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Artigo
Tecnologias de informação e subjetividade contemporânea
Por Fernanda Bruno
10/03/2008

Indicadores são instrumentos de representação e medida de características de uma dada realidade ao longo de um determinado tempo. Inserem-se, assim, na longa tradição dos sistemas de classificação, os quais são sistemas de ordenação da realidade em categorias distintas (Bowker & Star, 1999). Em nossa cultura, a economia, a ciência, a política, a saúde, entre outros domínios, vêm sendo cada vez mais pautados por indicadores que ao mesmo tempo visam expressar o estado de coisas e orientar ações e decisões em cada um desses setores. Recentemente, vemos crescer enormemente a capacidade de indexar e classificar não apenas esses “grandes” setores das sociedades contemporâneas, mas também ações e comportamentos “menores”, individuais e cotidianos, como hábitos, gostos, interesses, formas de comunicação e sociabilidade etc. É dessa indexação das informações individuais, a qual constitui um sistema particular de classificação dos indivíduos e da subjetividade, que trataremos aqui.

Um dos fatores decisivos para esse crescimento é a difusão das tecnologias e redes digitais de comunicação e de informação. A convergência da informática com as telecomunicações criou uma situação em que o campo de comportamentos, ações e comunicações dos indivíduos muitas vezes coincide com os próprios sistemas de monitoramento, coleta e registro de dados individuais. Constitui-se, assim, uma imensa captura de dados individuais, notável na proliferação de tecnologias de naturezas diversas que já incluem em seu funcionamento mecanismos de monitoramento e coleta de dados sobre os seus usuários: cartões de crédito e de fidelidade, telefonia móvel, etiquetas RFID, cartões de transporte, sistemas de geolocalização por satélite, navegações e buscas on-line, participação em redes sociais, jogos ou ambientes colaborativos na internet etc. O ciberespaço e em especial a internet são o território privilegiado desta modalidade de coleta e classificação de dados. Uma série de ambientes e serviços, com finalidades diversas – sociabilidade (Orkut, Faceebook, Myspace), consumo (Amazon.com, E-bay), busca (Google Search Engine), entretenimento (YouTube, Second Life), informação (Google News, Google Zeitgeist) – contêm, em seus próprios sistemas de funcionamento e eficiência, meios de monitorar e classificar ações e comunicações dos indivíduos. Além disso, inúmeras empresas de pesquisa na Internet, como a Redsheriff, DoubleClick e Bluestreak, por exemplo, rastreiam os movimentos dos internautas que visitam os sites a elas filiados e produzem um registro de suas atividades on-line: que sites visita, que arquivos baixa, que tipo informação busca. Tais empresas constróem, assim, valiosos bancos de dados sobre os usuários, suas preferências e interesses atuais e potenciais. Vejamos mais de perto como funciona esse sistema de classificação das informações, ações e comportamentos individuais, o qual constitui uma taxonomia particular da subjetividade contemporânea. Essa taxonomia conta com três elementos centrais; os mecanismos de monitoramento e coleta de dados individuais inscritos nas tecnologias e redes digitais de comunicação e informação, os bancos de dados que armazenam e classificam essas informações; e os perfis computacionais, que expressam padrões extraídos dessas classificações.

Quanto aos mecanismos de monitoramento e coleta de informações individuais, uma importante característica a ressaltar consiste no tipo de dados coletados, ou seja, no que tais mecanismos definem como dados relevantes e significativos. Podemos, grosseiramente, falar de dois grandes grupos de dados: os relativamente estáveis, com pouca ou nenhuma variação ao longo do tempo, e os dados móveis ou circunstanciais. Na primeira categoria estão, por exemplo, dados relativos a gênero, profissão, escolaridade, moradia etc. Na segunda, estão dados comportamentais (comunicação, consumo, deslocamento, lazer), “transacionais” (conteúdo de compras com cartão de crédito, uso de determinado serviço, navegações em ambientes digitais), psicológicos (auto-declarações sobre personalidade, caráter, temperamento), sociais (tipos de comunidades de que faz parte e de amigos em redes de relacionamento), entre outros.

