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Entrevistas
Simon Blackburn
Alguma vez você se envolveu numa discussão acalorada em que alguém tentou colocar um ponto final dizendo que “você acredita na sua verdade, e eu, na minha”? Já se deparou com tentativas de igualar explicações tão antagônicas quanto o criacionismo e o darwinismo, afirmando que a verdade depende apenas do ponto de vista de quem analisa o problema da enorme diversidade e complexidade da vida? Pois bem. Se você se incomoda com argumentos desse tipo e já se viu irremediavelmente enrolado neles, vai gostar de conhecer as ideias do filósofo inglês Simon Blackburn.
Danilo Albergaria
10/07/2010

Em 2005, o professor da Universidade de Cambridge publicou o livro Verdade: um guia para os perplexos, no qual procura esclarecer para um público amplo os aspectos mais importantes da longa disputa filosófica entre absolutistas (crentes na verdade) e relativistas (inclinados ao ceticismo). Aparentemente inofensivas, as preocupações sobre a verdade perturbaram a consciência ocidental por mais de dois milênios: afinal, a verdade existe?

Há verdades universais, válidas em todos os lugares e em todas as situações, ou elas não passam de perigosas quimeras? Nos primeiros séculos da era moderna, o consenso apontou confiantemente para afirmações positivas. Porém, nos últimos cem anos – um pouco mais, talvez – por causa dos horrores propiciados pela alta tecnologia, e também pelo próprio desenvolvimento da ciência e da filosofia, as respostas a essas antiquíssimas questões empurraram energicamente o pêndulo filosófico de volta para o lado relativista. Hoje, falar em verdade não é algo levado muito a sério, a não ser que sejam usadas as devidas aspas e ressalvas. Com a postura de quem tenta encarar de frente a atual “crise da verdade” e vê o pêndulo ter ido longe demais para o lado cético, Blackburn concedeu esta descontraída entrevista à ComCiência.

ComCiência - O seu livro Verdade: um guia para os perplexos tem a clara intenção de “levar para as ruas” os principais problemas filosóficos acerca da verdade. Como o senhor vê a relevância dessa discussão para um público mais amplo, particularmente nas modernas democracias tecnocientíficas?

Simon Blackburn - Espero que essa discussão seja relevante de várias maneiras. Antes de mais nada, tem havido muita confusão sobre a “verdade”, especialmente sob a luz do “pós-modernismo”, que se supõe amparar uma postura particularmente cética com relação à verdade. Eu esperava propor uma discussão melhor do que aquela que tínhamos imediatamente à mão. Além disso, eu acho que as pessoas tornam-se particularmente confusas sobre a verdade moral e política, e se de fato existe tal coisa ou apenas um confronto de opiniões. Eu esperava mostrar que o relativismo não é uma posição a ser temida e, ao contrário, pode ser, de fato, facilmente evitada.

ComCiência - As preocupações filosóficas acerca da verdade e da realidade parecem ter uma forma de movimento pendular, mas o pensamento histórico nos lembra que particularidades históricas não podem ser facilmente jogadas pela janela. Então, o que distingue a “crise da verdade” de nosso tempo com, digamos, a do tempo de Pirro1? O que mais caracteriza o ceticismo nos dias atuais?

Blackburn - Acho que o estímulo emocional para o ceticismo de nosso tempo é o colapso da confiança ocidental. Por vários séculos, estivemos confiantes sobre o progresso científico, educacional e social. Mas o século XX mostrou-nos, ao contrário, apenas uma sucessão de horrores. Ainda por cima, nós temos problemas ambientais e encaramos um futuro incerto em termos de recursos, clima, biodiversidade, etc. Nós também perdemos a confiança nas grandes histórias do comunismo, e até mesmo nas da democracia. Penso que essa perda de confiança não é, realmente, uma coisa ruim. Só que o remédio não é jogar fora o pensamento racional, mas aplicá-lo melhor. Temo que eu não saiba o suficiente sobre a situação política do tempo de Pirro para fazer uma comparação. Mas supõe-se que ele viajou (com Alexandre) e, portanto, teve a oportunidade de comparar diferentes visões em diferentes lugares, e talvez esta tenha sido uma das fontes de seu ceticismo.

