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Artigo
Trabalho, adoecimento e sofrimento
Por Álvaro Roberto Crespo Merlo
10/05/2007

Maria tinha 35 anos. Ela morou até os 20 anos na zona rural de um município do interior do Rio Grande do Sul e teve que migrar para a periferia de Porto Alegre. A pequena propriedade rural da família já não permitia o sustento de seus pais e seus 5 irmãos. Um irmão mais velho já tinha se estabelecido em Novo Hamburgo, onde havia muitas fábricas. Maria começou como auxiliar de serviços gerais na empresa de calçados onde seu irmão trabalhava, fazendo um pouco de tudo. Mas sua capacidade de concentração e sua produtividade foi logo notada pela chefia imediata e lhe foi oferecida a possibilidade de trabalhar no setor de costura. O salário era melhor e, se ela produzisse acima da cota mínima prevista, recebia um prêmio de produtividade ao final do mês.

As condições de trabalho na costura não eram boas. As máquinas eram antigas, as cadeiras eram de madeira e palha e havia que ficar muitas horas na mesma posição. Às vezes ela dividia seu tempo com trabalho nas esteiras de montagem de calçados, onde ela utilizava muito alicate e outras ferramentas. Depois de 5 anos nessa empresa ela começou a sentir dores no antebraço e punho direitos. Ela ia para casa com dor, mas à noite já tinha passado. Para ela, trabalho e dor eram coisas que sempre andaram juntas. Era assim no trabalho no campo e as colegas diziam que isso também acontecia com elas. Ela dizia: " Cansei de costurar lá com as lágrimas escorrendo de dor, e a chefe fazia que não via. Dizia:Espera o médico. O médico ia lá uma vez por semana. Daí tu consulta, mas tinha que vencer a produção e agüentar até a quarta-feira, o dia do médico. Até que chegou um dia que eu não dormi de noite, uma dor assim desesperada. Daí meu marido disse: Eu vou te levar no médico. Eu não agüentava mais, era no meio da madrugada. "Depois de muitos especialistas e muitas consultas as dores continuavam e Maria parou de trabalhar. Ficou no seguro-saúde pela Previdência Social e, com o tempo, foi ficando deprimida, pois sentia-se completamente incapaz para fazer qualquer atividade. Não conseguia mais cozinhar, lavar os pratos, lavar a roupa, carregar os filhos ao colo, etc. E como não havia nada visível na sua doença, os amigos e a família ficavam insinuando que ela não passava de uma preguiçosa. Ela acabou recebendo o diagnóstico de Síndrome de Túnel do Carpo, que é produzida pela compressão do nervo mediano na altura do punho, fez cirurgia, mas continuou com dor.

A história de Maria é típica de uma paciente com Lesões por Esforços Repetitivos/Distúrbios Ostemusculares Relacionados ao Trabalho (Ler/Dort). Um quadro insidioso, de evolução lenta, com "peregrinação" pelo sistema de saúde, um diagnóstico tardio e um processo de cronificação que se instala e que produz, como em muitos outros casos de patologias crônicas, um quadro depressivo associado. As características de "invisibilidade" da maioria das patologias do grupo, acaba produzindo, em muitos casos, um sentimento de vergonha, levando os pacientes a viver a doença de forma solitária e culpabilizada. Acrescente-se, ainda, as repercussões da dor, como a dificuldade para dormir, alteração de humor e a necessidade do auxílio de outras pessoas para realizar tarefas do cotidiano, além da falta de perspectivas de trabalho após o processo de adoecimento.

As Ler/Dort são afecções que podem acometer tendões, sinóvias, músculos, nervos, fácias, ligamentos, de forma isolada ou associada, com ou sem degeneração de tecidos, atingindo, principalmente, mas não somente, os membros superiores, região escapular e pescoço, e têm sua origem no trabalho.

Essas patologias tiveram um importante incremento nos últimos 15 anos e são consideradas, atualmente, como uma epidemia. No Brasil essa expansão começou no início dos anos 80 no setor de processamento de dados, mas hoje é possível encontrar casos em quase todas as atividades. E a perspectiva é de que se assista a um crescimento ainda maior nos próximos anos, já que o essencial do trabalho produtivo é uma combinação de modelos de gestão do trabalho, nos quais, somam-se agressões à saúde oriundas dos modelos "tradicionais" (taylorista/fordista), com outras originadas em novas formas de gestão, ditas "japonizadas" (Kan-Ban, Just-in-time, etc.). Nessas combinações encontramos, lado a lado, linhas de montagem e esteiras de produção, convivendo com programas de qualidade total ou células de produção. Tudo isso tem levado a uma maior intensificação do trabalho, com hipersolicitação de tendões, músculos e articulações dos trabalhadores.

