Questões como: "Qual a origem do homem?" e "O que é o universo?" fazem parte do imaginário popular e nos intrigam desde a Antiguidade, quando tentativas de respondê-las estiveram intimamente ligadas a aspectos místicos e religiosos do pensamento humano. A problemática é atualmente tratada, no escopo da pesquisa científica, pela cosmologia. Há muito encarada como um conjunto de questões mais filosóficas ou religiosas, à margem das outras disciplinas acadêmicas, a cosmologia se define como o estudo do universo – cuja concepção se alterou bastante nos últimos quatro séculos quando a Terra deixou de ser considerada o centro do universo e o Sol saiu do centro da galáxia. Nos últimos cem anos os avanços nesse campo foram enormes e se tornaram possíveis graças à evolução da computação, da física teórica e da tecnologia observacional da astronomia – como os grandes telescópios que possibilitam enxergar além dos limites do sistema solar e da galáxia. Embora a busca de respostas para as questões já colocadas, mudou de foco, as inquietações se sofisticaram e surgiram janelas teóricas e filosóficas na cosmologia. A principal delas tenta responder a: O que está causando a aceleração cósmica observada? O que é energia escura? E qual a natureza da matéria escura?
O u niverso no século XVII. Representação do universo do século XVII gravada em madeira, usada por Camille Flammarion na obra L'atmosphère: météorologie populaire (Paris, 1888). Não e xistiam outros sistemas além da esfera de estrelas fixas.
Áreas diferentes têm influência sobre a cosmologia e segundo Raul Abramo, professor do Instituto de Física da U niversidade de S ão P aulo (USP), “tanto a cosmologia implica resultados novos para a física, quanto vice-versa” e completa " O dia-a-dia da c iência parece uma coleção de resultados técnicos em áreas especializadas, mas qualquer (bom) cientista é também, no fundo, um generalista, já que todas as partes da c iência estão em contínuo contato umas com as outras. Isso significa que áreas diferentes têm influência umas sobre as outras – e na c osmologia não é diferente ". Legitimada pelo status conferido a atividade científica, a cosmologia está obrigando os astrônomos a reverem algumas posições a respeito da constituição do cosmo e da posição que nele ocupamos. Por exemplo, só no início do século XX foi possível compreender que o universo é constituído por conjuntos de bilhões de galáxias que parecem estar se distanciando umas das outras. Mesmo com o sucesso de seu modelo padrão – que está basicamente ligado à ideia da expansão do Big Bang – existem questões inexplicadas, janelas, que levam a cenários desconhecidos ou mesmo tenebrosos dentro das teorias. Nos últimos anos, algumas janelas observacionais se abriram no desconhecido campo da matéria escura. Busca-se encontrar evidências indiretas que apontem para sua existência e revolucionar nosso conhecimento sobre sua natureza, o que também ocorre para a energia escura, que se associa aos modelos de expansão. Não restam dúvidas sobre a importância da cosmologia e dessas componentes misteriosas de seus modelos para astrônomos, físicos e mesmo para o público leigo. A natureza dessas questões e as controvérsias envolvidas ainda deixam a cosmologia cercada por especulações filosóficas a respeito da interação entre o mundo que observamos e a formulação de explicações racionais para nossa própria existência e do mesmo.
A matéria no universo
Em O universo é um lugar estranho? , Frank Wilczek – o ganhador do prêmio Nobel de física de 2004 – descreve o modelo padrão da cosmologia como um “modelo híbrido” que envolve a expansão do universo e algumas hipóteses sobre flutuações da radiação cósmica de fundo, dois de seus pilares. A expansão do universo se deu a partir de uma explosão primordial, pelo modelo do Big Bang. Para o autor, o sucesso desse modelo se deve entre outros pela explicação de fenômenos como o redshift das galáxias – Edwin Hubble detectou, em 1927, que as galáxias estão se afastando umas das outras com velocidade crescente, o que faz com que detectemos um deslocamento para o vermelho nas medidas de suas velocidades – e a existência de uma radiação cósmica de fundo (RCF) – detectada em 1964 por Arno Penzias e Robert Wilson, agraciados com o Nobel de física em 1978. No entanto, o modelo padrão da cosmologia não é um consenso, ainda não é possível afirmar a existência de componentes como matéria e energia escura, por exemplo.