É nesse segundo grupo que residem alguns tipos de dados próprios aos nossos sistemas digitais de classificação dos indivíduos e subjetividades. Embora alguns deles não sejam novidade, muitos só se tornaram “coletáveis” de forma sistemática e ampla a partir da incorporação das novas tecnologias de informação e de comunicação ao nosso cotidiano. Essas tecnologias permitiram formas de coleta à distância cada vez mais automatizadas, capazes de capturar os dados em tempo real ou “in the wild”, sem as tradicionais mediações de entrevistadores e questionários. Essa modalidade de captura de dados, comparativamente mais “direta”, tem possibilitado formas novas de apreensão e classificação da subjetividade. Detalhes de nossas vidas cotidianas e pessoais, antes perdidos ou de difícil acesso e conservação, tornam-se não só acessíveis em tempo real como também passíveis de serem estocados, recuperados, analisados, classificados e ordenados de modo a gerar conhecimento e planejar ações sobre aptidões, hábitos, interesses, inclinações psíquicas e comportamentais de indivíduos e/ou grupos.

Essa massa de dados cotidianamente monitorada e coletada alimenta bancos de dados de diversos tipos e funções. Os bancos de dados, em sua maioria, ordenam as informações provenientes de indivíduos em categorias infra-individuais que podem tanto ser criadas segundo um modelo “top-down”, utilizando classes pré-estabelecidas – como idade, gênero, profissão – ou segundo um modelo “bottom-up”, gerando categorias a partir da análise dos dados, como “freqüentadores do site Y que clicam nos links de tipo X”; “mulheres que lêem auto-ajuda e freqüentam sites de relacionamento”. Essa primeira categorização é submetida a um tratamento de segunda ordem, cujos métodos mais usuais são a mineração de dados (data minig) e a produção de perfis computacionais (profiling), os quais são complementares e tidos como modelos privilegiados de inteligência e planejamento estratégico no campo da administração pública e privada, do marketing, da segurança, da saúde física e mental etc.

A mineração de dados é uma técnica estatística aplicada que consiste num mecanismo automatizado de processamento de grandes volumes de dados cuja função central é a extração de padrões que gerem conhecimento. Não por acaso, esse mecanismo é chamado “Knowledge-Discovery in Databases”. Tais padrões são constituídos a partir de mecanismos de geração de regras para classificação de dados individuais, sendo mais comuns as de tipo associativo (similaridade, vizinhança, afinidade) entre pelo menos dois elementos, que depois diferenciam tipos de indivíduos ou grupos. Esses tipos correspondem a perfis computacionais gerados pelo mecanismo usualmente designado profiling.

No que consistem esses perfis? Estes são constituídos a partir de regras associativas entre pelo menos duas variáveis de modo a constituir padrões de similaridade interindividuais que expressem tendências e potencialidades em diversos domínios. Atuam, assim, como simulações de identidades na medida em que são menos representativos da identidade atual de indivíduos do que estimativos das suas potencialidades e virtualidades, tendo em vista a sua similaridade com outros indivíduos. Os perfis de um usuário de sites de vendas e trocas on-line (como e-bay), de um consumidor de música latina ou de um bom profissional de informática são montados a partir de regras associativas entre um grande número de elementos presentes em hábitos, trajetórias, comportamentos, interesses, traços de personalidade etc de inúmeros indivíduos. O perfil é, portanto, uma espécie de mosaico de traços que não concernem a um indivíduo particular e suas características intrínsecas. Trata-se, antes, de um conjunto de traços que expressam relações entre indivíduos, sendo, portanto, mais interpessoal do que intrapessoal. O seu principal objetivo não é tanto produzir um saber sobre um indivíduo identificável, mas usar um conjunto de informações pessoais para agir sobre indivíduos similares. Dadas as características de um indivíduo e sua similaridade com outros do mesmo “tipo”, o perfil antecipa um comportamento, um gosto, um interesse potencial. Antecipa-se ou simula-se, assim, preferências potenciais de consumo, valor econômico potencial, tendências e inclinações comportamentais, capacidades profissionais, doenças virtuais.

Um exemplo e uma visualização mais concreta da natureza dos perfis nos é dado por uma série de tabelas e perfis montados a partir do tratamento dos bancos de dados alimentados pelos usuários da rede social Club Nexus (Buyokkokten, 2003), uma espécie de projeto-piloto da conhecida rede Orkut. Listo apenas alguns elementos dessas tabelas, uma pequena amostra da taxonomia das subjetividades em curso na cultura contemporânea.