O taylorismo/fordismo ao promover a desapropriação do saber operário, promove, também, uma desapropriação da liberdade de criação, a qual é fundamental para autorizar cada um a adaptar a organização do seu trabalho às necessidades de seu organismo e às suas aptidões fisiológicas. A atividade intelectual e cognitiva são necessárias no trabalho para manter a integridade do aparelho psíquico. Na impossibilidade de que isso ocorra, surge daí, uma série de agravos à saúde física dos trabalhadores, como as Ler/Dort, bem como o sofrimento psíquico patogênico. Nos referimos aqui àquele sofrimento que emerge no choque e na impossibilidade de um rearranjo entre o sujeito, portador de uma história singular e personalizada, e uma organização do trabalho pré-existente e, muitas vezes, despersonalizante. Quanto mais rígida for a organização do trabalho, mais acentuada é sua divisão e menor o conteúdo significativo da tarefa, bem como as possibilidades de mudá-lo. E o sofrimento psíquico aumenta correlativamente.

Às exigências da organização do trabalho taylorista/fordista, somam-se novas exigências e outro sofrimento, que advém do medo do trabalhador não ser capaz de manter uma performance adequada no trabalho nas novas formas de gestão "reestruturadas". Tais exigências incluem os aspectos de tempo, cadência, rapidez, formação, informação, aprendizagem, adaptação à "cultura" ou à ideologia das empresas, às exigências do mercado, etc..

No Ambulatório de Doenças do Trabalho do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, por exemplo, as Ler/Dort são responsáveis por 70% dos diagnósticos ali realizados. Em 60% desses pacientes, a doença evolui para uma forma crônica e com presença permanente de dor. Essa cronicidade produz alterações na vida desses pacientes, pois os impossibilita de realizar, não apenas algum tipo de atividade profissional, mas a maior parte das atividades cotidianas. São pacientes que estão em uma situação de permanente sofrimento físico e, também, psíquico. Pelo menos 90% desses pacientes apresentam um quadro depressivo associado.

As Ler/Dort ocorrem preferencialmente nas mulheres. Não, como afirmavam alguns, porque elas possuem estruturas físicas (músculos, tendões, articulações, etc.) mais frágeis, mas porque elas estão colocadas nos postos de trabalho mais desqualificados, mais repetitivos, mais monótonos, com maior controle de produtividade. E há que lembrar, ainda, as duplas jornadas de trabalho a que muitas delas estão submetidas, com o trabalho doméstico e o cuidado dos filhos.

A prática médica tem tido dificuldades no atendimento desses pacientes. Como as patologias incluídas dentro do conceito genérico de Ler/Dort preexistiam à construção desse conceito e, na maioria das vezes, eram tratadas com sucesso, existe dificuldade para os especialistas (reumatologistas, ortopedistas, médicos do trabalho, etc.) compreenderem o processo de cronificação de muitos desses pacientes. Essa cronificação está associada a demora no estabelecimento do diagnóstico, mas, principalmente, ao fato do paciente quase sempre retornar ao espaço de trabalho adoecedor.

Algumas experiências positivas têm sido feitas associando vários tipos de tratamento, além do médico, tais como, com fisioterapeutas, com terapeutas ocupacionais e com atividades de grupo, onde são reunidos pacientes com Ler/Dort, com a supervisão de vários profissionais da área da saúde. Nessas reuniões busca-se "desconstruir" a relação consolidada entre trabalho-dor-sofrimento que possuem a maioria desses pacientes e tenta-se "reconstruir" novas formas de conviver com a doença e, se possível, com o trabalho. Os resultados são promissores.

Álvaro Roberto Crespo Merlo é médico do trabalho, doutor em sociologia pela Université Paris 7, docente da Faculdade de Medicina, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional e do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor médico-assistente do Ambulatório de Doenças do Trabalho/Serviço de Medicina Ocupacional do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.