A sonoridade da versificação tradicional corre do cancioneiro popular à épica grandíloqua. Os tratados de metrificação destacam como musicalidade a competência para deslizar palavras em ritmo pré-estabelecido, num molde como o soneto. Hábil é o poeta que naturaliza o assunto em sons, acentos, sílabas métricas, vocábulos, frases sem atropelar o compasso fixo de um único decassílabo, por exemplo. Bastaria um tema bem orientado por dentro de um ritmo fluente para o poema cantar.
No verso-livre, a musicalidade nasce de bases menos dependentes da tradicional. O poeta traça uma rota poética a cada nova aventura. De saída, não dispõe de nenhuma célula rítmica, segue viagem sem estante prévia onde arrumar as palavras. Por isso a obsessão por toda possibilidade de recursos que, acomodados, fecham um circuito linguístico. Tudo lhe serve: aliterações, assonâncias, anáforas, recorrências vocabulares e imagéticas, paralelismos sintáticos e semânticos que vão definindo o contorno rítmico. Quando o poema soa convincente, como se não pudesse existir de outra maneira, o poeta estabeleceu um texto sinfônico sem nenhuma palavra à toa.
Mais ainda que o metrificador, o versilivrista teme ver sua linguagem escapar para a prosa ou fala ordinária. Seu desafio consiste em estabilizar um arranjo linguístico cujas regras funcionam neste, mas para aquele poema já não prestam. Aqui, o poeta é tratadista da própria obra. Tem dupla profissão: arquiteto, ao cantarolar o poema; engenheiro, ao calcular as normas que sustentam o canto. Se o compositor organiza no tempo sons que, do contrário, sobrariam ruídos, o artista do verso livre conforma palavras que brilham porque estão dentro de uma constelação, isto é, de um poema. Daí Mário de Andrade (1893-1945) e, depois dele, T. S. Eliot (1888-1965) assaltarem a música para criar suas teorias de verso livre.
Metrificados ou livres, os poemas mais sonoros de Mario Quintana (1906-1994) cheiram à meninice, infantilizam a percepção do mundo ou visitam a tenra idade. Trata-se de uma poética musical da infância, características que reunidas especificam a modernidade do bardo gaúcho. De fato, pelo menos desde Charles Baudelaire (1821-1867), o lírico moderno experimenta máscaras até então anti-convencionais, conquistando o direito de falar como lunático, louco, bêbado, drogado, mendigo, possuído, deprimido, sonhador e, justamente, como criança.
Ao assumir-se criança, o lírico consegue certo frescor na percepção, tudo que toca com os olhos é pela primeira vez, tudo que diz acabou de ser aprendido. Com licença para nomear tudo à vontade, esse poeta-menino tem a voracidade de Adão diante do paraíso. Quintana encena personas que se pronunciam crianças. Atraídas pelo ludismo na língua, testam os sons quase esquecendo os significados, divertindo-se com isso. É a música do aprendizado acústico que mesmo nós, adultos, às vezes praticamos. Inventar sintagmas impossíveis, repetir à exaustão frases conhecidas, transformar a linguagem num idioma mágico, mântrico.
Mario Quintana capricha na sonoridade ao colocar no centro do palco a infância. A estratégia amplifica a série imagística, porque as escolhas formais operam em consonância com a matéria em tom infantil. Conectada em paralelo à língua padrão e à tela descorada da vida automática, é como se a poesia pré-requeresse do visitante uma segunda alfabetização capaz, outrossim, de remoçar o dia-a-dia. Há poemas, como “Canção da garoa” ( Canções, 1946), que chegam mesmo a regredir ao balbuciar da criança, reconduzindo-nos ao gradus primus da língua materna: “Em cima do meu telhado, / Pirulin lulin lulin”.
II
Dorme, ruazinha... É tudo escuro... E os meus passos, quem é que pode ouvi-los? Dorme o teu sono sossegado e puro, Com teus lampiões, com teus jardins tranquilos...
Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro... Nem guardas para acaso persegui-los... Na noite alta, como sobre um muro, As estrelinhas cantam como grilos...
O vento está dormindo na calçada, O vento enovelou-se como um cão... Dorme, ruazinha... Não há nada..
Só os meus passos... Mas tão leves são Que até parecem, pela madrugada, Os da minha futura assombração...
( A rua dos cataventos, 1940)
A musicalidade métrica repercute nos ouvidos. Os versos são decassílabos corredios, entre sáficos ou heróicos. A leitura escorrega sem travas. Vindo de um tempo em que o texto comportava melodia, o soneto tornou-se das formas líricas mais racionais, sobretudo na maneira de dispor a matéria: exposição maior ( primeiro quarteto ), específica ( segundo quarteto ), conclusão ( tercetos ) e chave de ouro (último verso arrematador). Nisso, Quintana foi clássico. A parte acústica, no entanto, prepara uma festa de assonâncias, aliterações, refrão (“dorme ruazinha”) e paralelismos ao jeito de canção. Os diminutivos são como que pedais carregados de infantilização e familiaridade.
