Nas últimas duas décadas, o Brasil tem experienciado uma situação paradoxal em relação à educação superior. Por um lado, dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) apontam para sua notável expansão, observada por um crescimento do número de alunos matriculados em Instituições de Ensino Superior (IES) de 1.565.056 em 1991, para 6.739.689 em 2011. Por outro, os números, em termos absolutos, que ilustram tal crescimento perdem parte de sua significância e deixam a desejar ao serem confrontados, em termos relativos, à dimensão e às expectativas da população brasileira, como explica a socióloga e pesquisadora Clarissa Eckert Baeta Neves, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no artigo intitulado “Ensino superior no Brasil: expansão, diversificação e inclusão”. Para se ter melhor ideia do cenário nacional delineado após o crescimento das matrículas em duas décadas, em 2011, a taxa de escolarização líquida – que identifica o percentual da população de 18 a 24 anos que declara cursar a graduação – foi igual a 14,6%, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios ( PNAD) realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Um percentual muito baixo que, de acordo com Neves, revela uma situação crítica mesmo para os padrões da América Latina.
Parte dessa aparente contradição é o fato de que, embora uma das premissas da política de expansão da educação superior seja a existência de uma demanda proveniente do aumento de concluintes do ensino médio das redes estaduais – composto, em grande parte, pelas camadas mais pobres da população –, o ritmo de crescimento, a partir da segunda metade da década de 1990, foi disparadamente mais expressivo no setor privado. Enquanto o crescimento de IES no setor público entre os anos de 1995 e 2011 foi de 35,2%, passando de 210 pra 284 instituições, no setor privado o crescimento foi significativamente mais acentuado, atingindo um percentual de 304,2%, um aumento de 684 para 2081 instituições. É exatamente nesse aspecto que reside o descompasso entre a ampliação do ensino superior e os segmentos sociais que mais demandam por esse serviço, uma vez que o acesso às IES públicas é muito limitado para a população mais carente, como consequência das deficiências na etapa anterior do processo educacional, e o acesso às IES privadas é praticamente inexistente ou bastante custoso, em vista do alto investimento financeiro necessário.
Para George de Cerqueira Leite Zarur, antropólogo e pesquisador da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacs), a consequência primeira das mudanças que acompanharam a expansão do ensino superior no Brasil foi a transformação conceitual do conhecimento em mercadoria, uma vez que o ensino superior cresceu principalmente através do ensino privado. “Houve, assim, um privilégio do conhecimento utilitário, uma vez que o conhecimento-mercadoria é entendido como uma espécie de bem de capital que se compra no mercado e do qual se vive”, afirma o antropólogo. Como resultado imediato da proliferação desenfreada de IES privadas que passaram a atuar pela lógica do capital, como empresas que têm como fim último a geração de lucro, houve um aumento crescente de número de vagas ociosas, que, como esperado, se deu predominantemente em IES privadas. Em 2009, do total de 3.164.679 vagas oferecidas, 1.653.291 não foram preenchidas, das quais 1.613.740 pertenciam à rede privada, número que corresponde a quase 60% das vagas disponíveis neste setor. Já a médio e longo prazo, a onda de expansão do quadro educacional superior dos últimos vinte anos trouxe uma acentuada queda na qualidade média das instituições, como demonstra a última taxa de aprovação no Exame da Ordem do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de 10,3% em 2013.
Para Zarur, a ênfase tem sido dada ao diploma e não ao próprio conhecimento, de modo que aquele tornou-se uma espécie de carteira de habilitação para transitar no mercado de trabalho, enquanto critérios acadêmicos tido como “sagrados”, centrados no mérito, foram substituídos por outros menos valiosos. “Diplomados pouco mais que alfabetizados podem ser encontrados sem muita dificuldade no mercado de trabalho brasileiro”, assevera o antropólogo. De encontro às observações de Zarur, dados do Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), levantamento feito pelo Instituto Paulo Montenegro e pela ONG Ação Educativa, mostram que somente 62% das pessoas com ensino superior e 35% das pessoas com ensino médio completo são classificadas como plenamente alfabetizadas, o que inclui não apenas habilidades linguísticas, mas também matemáticas. Como advertiu Renato Pedrosa, coordenador do Grupo de Estudos em Educação Superior junto ao Centro de Estudos Avançados da Unicamp, em um dos debates realizados durante o evento de lançamento da rede de pesquisa “Formação e Mercado de Trabalho”, nos dias 24 a 26 de outubro de 2012, em Brasília, t ais evidências sugerem a necessidade de se avaliar melhor o impacto do alfabetismo, considerado em conceito mais amplo, sobre a qualidade da educação como um todo, como questão fundamental para o avanço da qualidade no ensino superior.