ComCiência - Há mais ou menos uma década, Alan Sokal justificou seus esforços no chamado “Caso Sokal” ou “Farsa Sokal”2, e mais tarde no livro Imposturas intelectuais, dizendo que seu maior objetivo era salvar a esquerda dela própria – mais precisamente, de sua versão “pós-moderna”, relativista e acadêmica. Quais foram suas preocupações políticas por trás de seu posicionamento nas “guerras da verdade”? Que alvo político (se houver) você tinha em mente quando escreveu seu livro Verdade e como o senhor vê a si mesmo com relação ao posicionamento político em sentido amplo?

Blackburn - Quando estou escrevendo filosofia, não penso em mim como um ativista político. Eu apenas tento esclarecer um pouco as coisas. Filósofos analíticos como eu gostam de clareza; as pessoas que Sokal estava atacando eram pretensiosos pseudo-filósofos sem treinamento, que gostavam de criar uma névoa ao redor de si mesmos. Foi bom tentar dissipar essa névoa, mas eu tinha outras coisas com que me preocupar!

ComCiência - O senhor acredita que diferentes reacionarismos podem achar abrigo confortável na visão “relativista” da verdade, tanto quanto o encontram na visão “absolutista”?

Blackburn - Parte do problema com a postura “relativista” é que ela não oferece guia: é um erro pensar que suas consequências práticas residam em qualquer lugar particular do espectro político, entre direita e esquerda. Desde que, com efeito, o relativismo afirma que “não há verdade: apenas a sua verdade, a minha verdade, a verdade dele”, quando as coisas esquentam e as opiniões se diferem, tudo o que o relativista pode fazer é ficar nas margens, como antes. Ele não pode afirmar ou sustentar nada, seja à esquerda ou à direita, pois sustentar uma afirmação significa adiantar um posicionamento como verdadeiro, para que concordem com ele. Ao negar a verdade, o relativista nega o direito de sustentar qualquer afirmação. É por isso que ele é inconveniente, sempre ficando à margem, nunca jogando o jogo.

ComCiência - Poderia o relativismo radical contemporâneo, em plena era do multiculturalismo, estar separando e isolando culturas e pontos de vista, em vez de torná-los acessíveis, compreensíveis e mais toleráveis entre si?

Blackburn - Não estou certo se ele é importante o suficiente para fazer isso. O relativismo não pode ser confundido com a tolerância, que é uma posição moral genuína, e quase sempre uma boa postura. No entanto, há limites para a tolerância, mesmo para um liberal (como explorado por John Stuart Mill). Alguns aspectos de determinadas culturas são bem horríveis, e devemos estar preparados para julgá-los como tais.

ComCiência - Cerca de meio século atrás, Paul Feyerabend escreveu sobre como “é inevitável que os discursos das pessoas permaneçam completamente desconectados”, enquanto Thomas Kuhn teorizou sobre a incomensurabilidade dos paradigmas científicos3. Hoje, não é raro encontrar na academia pessoas que pensem que a ciência sobre as mudanças climáticas tem dois paradigmas rivais completamente desconectados e incomparáveis. O senhor poderia comentar a apropriação radical e interpretações errôneas sobre esses (e outros) filósofos da ciência afetando uma questão científica tão decisiva?

Blackburn - Deixe-me, primeiro, dizer que não concordo que as guerras em torno da ciência da mudança climática sejam bons exemplos das visões de Kuhn e Feyerabend sobre paradigmas científicos. Pois, na prática, as pessoas são empiricistas à moda antiga quando o assunto é temperatura. Apesar da temperatura global ser de difícil medição e poder significar muitas coisas, a maior parte das pessoas, acredito eu, tomam por fato que ela vai subir, ou tomam por fato de que isso não ocorrerá. Não há muito terreno para uma posição relativista que diria: se você observar através de um “paradigma” ou conjunto de lentes a temperatura sobe, e se você observar através de outro, ela não sobe. Em outras palavras, o problema que encaramos é epistemológico: incerteza sobre o que faz uma predição ter autoridade ou “a quem devemos dar ouvidos”. Não é um problema ontológico, em que há preocupação com a existência do fato em disputa.