O contorno musical harmoniza-se à matéria. Embora lançando mão do carrancudo soneto, espécie de bicho papão dos iniciantes, o poeta brota um estranho acalanto. Primeiro, por embalar um ser inanimado : a rua. Segundo, porque ela é a própria área do medo, do inesperado, reduto do homem-do-saco, de ciganos, de bichos e toda sorte de perigos a espreitar os pequenos. Ou seja, nina-se a ameaça e não a criança, como esperado. São pessoas que põem em risco a rua ( ladrões e guarda ). O poeta trata a rua como ente querido. Feita parente, diz que a visitará como “ futura assombração ”. A rua, enfim, lida bem com o sobrenatural criado pelos adultos para assustar a molecada.
Na estreia em livro ( A rua dos cataventos, 1940), Quintana exercita o soneto, para na segunda obra ( Canções, 1946) atirar-se ao modelo lírico mais musical de quantos haja. Dono de uma ternura perene, mesmo ao expressar rabugice, começa testando os instrumentos disponíveis. Sua musicalidade brasileira adapta-se, mas esgarça o soneto europeu, por isso vai caindo para uma canção plástica que lhe abrirá as portas do verso livre e, mais tarde, do poema em prosa. Experimentando dançar o vanerão ao piano, por assim dizer, viu que seu compasso chegava mesmo para acordeom. Daí assumir que a canção “já vem dançando, com as rimas de mãos dadas” (“Carta”, in Caderno H, 1973).
A canção abusa de um princípio básico : a musicalidade flagrante num texto pouco extenso ou, no máximo, particionado em estâncias menores. Toda canção tende a nos envolver com ritmo, refrão, jogos anafóricos, redes de paralelismos sintático-semânticos, retomadas de ideias. Ela não abre mão de versos medidos ainda que em polimetria. A canção solicita a leitura em voz alta, ora repassando certos versos ou conjuntos, como no canto, ora pedindo duas ou três vozes. Nesse sentido, todas as formas fixas ou semi-fixas da lírica – balada, vilancete, madrigal, cantiga, soneto, etc – têm lá seu quinhão de canção, gênero entre poesia e música, artes mais ou menos próximas conforme épocas e culturas.
Canção de nuvem e vento
Medo da nuvem Medo Medo Medo da nuvem que vai crescendo Que vai se abrindo Que não se sabe O que vai saindo Medo da nuvem Nuvem Nuvem Medo do vento Medo Medo Medo do vento que vai ventando Que vai falando Que não se sabe O que vai dizendo Medo do vento Vento Vento Medo do gesto Mudo Medo da fala Surda Que vai movendo Que vai dizendo Que não se sabe... Que bem se sabe Que tudo é nuvem que tudo é vento Nuvem e vento Vento Vento !
( Canções, 1946)
Esses versos polimétricos chamam-se canção por conta do jogo anafórico, da base rítmica tetrassilábica, dos gerúndios sustentando um sistema de rimas monocórdio se não simulasse o movimento do vento. O vocabulário seleto, recorrente e aliterante estabiliza um texto compacto e movente. O princípio da canção está, pois, a toda. A repetição exaustiva do vocábulo “medo” reforça aquele pavor de tudo que certas crianças desenvolvem, relacionado ao receio de crescer e desbravar o desconhecido com as próprias pernas. Henrique Mann, de certo, descobriu no texto essa partitura, verdadeira carta de navegação norteando a musicá-lo. Ouça-se o álbum Quintanares&Cantares, de 1986.
Sob a pauta infantil, além disso, é possível desabafar o grito contra a supressão da liberdade. O alvo seria um Estado Novo (1937-1945) que amedronta, paralisa e, por fim, infantiliza o cidadão para melhor dirigi-lo. Assim, o pai tirano que, na sua fraqueza de argumentos, reduz o filho ao “gesto mudo”, à “fala surda”. Tal recurso foi criativamente reciclado por artistas sobreviventes de outra ditadura, a militar (1964-1985). Ouçam-se as entrelinhas de trilhas como Vila Sésamo (1974), Os Saltimbancos (1977) e Arca de Noé (1980 e 1981).
Da paginação
Os livros de poemas devem ter margens largas e muitas páginas em branco e suficientes claros nas páginas impressas, para que as crianças possam enchê-los de desenhos – gatos, homens, aviões, casas, chaminés, árvores, luas, pontes, automóveis, cachorros, cavalos, bois, tranças, estrelas – que passarão também a fazer parte dos poemas... ( Sapato florido, 1948).