Se a desigualdade da qualidade no ensino superior é um aspecto tido como consenso pelos estudiosos do tema, para alguns os atuais mecanismos de controle dessa qualidade são ruins por serem rigorosos demais com as instituições privadas e pouco exigentes com as instuições públicas, ao passo que, para outros, são ineficientes por exigirem muito pouco das IES privadas na prática e serem muito permissivos quanto à criação de novas vagas, cursos e universidades.
Para Simon Schwartzman, sociólogo e pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS), que defende o primeiro ponto de vista, os mecanismos de controle de qualidade vigentes são muito ruins, pois “exigem do setor privado coisas que este setor não tem como proporcionar, como a pesquisa, professores em tempo integral e que as universidades privadas se comportem como as públicas”, exigências que, em sua opinião, não são factíveis com a realidade. Em relação ao setor público, Schwartzman afirma que os mecanismos de avaliação não têm nenhuma consequência no sentido de levar as universidades a patamares mais altos de qualidade uma vez que não associam o desempenho aos recursos utilizados. O sociólogo diz ainda que o meio para alcançar a almejada melhoria de qualidade no ensino superior é o próprio mercado, através da demanda por profissionais mais qualificados. “É claro que o governo, que tem também uma fatia do sistema, pode ter políticas mais fortes de qualidade nas universidades que ele financia, o que ele normalmente não faz”, acrescenta.
Já a partir da segunda perspectiva, Zarur afirma que embora a formação de pesquisadores possua interfaces importantes com as necessidades do país e a associação entre ensino e pesquisa esteja na própria definição de universidade contida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, “o que acontece é que a lei não é obedecida e o MEC tem conferido o status de ‘universidade’ a instituições que nunca souberam o que vem a ser pesquisa”.
Mercado de trabalho e oferta de profissionais
Com o crescimento econômico recente no Brasil, as taxas de desemprego têm decrescido e a escassez de mão de obra qualificada tem se tornado um sério prolema em determinados setores da econômia. Segundo o artigo “Higher education, the academic profession, and economic development in Brazil”, de autoria de Schwartzman, um levantamento realizado entre empresários da indústria em 2011, revelou que 69% deles têm dificuldade em encontrar trabalhadores qualificados e que isso afeta sua capacidade de competir no mercado. Essa realidade enfrentada por alguns setores é, entre outros motivos, decorrente da falta de articulação entre a oferta de qualificação profissional e a inserção de qualidade no mercado de trabalho, constituindo um dos maiores desafios enfrentados pelo ensino superior no atual contexto socieconômico brasileiro. Assim, enquanto as áreas de ciências sociais, negócios e direito concentraram 41,6% e educação, 20,2% das matrículas da graduação, como ilustram dados do Censo da Educação Superior 2011, as áreas que apresentam baixos números de profissionais disponíveis no mercado e mais carecem de profissionais se concentram em cursos como o de medicina, engenharia e geologia, física, química, matemática e aqueles relacionados às áreas de ciência e tecnologia, como consta no depoimento de vários pesquisadores no boletim eletrônico “Formação e mercado de trabalho, 2012”, elaborado pela Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Segundo um estudo que realizou uma comparação entre dados de ocupação e formação dos censos demográficos de 2000 e 2010, realizado por Naércio Menezes Filho, economista e pesquisador do Instituto de Pesquisa em Educação (Insper), a área que mais obteve ganhos salariais no período foi a medicina devido à baixa disponibilidade de profissionais no mercado. Outro aspecto que chama atenção no estudo é que a escolha dos vestibulandos em relação a carreiras universitárias permaneceu praticamente a mesma na última década, fato que pode estar sinalizando uma falta de informações atualizadas sobre o mercado de trabalho para os jovens do ensino médio.