Distribuição de energia no universo. As observações do telescópio Chandra incluem estimativas do conteúdo total de energia do universo, como na ilustração. Somente a matéria comum pode ser detectada por telescópios, e cerca de 85% desse total é gás quente intergaláctico, como detectado pelas observações de aglomerados de galáxias. Crédito: Nasa/CXC/M.Weiss
Quando se fala em energia e matéria escura a impressão que se tem é de que tratamos do desconhecido, e em cosmologia esse é mais ou menos o sentimento vigente entre os cientistas. Frank Wilczek explica que, pelo que sabemos, o universo é constituído por três tipos de “substância”: matéria comum (ou matéria bariônica, com 3% da densidade total do universo); matéria escura (com cerca de 30% da densidade total) e energia escura (os outros 67% restantes da densidade total). Sobre a matéria comum sabemos bastante e podemos detectá-la a grandes distâncias por métodos diferentes e conhecidos. Já sobre matéria e energia escura não sabemos muita coisa – apesar do nome, matéria e energia escura são transparentes aos olhos humanos e, por isso, só são detectadas a partir de métodos indiretos. Wilczek não desanima: “Felizmente, nossa quase-total ignorância a respeito da natureza da maior quantidade de massa no universo não nos impede de traçar modelos para sua evolução”.
Algumas flutuações da RCF estão ajudando os cosmólogos a medir parâmetros básicos do modelo padrão incluindo densidade e a composição do universo. Essas medidas têm sido feitas por uma sonda espacial lançada pela N asa em 2001, a WMAP (Wilkinson Microwave Anisotropy Probe). Ela é capaz de determinar algumas propriedades e interações da matéria não-bariônica (matéria escura), porque os detalhes das interações afetam a RCF. Segundo o professor Abramo, “as anisotropias da radiação de fundo são a observação mais limpa e mais direta que aponta para um cenário em que o nosso espaço é simples, como um espaço euclidiano de três dimensões”. De acordo com os resultados expostos do site da WMAP, o universo é chato, com uma densidade de cerca de seis átomos de hidrogênio por metro cúbico.
Uma das evidências observacionais da matéria escura é a detecção da curva de rotação galáctica, técnica a partir da qual é possível “pesar as galáxias”. Elas permitem saber se a velocidade com que as estrelas giram em torno do centro da galáxia estão de acordo com a quantidade de matéria nela existente. A velocidade observada do Sol, por exemplo, é muito maior do que deveria ser caso houvesse apenas matéria comum. Deve existir então uma quantidade maior de massa que a observada, que faz com que a velocidade do Sol seja maior do que a prevista teoricamente. Essa matéria ficou conhecida como "matéria escura". Resta saber como ela se distribui no universo algo impossível de se fazer diretamente, com observações já que ela não interage gravitacionalmente, como a matéria comum. Os candidatos mais aceitos a matéria escura atualmente, segundo o time científico da WMAP, são anãs marrons, buracos negros supermassivos ou matéria não-bariônica, propostas dos fisicos de partículas.
Energia escura: uma constante cosmológica?
Quanto à energia escura, conhecida como matéria exótica, tem sido apontada como responsável pela expansão do universo (aquela observada no redshift das galáxias). Se apenas a matéria comum existisse no universo (considerando que a matéria escura não interage gravitacionalmente) teríamos uma desaceleração na expansão, uma vez que a gravidade é atrativa. O astrônomo da USP explica que a expansão pode ter passado por três estágios bem definidos sendo o último deles uma fase de expansão acelerada . “ M as não há controvérsia porque ninguém sabe direito o que causa essa aceleração – apenas há um consenso de chamar a causa dessa aceleração de energia escura” , enfatiza Abramo .
Os cosmólogos têm que ser criativos pensando em cenários alternativos que lhes ofereçam uma saída para os aparentes “becos sem saída” que se apresentam na cosmologia. Além desses modelos da expansão existem algumas hipóteses tradicionais de que a força da gravidade não seja muito bem descrita pela Teoria da Relatividade Geral de Einstein – os chamados modelos de "gravidade modificada". Raul Abramo lembrou que “há modelos em que nem há matéria exótica, nem a gravidade é modificada, mas sim que de alguma maneira a não-homogeneidade do universo causa, para nós, a aparência de uma expansão acelerada”. Ele acredita que a relevância dessa última hipótese, vem perdendo força porque problemas relacionados a ela foram levantados e não muito bem respondidos. Mas como detectar a causa da expansão acelerada do universo?