O problema epistemológico, primeiro, é que existem interesses diretamente envolvidos. Alguns têm interesses financeiros, ou de carreira, em amplificar o desastre que encaramos, e outros têm interesses em minimizá-lo. Nessa situação, a verdade é muito difícil de encontrar e julgar. Eu realmente temo que os fanáticos do aquecimento global tenham causado danos à sua própria causa. Da maneira que entendo, a ciência sobre o problema é muito menos certa do que haviam alegado. Muito dessa ciência depende de extrapolações duvidosas sobre informações meio implausíveis. Mesmo assim, o risco não é zero, e de qualquer forma é ótimo que o mundo possa se tornar menos dependente de carbono. No entanto, eu duvido que tome essa direção, pois não vejo solução para a política envolvida. É um “dilema do prisioneiro”4 com múltiplos jogadores, e sempre vão existir Estados que não vão cooperar, às vezes por razões bastante compreensíveis. Por exemplo, é difícil esperar que um país pobre, subdesenvolvido, sem fornecimento decente de energia elétrica, mas com muito carvão, não o use, quando nós estivemos fazendo isso por mais de um século.

ComCiência - O senhor vê, no futuro próximo da filosofia, surgir algum tipo de mudança na direção de um esforço para traduzir e conectar diferentes visões de mundo, verdades parciais e locais? Ou o antagonismo entre relativistas e absolutistas continuará uma discussão dominante?

Blackburn - Bem, eu gostaria que isso não dominasse as discussões! Este é o motivo de eu ter escrito meu livro. Porém, sempre é difícil predizer o curso da filosofia, pois ela responde às forças políticas e sociais circundantes, que são, por si mesmas, difíceis de prever.


Notas

1. Pirro de Élis (360 a. C. - 270 a. C.) foi um filósofo grego tido como um dos primeiros a elaborar uma postura cética radical, de acordo com a qual nada é passível de ser conhecido e nunca se pode ter certeza de nada. O termo pirronismo passou à tradição como sinônimo de ceticismo.

2. Em 1998, para desmoralizar pensadores “pós-modernos” e seu meio acadêmico e intelectual, o físico estadunidense Alan Sokal montou uma bem urdida farsa. Escreveu um artigo nonsense com citações dos mais proeminentes filósofos “pós-modernos” (uma verdadeira colcha de retalhos sem sentido) e submeteu-o à tradicional revista Social Text. O artigo foi aprovado e, no mesmo dia em que foi publicado, Sokal revelou sua farsa. Mais tarde, Sokal e o matemático francês Jean Bricmont escreveram o livro Imposturas intelectuais para explicar a farsa e aprofundar a denúncia de abusos e erros sobre a linguagem científica cometidos por pensadores como Jacques Lacan e Gilles Deleuze.

3. Paul Feyerabend (1924 – 1994) foi um filósofo da ciência conhecido por sua “teoria anarquista do conhecimento”, cuja frase mais simbólica é: “qualquer coisa vale”. Thomas Kuhn (1922 – 1996) foi um historiador e filósofo da ciência que teorizou As estruturas das revoluções científicas (sua obra-chave, de 1962). Para ele, os paradigmas científicos dão as bases para que a ciência interrogue a realidade. São verdadeiras lentes mediadoras entre o mundo e os cientistas. E são incomensuráveis, objetivamente incomparáveis: não há critérios objetivos, científicos, lógicos ou epistemológicos que permitam avaliar qual paradigma é melhor do que outro num momento de “crise”, em que diferentes paradigmas científicos disputam entre si. Esta particularidade (entre outras) da teoria de Kuhn permitiu uma leitura radicalmente relativista de sua obra, que apontava para o irracionalismo no âmago da ciência, visão que ainda hoje continua hegemônica em vários círculos acadêmicos. Após a publicação e enorme difusão de As estruturas..., Kuhn dedicou boa parte de sua vida intelectual a contradizer as leituras relativistas mais radicais de suas ideias.

4. O “dilema do prisioneiro” é um problema fundamental da teoria dos jogos que demonstra porque dois jogadores podem não cooperar mesmo que seja do interesse de ambos que o façam. No caso da ameaça de aquecimento global, todos os países se beneficiariam de um clima estável, mas nenhum deles é capaz de cortar emissões de CO2 sem hesitação, pois o benefício que cada país consegue individualmente ao manter as coisas como estão é maior do que benefício para todos se todos cooperassem.

 

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