Numa das tabelas que associava a forma como as pessoas usavam o seu tempo livre e os seus interesses acadêmicos, vemos padrões como: aqueles que passam o tempo livre estudando, tendem a se interessar por física, filosofia ou matemática; se preferem ver TV, demonstram interesse por relações internacionais; se passam a maior parte do tempo cumprindo compromissos, tendem a gostar de psicologia. Na tabela que associa traços de personalidade à escolha profissional, temos: aqueles que se declaram inteligentes, optam por física ou informática; os bem-sucedidos preferem informática, enquanto aqueles que se julgam atraentes, tendem a se interessar por relações internacionais ou ciência política. Numa grade mais ampla de nexos entre traços de personalidade e interesses diversos, encontramos: pessoas que se julgam atraentes costumam ler livros de negócios, assistir filmes eróticos, ouvir música “disco”, fazer atividade física; os que se declaram pouco amáveis se interessam por livros de filosofia, escutam funk, vêem filmes eróticos ou independentes; os irresponsáveis gostam de filmes eróticos, GLS e independentes, costumam andar de skate e ouvir funk, jungle, reggae e trance; os socialmente adaptáveis gostam de livros de sociologia, praticam waterpolo e esqui, ouvem house, rap e hip-hop; os que se julgam bem sucedidos preferem os livros de negócios, jogam tênis, fazem atividades físicas para perder peso e gostam de fazer churrasco.

O exemplo nos leva, de imediato, a perguntar sobre a veracidade desses perfis. A resposta, no entanto, não pode ser nem positiva nem negativa, e aí reside uma das suas mais importantes características. Ou seja, um perfil não é verdadeiro nem falso, mas sim performativo. Ou seja, é um padrão que ao se anunciar tem uma efetividade performativa e proativa, fazendo passar à realidade o que era apenas uma possibilidade, uma potencialidade. O maior objetivo do perfil não é tanto prever o futuro, mas intervir nele ao, por exemplo, ofertar a um cliente um produto do seu leque de interesses possíveis, incitar uma atitude preventiva em indivíduos ou grupos que se enquadrem em perfis de doentes potenciais, orientar estudantes a fazerem escolhas em sua formação que se mirem no perfil de profissionais potencialmente bem-sucedidos etc. Os perfis agem, assim, sobre o campo de ações e escolhas possíveis dos indivíduos, ofertando a eles padrões que projetem cenários, produtos, riscos, interesses, tendências que devem incitar ou inibir comportamentos. Nesse sentido, pode-se dizer que o perfil é uma espécie de oráculo na medida em que ele não implica uma acuidade na previsão de um futuro certo e necessário, mas a efetuação de uma realidade antecipada. Tanto no perfil quanto no oráculo, trata-se menos de previsão do que da capacidade performativa da antecipação – o futuro antecipado torna-se efetivo ao ser enunciado.

Percebe-se, assim, que essa taxonomia das subjetividades, bem como qualquer sistema de classificação e os diversos tipos de indicadores, não simplesmente revelam uma realidade preexistente, mas a constituem. Os padrões e regularidades daí extraídos permitem visualizar domínios que de outro modo ficariam indefinidos ou fora do nosso campo de notação e atenção. As classificações que produzem tais perfis apresentam a diversidade e a complexidade das subjetividades num formato mais dócil, calculável, legitimando e orientando intervenções diversas. Perfis de consumidores, profissionais, criminosos, doentes físicos ou mentais, tipos psicológicos ou comportamentais apresentam-se como padrões que, ao mesmo tempo, ordenam e objetivam a multiplicidade humana, legitimando formas de governá-la.

Na história ocidental, classificar afirma-se como uma modalidade privilegiada de conhecimento, permitindo que o mundo em sua dispersão e multiplicidade se apresente de forma ordenada em segmentos visíveis e discriminados. Uma vez imersos num sistema de classificação, tendemos a tomá-lo como espelho ou representação fiel e necessária da realidade a que se referem. Tendemos, pois, a esquecer que as classificações têm uma forte dimensão performativa, intervindo na realidade que expressam e alterando o modo como as pessoas se comportam, o que por sua vez retroage sobre a classificação (Hacking, 2004). Classificar é conhecer e também intervir – a dimensão epistêmica aí está intimamente articulada à dimensão estratégica.

