deposita no Brasil. Ao queimar combustíveis renováveis e limpos, no Brasil, a questão do efeito estufa fica superada, além de todos os outros benefícios sociais: criar 20 milhões de postos de trabalho e desenvolver a agricultura familiar de forma fantástica com as micro-usinas. Mas é preciso a decisão política de fazer e a coragem. Que Deus nos proteja, né (risos). Tenhamos clarividência de nos preparamos para esse grande desafio, em favor da humanidade e da paz.
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