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Caatinga, futebol e esperança - Carlos Vogt
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Caatinga: um bioma entre a devastação e a conservação
Maria Marta Avancini e Glória Tega
De guerras e revoltas no semiárido: índios, sebastianismo e o papel do Estado
Ricardo Manini
Um pouco sobre a arte que nasce no sertão
Meghie Rodrigues
Memória e preservação. O desconhecido da região mais conhecida do Piauí
Glória Tega
A vegetação da Caatinga: das alternativas medicinais às ameaças
Júlia Melare
Artigos
A Caatinga e suas aves
Caio Graco Machado
Os preceitos ecológicos do Padre Cícero como lições de convivência harmoniosa com o semiárido nordestino
Judson Jorge da Silva
Em busca de uma estratégia de adaptação às mudanças climáticas no semiárido brasileiro
João Nildo S. Vianna, Marcelo C. Pereira, Laura M.G. Duarte, Magda E. Wehrmann
Os vinhos tropicais em desenvolvimento no Nordeste do Brasil
Giuliano Elias Pereira
Produção pecuária na Caatinga
Marcelo de Andrade Ferreira
A lacuna entre a legalidade e a realidade da transposição do rio São Francisco
Bleine Queiroz Caúla e Graziella Batista de Moura
O sertão e sua gente no relato Viagem científica
Liane Maria Bertucci
Resenha
Os diversos ângulos da Caatinga
Por Ricardo Schinaider de Aguiar
Entrevista
Newton Barcellos
Entrevistado por Cíntia Cavalcanti
Poema
Quincas Borba revisitado
Carlos Vogt
Humor
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João Garcia
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Reportagem
Um pouco sobre a arte que nasce no sertão
Por Meghie Rodrigues
10/06/2013

Talvez muita gente nem imagine, mas a Caatinga é um bioma extremamente diversificado em termos de espécies: é a região semiárida mais rica em biodiversidade no planeta. Sua formação, que conta com arbustos e plantas espinhosas, abrange uma área de mais de 73 milhões de hectares, que vai do norte de Minas até o Maranhão e é o bioma dominante na região Nordeste. Não bastasse isso, ela também é o único bioma exclusivamente brasileiro, revestindo boa parte do coração do sertão nordestino.

Não é de se admirar que lá seja o berço de muitas manifestações culturais genuinamente brasileiras e nordestinas. Personalidades como Jorge Amado, Ariano Suassuna, João Cabral de Melo Neto, Luiz Gonzaga e Alceu Valença são conhecidos nacionalmente por trazer a identidade do homem sertanejo, nordestino, em sua arte. Uma arte em que o artista fala do meio em que vive, da paisagem que vê de sua janela, que vai muito além do céu vasto e da terra seca com a vegetação causticada pelo sol. O semiárido não pode ser reduzido a esse imaginário do senso comum: para o compositor Xico Bizerra, “fora do Nordeste, tende-se a pensar que o sertão é apenas miséria, apenas pobreza, mas há muita riqueza que as pessoas não conhecem. O sertão tem suas mazelas, mas também seu lado encantador”, conta.

Bizerra, cearense do Crato, no sul do estado, tem feito música “de doze anos para cá, desde que deixou o serviço público”. Aposentado do Banco Central, decidiu dar vazão à sua arte e criou o Forró Boxote, projeto de criação de CDs temáticos que já conta com dez volumes. Suas letras são interpretadas por vários cantores, inclusive artistas do quilate de Elba Ramalho, Dominguinhos e Quinteto Violado. Para ele, “a música é o que há de mais representativo em uma cultura”. E prossegue: “se uma pessoa escuta tango, sua imaginação vai à Argentina. Não há como escutar jazz e não se lembrar dos Estados Unidos. Quando se escuta xote, é o Nordeste que vem à cabeça”. E não só o xote, mas também o baião, o xaxado, o frevo, o samba de coco. Cada um tem sua particularidade, mas todos se comunicam com a alma do nordestino, mostrando uma faceta diferente dela.

“O xote tem raízes na Europa, é um bolero assertanejado, que tem uma letra romântica, instiga as pessoas a se abraçar e se acarinhar. O xaxado, dizem, teve origem em Lampião e historiadores contam que os cangaceiros o dançavam no fim de suas empreitadas, no fim do dia”, explica Bizerra. No entanto, se existe um estilo musical que tenha o título de “genuinamente nordestino”, tal como a Caatinga que o cerca, esse ritmo é o baião. “Foi criado por Luiz Gonzaga e tem certidão de nascimento. Se tornou universal através de Gonzagão”, conta o artista. E esta cédula de identidade tem algum tema predominante? “A terra, o meio, se canta a vida do homem do sertão e seu dia a dia”, conta. Bizerra ressalta que os letristas da música popular nordestina têm uma função social muito relevante: a de formadores de opinião. “É importante levar uma ideia diferente de Nordeste para quem não conhece”, diz.

Na arte escrita, a cultura sertaneja também tem espaço de destaque: não apenas em obras de referência da literatura brasileira, como os romances de Rachel de Queiroz, José Lins do Rêgo ou Graciliano Ramos. Em entrevista com o poeta Giuseppe Mascena, membro da Associação da Juventude Poética de Tabira (Ajupta), em Pernambuco, fica fácil perceber que o movimento pela poesia popular tem espaço de destaque na criação de arte que se faz no Nordeste, hoje. Tabira, uma cidade da região do Pajeú, no sertão pernambucano, tem cerca de 30 mil habitantes e pelo menos duas associações de poetas: a Ajupta, criada há cerca de dois anos, e a Appta (Associação de Poetas e Prosadores de Tabira), criada há cerca de vinte anos.