Para o setor de óleos e gás no Brasil, embora não pareça haver escassez na quantidade de engenheiros formados, poderão faltar geólogos, sinaliza outro estudo que analisou a oferta e demanda por engenheiros e outros profissionais para este setor, realizado por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O estudo enfatizou a necessidade de se estimular a qualidade do ensino superior privado, responsável por qualificar uma parcela cada vez maior do pessoal para as áreas de ciência e tecnologia no país, visto que a demanda por profissionais deverá superar a oferta daqueles provenientes do ensino público – mais requisitados, em vista de sua melhor formação. O número de engenheiros nas mais diferentes especializações ainda é muito baixo quando comparado a países como os Estados Unidos e Japão.
Sobrequalificação: distorções no mercado de trabalho
Embora países desenvolvidos apresentem elevadas taxas de escolaridade líquida, o fato em si de um país aumentar a oferta de ensino superior não promove automaticamente seu desenvolvimento econômico, como pondera Schwartzman. “A longo prazo, sim, existe uma correlação entre crescimento da educação superior e o desenvolvimento econômico do país. Não há como criar uma economia mais moderna, com mais produtividade se não se qualificar mais a população”, afirma o pesquisador. Nesse sentido, Zarur diz que o ensino superior brasileiro, bem como o de outros países, ocupa um lugar central na formação da mão de obra, ainda que só possa contribuir efetivamente para o desenvolvimento econômico do país à medida que integra um projeto nacional mais amplo. “Porém muito do conhecimento que as universidades brasileiras transmitem poderia ser ensinado em escolas técnicas, no ensino médio, como na Alemanha, por exemplo”, acrescenta.
A opinião expressa pelo antropólogo se relaciona à principal conclusão de um estudo realizado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e apresentado no boletim elaborado pela ABDI e pelo Ipea. De acordo com a análise realizada pelo Dieese, que buscou captar a dinâmica dos processos do mercado de trabalho em sete regiões metropolitanas brasileiras, num contexto generalizado de aumento da escolaridade do trabalhador brasileiro, a maior parte dos postos de trabalho gerados nessas regiões não é para profissionais da mais alta qualificação. Assim, o estudo mostra que os melhores ganhos salariais são obtidos por pessoas que possuem qualificação compatível com a função desempenhada, o que significa que o consumo de qualificação sem uma mudança nas funções cotidianas não necessariamente trazem retorno de renda ao trabalhador. Conforme apontado no boletim, a falta de pressão salarial em muitas ocupações, mostrada pelas pesquisas, causa preocupação, pois pode indicar que o mercado de trabalho não está disposto a pagar mais pelo profissional de qualidade, ocasionando um descasamento entre a formação e as atividades desempenhadas. Esse descasamento, por sua vez, acaba gerando distorções no mercado de trabalho prejudiciais ao desenvolvimento de capital humano.
Formação de pesquisadores
Há uma ideia no senso comum de que o ensino privado seria responsável pela formação de mão de obra enquanto as IES públicas formariam pesquisadores. Para o pesquisador da Flacs, trata-se de uma visão ultra simplificada já que “as universidades públicas também formam mão de obra para o mercado de trabalho, em média, de melhor qualidade que as universidades privadas”. De acordo com ele, em relação à pesquisa, esta está realmente concentrada nas universidades públicas, que formam a maior parte dos mestres e doutores que vão lecionar no ensino superior público e privado.
Já para o pesquisador do IETS, a despeito do aumento na formação de pesquisadores, a atual organização econômica do país faz com que não haja muitas pessoas se dedicando à tecnologia aplicada e nem uma demanda por pesquisadores de alto nível. Como ele afirma, “o sistema industrial brasileiro, na verdade, exige muito mais técnicos, pessoal de nível médio que tem uma formação intermediária”, fazendo com que doutores formados aqui trabalhem como pessoas com nível de graduação.
Na ausência de um Estado nacional propositivo – de um projeto de nação – não há política industrial nem uma eficaz política de inovação tecnológica, explica Zarur. Para ele, o problema principal é o da transformação do conhecimento em tecnologia e em desenvolvimento econômico. “O conhecimento novo produzido nas universidades brasileiras é importantíssimo, porém, como recurso potencial da nação. Se algum dia for necessário, ele estará disponível. Como a história é feita de surpresas, pode ser que, cedo ou tarde, as relações entre pesquisa e necessidades nacionais se consolidem”, pondera o antropólogo.
|