Embora esse ligeiro poema em prosa não arrume musicalidade especial, descortina um poeta cioso da recepção infantil. O próprio texto físico vem a ser o brinquedo com o qual a criança interage. A sugestão, na verdade, serve para qualquer leitor que se permita a puerícia no ato da experiência poética. De fato, com mais frequência que outros gêneros, a poesia restitui aos falantes do português utilitário o frescor da vida através de uma língua que transporta. Poeta e leitor fundem-se num concerto de significados, co-autores de um singular jogo de ganha-ganha.
O anjo da escada
Na volta da escada Na volta escura da escada. O Anjo disse o meu nome. E o meu nome varou de lado a lado o meu peito. E vinha um rumor distante de vozes clamando clamando... Deixa-me! Que tenho a ver com as tuas naus perdidas? Deixa-me sozinho com os meus pássaros... com os meus caminhos... com as minhas nuvens...
( O aprendiz de feiticeiro, 1950)
A musicalidade desses versos livres emana de uma rede paralelística: “na volta ”, “da escada ”, “o meu nome ”, “clamando”, “deixa-me” e “ com os meus ”. Ela funciona como armação musical do poema, o restante das palavras preenchendo o alicerce acústico. Como linhas melódicas de uma orquestração, cada um desses motivos jamais reaparece exatamente igual, mas variado, acrescido ou subtraído. Há ainda um traçado razoável de aliterações, assonâncias e rimas.
O eu lírico vive ou rememora uma passagem. O menino se depara com o anjo que mais parece assombração. Susto e tremor enormes são convertidos em humor negro, diferente do terror típico de filmes como O sexto sentido (1999). A voz da entidade atravessa o corpo do moleque : “E o meu nome varou de lado a lado o meu peito.” A situação, entretanto, está sob controle. Note-se que ele negocia com normalidade, não quer conversa, pois seus brinquedos, sua vida ganham em interesse do sobrenatural. No limite, a alma penada é sua camarada, é “o anjo da escada”, com artigo definido e endereço fixo.
Os grilos
Os grilos abrem frinchas no silêncio. Os grilos trincam as vidraças negras da noite. E o silêncio das vastas solidões noturnas é uma rede tecida de cricrilos... Mas impossível que haja tantos grilos no mundo, pensa o Doutor... Sim, talvez seja um problema do labirinto, retruco, telepático. Mas eu só acredito no que está nos meus poemas, doutor... Meus poemas é que são os meus sentidos e não esses, tão poucos, que se contam pelos dedos e não passam de um único bicho estropiado de cinco patas, com que mal pode se locomover. Chego ao fim da consulta como chego ao fim deste soneto. Fecha-se a porta do poema e saio para a rua :... um pobre bicho perdido, perdido...
( Apontamentos de história sobrenatural, 1976)
Aqui, imaginamos um diálogo quase de via única. Um bate-papo entre o (im)paciente e o terapeuta. Sem contar as semi-linhas, o poema possui 14 versos tocados como soneto frustrado, como tentativa de entender os grilos, aflições do mundo. Quando o modernismo começou a engatinhar, sempre houve poemas em versos livres à sombra da forma soneto. Acostumados, educados, calejados nessa forma fixa, os poetas escreviam como que sonetos arruinados, simplificados ou dilatados. Com Mario Quintana, não foi diferente.
A musicalidade nasce do potencial que as palavras têm de sugerir grilos. O texto todo cricrila! Essa harmonia imitativa reforça a birra da pessoa lírica. É como se os grilos atravessassem a leitura. Não podemos silenciá-los. São os bichos, encanações desse eu-menino. Grilo (objeto) e poeta (sujeito) acabam abraçados, cinco patas com cinco sentidos num largo amplexo que, ainda assim, não dá conta da realidade que se deseja abarcar. Os sentidos humanos apenas podem intuir o universo sensível.
Diante da impossibilidade da significação total, abastecido por uma saraivada de grilos, o poeta fica literalmente grilado. Comunicando-se com o concerto do mundo, seu canto soa tanto mais forte se reconhecer-se parte da sinfonia total. Como sofre para passar do canto solo (egotismo) para o coro (sociedade), o poeta foge de casa, bicho-moleque perdido. Sai do confortável cercadinho poético (“só acredito no que está nos meus poemas”), como se banido do paraíso.
Pedro Marques é poeta, compositor e doutor em teoria e história literária pela Unicamp. Autor de Manuel Bandeira e a música (2008) e Olhos nos olhos (2008). Participou do volume Palavra cantada: ensaios sobre poesia, música e voz (2008) e, como letrista, do álbum A cidade e seus compositores (2009).
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