“Se a causa for um tipo exótico de matéria, então ela vai deixar rastros, seja nas estruturas cósmicas, seja em experimentos de física de partículas (pelo menos em princípio). Se, por outro lado, a causa for uma modificação das leis da gravidade, isso pode ser testado por experimentos que avaliam a relatividade geral, tanto aqui na Terra, quanto por satélites científicos e também por observações astronômicas” responde Abramo. Para ele, existe um cenário tenebroso, que é a situação em que a expansão acelerada é causada pela "constante cosmológica" de Einstein – um termo acrescentado pelo físico em 1917 às equações da relatividade geral e que foi considerado anos mais tarde como “o maior erro de sua carreira”. “Se ela de fato for a culpada estaremos numa saia justa infernal, porque a única evidência direta da constante cosmológica (pelo menos que se saiba, até o momento) é essa expansão acelerada”. Todas as outras hipóteses, matéria exótica e leis de gravidade diferentes das da relatividade geral são eliminadas nesse caso: “Não será satisfatório para ninguém, mas temos que estar preparados para esse cenário pessimista!”, desabafa .
A constante cosmológica, no entanto, sobrevive. M uitos cosmólogos acreditam que para explicar a taxa de expansão do universo é necessário revivê-la. Pelo menos é o que alega Donald Goldsmith, astrofísico e autor de Einstein's greatest blunder? The cosmological constant and other fudge factors in the physics of the universe ( Harvard University Press, 1997 ). Algumas observações das flutuações da RCF, consistentes com a distribuição em larga escala de galáxias e aglomerados, obtidas pelo WMAP, sugerem que a constante cosmológica seja acrescentada ao modelo padrão do Big Bang.
Experimentos atuais
Nos últimos 40 anos, a cosmologia cresceu progressivamente, aumentou o número de pesquisadores e também os investimentos destinados para pesquisas (leia reportagens sobre investimentos e educação ) . Junto com a astrofísica, entrou para o grupo da ciência de grande porte. A maior fonte de recursos para pesquisas são as agências governamentais – nos EUA a Fundação Nacional da Ciênc i a e a Agência Espacial Americana (Nasa).
Fig.3 - Telescópios SDSS . Em primeiro plano o domo do telescópio fotométrico. Créditos: Sloan Digital Sky Survey http://www.sdss.org/ .
Alguns dos experimentos mais recentes de mapeamento do universo destinam-se a identificar aglomerados de galáxias. Mas o que aglomerados de galáxias tem a ver com energia escura? Como a energia escura inibe a formação de aglomerados de galáxias – por levar o universo a se expandir mais rápido – o número de aglomerados massivos em diferentes períodos da história do universo expressa a luta entre gravidade e energia escura. Dentre esses experimentos estão o Sloan Digital Sky Survey (SDSS) – desde 2001 obteve imagens de mais de 930 mil galáxias e mantém projeto de busca de supernovas (são estrelas que explodem e que podem por isso, brilhar tanto quanto uma galáxia inteira. Elas são uma maneira de diagnosticar a taxa de expansão nos últimos bilhões de anos); o Large Synoptic Survey Telescope (LSST) – com um grande ganho de luz conseguirá detectar objetos muito fracos com pouco tempo de exposição e pretende fazer um mapa 3D do universo que será usado para localizar matéria escura e caracterizar propriedades da energia escura – e o South Pole Telescope (SPT) – cujo espelho primário tem 10 metros de diâmetro. Quanto às ferramentas computacionais, redes de computadores, são capazes de simulações gigantescas, como o maior supercomputador que existe no momento dedicado a fazer simulações e cosmologia, localizado em Barcelona, o MareNostrum NCP (Numerical Cosmologic Project).
As questões relacionadas à matéria e energia escura se ligam de maneira mais fundamental ao bom funcionamento do modelo cosmológico padrão. De uma forma mais técnica, elas são a retomada das antigas questões enunciadas no início da reportagem “O que é o universo e qual nosso lugar nele?”. Em Memórias de Zeus ( Charles Scribner's Sons, 1964 ), de Maurice Druon, a deusa Mnemosyn declarou que "seríamos melhores espelhos do universo se nos preocupássemos menos com a nossa própria imagem". Wilczek acredita que “nós não precisaremos somente de perguntas ambiciosas e afiadas, mas igualmente algumas respostas de convencimento”.
Para saber mais:
- “ Cosmologia: de Einstein à energia escura ”, artigo de Jaílson S. Alcaniz para a ComCiência, Vol.90, 2007.
- “ O universo é um lugar estranho? ” , artigo de Frank Wilczek (2004)
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