Sobre as particularidades da poesia popular sertaneja, Mascena explica que existem diferenças na rima, métrica e cadência desse tipo de escrita. “Há um estilo de poesia, usado principalmente por repentistas, que é o galope à beira mar. Nessa modalidade, cada verso tem 11 sílabas e as sílabas tônicas são a segunda, quinta, oitava e décima primeira”, explica. Mascena diz ainda que esse estilo tem raízes na poesia portuguesa trazida pela família do poeta Ugolino Nunes da Costa para a cidade paraibana de Teixeira, no século XIX. Ele é conhecido por ser um dos precursores do repente, forma de canto poético improvisado que descende das trovas ibéricas medievais. “A poesia popular nordestina engloba a literatura de cordel (que tem caráter religioso ou cômico) e as diferentes formas de repente”, diz. Segundo o artista, há uma temática rica que preenche essa arte. “Fala-se de sertão e de bois, mas também sobre temas universais como a morte, o silêncio, a existência e a angústia”.

Se voltares
(Rogaciano Leite)

Como o sândalo humilde que perfuma
o ferro do machado que lhe corta,
hei de ter a minh'alma sempre morta
mas não me vingarei de coisa alguma.

Se algum dia, perdida pela bruma,
resolveres bater à minha porta,
em vez da humilhação que desconforta
terás um leito sobre um chão de pluma.

Em troca dos desgostos que me deste,
mais carinhos terás do que tiveste
e meus beijos serão multiplicados...

Para os que voltam, pelo amor vencidos,
a vingança maior dos ofendidos
é saber abraçar os humilhados.

Tanto o cordel quanto o repente têm raízes profundas na oralidade, que, segundo a professora da Universidade Federal da Paraíba Ana Paula Lima, “é um dos traços mais marcantes da arte popular sertaneja”. O poeta Giuseppe Mascena explicita uma diferença entre os dois: “o cordel é feito no gabinete (em casa, com papel e caneta), enquanto o repente é improvisado, na hora”. O poeta explica que nessa forma de improvisação, há um apresentador que leva os motes (temas que servem como contexto para direcionar os versos) e os dois poetas versam respondendo um ao outro, como num desafio, acompanhados por música de viola. “Existe também a glosa, que é o repente sem a viola. Nessa modalidade, vários poetas se reúnem em uma mesa e cada um faz o seu verso seguindo uma sequência – o que faz o jogo ser mais vagaroso, porque há mais tempo para se pensar”, explica o poeta. Entre os poetas mais festejados na arte do repente, hoje, Mascena aponta João Paraibano, Ivanildo Vila Nova, Raimundo Nonato, Valdir Teles e Diomedes Mariano. No cordel, destaca o trabalho de Felipe Júnior. E rassalta: “no Pajeú os poetas mais admirados não são cordelistas, são simplesmente poetas. Desses, destaco cinco: Dedé Monteiro, Zé Adalberto, Lima Júnior, Nenem Patriota e Dudu Morais”.

Há também uma manifestação artística genuinamente nordestina com raízes na cultura popular, mas de caráter erudito: a poesia, a música, o teatro, a literatura e outras manifestações do Movimento Armorial, nascida em Pernambuco em meados da década de 1970, que tem Ariano Suassuna como seu principal idealizador. Ana Paula Lima, especialista no estudo do tema, diz que ele surgiu “com a ideia de criar um movimento que espelhasse as raízes da cultura popular nordestina, que tem muito da cultura índia, da africana e da ibérica”. E prossegue: “era, em parte, uma forma de fazer contrapartida à Jovem Guarda e ao Tropicalismo, que traziam traços que não se remetiam completamente à cultura brasileira. Foi uma forma de resgatar elementos que estavam esquecidos na nossa cultura, como a própria rabeca, por exemplo. Uma pesquisa do Siba (Veloso), do início dos anos 1990, mostra a dificuldade em se achar rabequeiros da nova geração: os mais velhos estavam morrendo e seus filhos não tinham interesse pelo instrumento”, conta Lima. Ela diz que o intuito de Suassuna era “não deixar manifestações como essa morrer e dar-lhes uma revalorização – e dar uma roupagem erudita para esse resgate de cultura popular”.

Lima lembra que a rabeca é um marco da cultura nordestina – talvez por remeter à versatilidade e criatividade do sertanejo. Tem um som muito peculiar e, apesar de se parecer com o violino, não carrega a solenidade dele. É mais alegre e – ao contrário do instrumento de orquestra – não é a rigidez que determina a forma como ela é tocada, muitas vezes apoiada pelos instrumentistas na altura do coração. “Há índios que tocam a rabeca e eles a apóiam na barriga para poder tocar”, conta a pesquisadora.

Por falar na criatividade, Lima conclui que o sertanejo nordestino deve muito dela ao sertão, coberto pela Caatinga que o cerca. A arte é a própria celebração da vida que resiste em meio a situações, por vezes, adversas. “É o cortador de cana que trabalha o dia inteiro e no fim do dia se junta com os amigos à noite para fazer um samba de coco, tocar a rabeca, dançar, criar uma arte a partir de toda essa dureza, que inevitavelmente remete à geografia do lugar”, pontua.