Como se pode notar, as implicações éticas e políticas dos sistemas de classificação não são pequenas e torna-se cada vez mais urgente pensá-las, uma vez que em nossa cultura proliferam indicadores, indexadores e taxonomias de diversos tipos e em diversos setores – do consumo ao crime, da ciência ao entretenimento, da economia à saúde, da política aos comportamentos mais cotidianos. Tomemos o exemplo dos indicadores bibliométricos, os quais visam apresentar um quadro da produção acadêmica e científica segundo índices que levam em conta o número de artigos publicados, de citações geradas por cada artigo, a reputação das revistas científicas em que são publicados etc. Tais indicadores, sem dúvida, permitem visualizar as áreas de conhecimento, as universidades, laboratórios e cientistas mais produtivos segundo os critérios acima. Ao mesmo tempo, esse conhecimento sobre a produtividade científica intervém sobre as possibilidades de obtenção de recursos e financiamentos, tornando certas áreas, laboratórios e cientistas mais financiáveis que outros, o que por sua vez os tornará mais produtivos que outros e assim sucessivamente. Ou seja, a tradução da produção acadêmica e científica em indicadores bibliométricos ao mesmo tempo “revela” o seu estado atual e intervém sobre essa própria produção e suas possibilidades futuras. Operam, ao mesmo tempo, como instrumento de conhecimento e instrumento de cálculo tanto para os cientistas quanto para as instâncias de fomento acerca das áreas, universidades e tipos de pesquisa mais estratégicos. Empresas especializadas em produzir rankings bibliométricos não podem ser mais explícitas; o site http://in-cites.com apresenta os objetivos de seus rankings: "analisar o desempenho de empresas, instituições e revistas; classificar países, revistas, cientistas, instituições e empresas por campo de pesquisa; identificar tendências significativas nas ciências e ciências sociais; avaliar potenciais empregados, colaboradores, pareceristas reviewers e colegas peers; determinar produtos outputs de pesquisa e impacto em campos específicos de pesquisa" 40. (apud Castiel; Sanz-Valero, 2007)

Um destino comum aos índices, indexadores e classificações dos mais variados tipos é passar a valer como a expressão única, necessária e inequívoca da “realidade”, o que muitas vezes silencia a margem de artificialidade e arbitrariedade presente em toda classificação, o que as torna sempre contingentes, provisórias, precárias. Uma boa e bela maneira de lembrar de que os critérios com que ordenamos as coisas não lhes pertencem reside no famoso texto de Jorge Luis Borges, que se refere a uma enciclopédia chinesa intitulada Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos, cuja engenhosa classificação dos animais consistia em: “a) pertencentes ao imperador, b)embalsamados, c)domesticados, d)leitões, e)sereias, f)fabulosos, g)cães em liberdade, h)incluídos na presente classificação, i)que se agitam como loucos, j)inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas”.

A inquietação provocada por essa ordem impensável não nos deixa esquecer de duas coisas bastante simples, mas decisivas: primeiro, que o modo como categorizamos o mundo não é nem necessário nem universal, havendo múltiplas formas possíveis de ordenação; segundo, que toda classificação deve ser interrogada não apenas quanto à sua adequação à realidade a que se referem, mas também e principalmente quanto à realidade que produzem e suas implicações éticas e políticas.

Fernanda Bruno é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora da linha de pesquisa Tecnologias da Comunicação e Estéticas da UFRJ, e do CiberIDEA - Núcleo de Pesquisa em Tecnologias da Comunicação, Cultura e Subjetividade


Referências Bibliográficas

Borges, J.L. “O idioma analítico de John Wilkins”. In: Obras Completas. Porto Alegre: Globo,1999b
Geoffrey C.
Bowker, G. C. & Star, S. L. Sorting things out: classification and its consequences. Cambridge, MA: MIT Press, 1999.
Castiel, L. D.; Sanz-Valero, J.. “Entre fetichismo e sobrevivência: o artigo científico é uma mercadoria acadêmica?” In: Cad. Saúde Pública vol.23 no.12 Rio de Janeiro Dec. 2007
Hacking, I. “Between Michel Foucault and Erving Goffman: between discourse in the abstract and face-to-face interaction”. In: Economy and Society, Volume 33, Number 3, August, 2004, pp. 277-302(26)