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Artigo
Monstros/as? Mostras? Meninas/os?
Por Elenise Cristina Pires de Andrade
10/10/2007

Este texto não pretende caminhar junto a Humberto Gessinger (vocalista e eterno “detentor” do nome Engenheiros do Hawaii ) nas aliterações, mas busca também expandir-se e fluidificar-se no que comumente demarcamos e denominamos como monstros/as, mostras e meninos/as. Convido-os/as, leitores/as, a outras (im)possibilidades em pensar o mundo e o seu entendimento para além daquelas permitidas (ou não) pelas demarcações e comparações que as conceituações nos provocam (ou nos obrigariam?) em busca de equivalentes, interpretações, utilidades. Minha provoc-ação, neste espaço/tempo, perambula por caminhos, desvios e atalhos que Nietzsche, Foucault e Deleuze expressam – a aposta no esgarçamento e na dilaceração que a ausência da verdade e da moral pode causar no mundo, no pensamento, no conhecimento.

Tentarei explicar em que esse atordoamento pode (ou não) conectar com o tema desse número da revista. Vocês provavelmente conhecem as personagens da produção da Disney Pixar (2001) dirigida por Peter Docter e David Silverman, Monstros S.A.(imagem abaixo). Para os/as mais distraídos/as: o grandão azul é James P. Sullivan, um excelente assustador de crianças – ídolo em sua nobre função. O verde “monocular” é seu fiel amigo e assistente, Mike Wzowski e a assustadora personagem de vestido vermelho, um veneno tóxico e perigoso para todos/as, a garotinha Boo.


Interessantíssimo título, mas o que me inspira não é a sua obviedade, muito pelo contrário, o que podemos estranhar: o que são monstros? Seriam diferentes de monstras? Por que assustam? Um dos cartazes de divulgação da animação nos alerta “We scare because we care” ( Assustamos porque nos preocupamos). Será, então, que a “função” de assustar estaria conectada com a preocupação em delimitar o que(m) assusta (o) que(m)?

Jeffrey Jerome Cohen, professor de língua inglesa na George Washington University, tem um interessante ensaio no qual propõe sete teses para a cultura dos monstros e, dentre elas, destaca que o corpo do monstro sempre escapa. “As demasiadamente precisas leis da natureza tais como estabelecidas pela ciência são alegremente violadas pela estranha composição do corpo do monstro”. Pêlos azuis e chifres, olho único e ausência de corpo (ou seria falta de cabeça?), cabelos pretos e maria-chiquinhas. Como poderíamos delimitar a fronteira entre o humano e o monstruoso? Para o filósofo português José Gil, “Os monstros são absolutamente necessários para continuar a crer-se homem” com o monstro situado não fora do domínio humano, mas no seu limite.

Convidemos Walmor Corrêa, um artista catarinense e sua exposição Cryptozoology, onde escolhe apresentar os interiores orgânicos de seres fantásticos de várias regiões do Brasil em uma série por ele associada à Unheimlich – termo utilizado por Freud em 1919 para designar o que era estranho e familiar ao mesmo tempo. Além do artista, chamemos por Afonso Taunay (1876-1958), que procura (e acha) os registros do estranho, do inacreditável, do alguma vez real na fauna brasileira até o século XVIII. Monstros e monstrengos que habita(m)(vam) os diferentes cantos do Brasil vistos e relatados por índios, negros, brancos, viajantes, naturalistas.

A apresentação pormenorizada do corpo monstruoso do Curupira torná-lo-ia humano pela arte de Walmor Corrêa? E a preguiça gigante com cara de gente, seria um corpo monstruoso ou não? Gosto de atravessá-los pela falta de conclusões, nem uma coisa nem outra. Invenções. Composições que convidam apagamentos e não somente explicações, justificativas, classificações e delimitações. Limite esgarçado assim como os replicantes de Blade Runner, os mutantes de X-Men e as esculturas plastinadas do médico alemão Gunther von Hagens. O que especificaria o corpo dos replicantes – não humanos – dos “verdadeiramente” Homo sapiens se ambos nos são apresentados por atores e atrizes humanos/as? O que aterrorizaria tanto as pessoas através do mundo nos corpos expostos do doutor alemão e tranqüilizaria frente à exposição do médico Rot Glover, criador da mostra Corpo humano: real e fascinante?

“Nossa abordagem é científica e não artística” disse Dr. Glover à Folha de S. Paulo de 28/02/07. Continua o médico na mesma reportagem: “A exposição foi projetada apenas para educar e ajudar as pessoas a aprender sobre seus corpos, por meio da dissecação meticulosa, preservação e exibição respeitosa de corpos humanos de verdade.” Acho que essa frase-justificativa pode nos ajudar a desdizê-la, ao carregar tantos acordos e jogos de poderes morais que mais mereceria estar em um livro de alguma religião do que em compêndios artísticos ou científicos.

Abordagem científica, artística, sexual, capitalista, futebolística não importa aos olhos, ouvidos, aos corpos que sentem, vêem, ouvem os ruídos e as vozes da ausência da pele, das veias, músculos que também são meus, nossos, vossos, deles/as. Para mim, esses corpos escancaram, na irrupção da ausência de uma suposta sacralização do “corpo humano real e fascinante” que só existe nesse título, a matéria objeto que nos con-forma, de-forma, forma? Fôrma? Emitimos ressonâncias como quaisquer outras matérias/objetos. Tais corpos apenas educam como qualquer matéria objeto que entremos em contato em nossa experiência, seja ela concreta ou imaginária: cheiro de bolinho, foto de um tênis, música de propaganda, etc etc etc. Von Hagens dilacera o real dos corpos plastinados e potencializa o fascinante. E o humano? E o corpo? “E o corpo ainda é pouco”?

Poucos, muitos, pulsos que pulsam. Ampliações que desorganizam o que comumente estamos acostumados a delimitar entre “normal” e monstruoso; humano e inumano. Juntemos a essas perambulações os super-heróis e suas angústias em des-limitar o que seria o “super”, esse dom, gift, presente com o qual a humanidade é rasurada e seu corpo desfeito. Mutantes de X-Men, por exemplo. Jorge Coli nos diz sobre o final do primeiro filme da série: “A luta travada dentro e fora da Estátua da Liberdade, numa seqüência de antologia, é grandemente simbólica. Ela não significa, como para outros super-heróis, o combate do bem contra o mal, em benefício do mundo ‘livre'. Ela faz surgir a questão: de que liberdade se trata? Esses super-heróis não vêm do espaço nem adquiriram poderes por acidentes. São humanos que evoluíram de modo superior e aberrante. É a origem humana que faz deles objeto de preconceito e que os obriga a dissimular a própria superioridade. Fora dos eixos comuns e normais, lutam entre si, na busca de um equilíbrio possível”1.

Que tensões seriam esgarçadas na busca desse equilíbrio? Talvez o desejo de alguns super-heróis (Os mutantes? Os humanos “normais”?) em “tornarem-se mais humanos” e “menos super”, relacione-se ao estranhamento que eles causam nos “humanos normais”. Estranhamento que transita ambígua e intensamente da admiração à repulsa. Como os super-heróis não escolheram ser portadores desse “super” buscam, desesperadamente, mantê-lo em segredo sem querer ser o hospedeiro desse dom. Parecem hospedar sua estranheza na inviolabilidade do “super” e não na demarcação da rostidade de um humano. Rostidade que quer ser fixada em identidade, marcada por limites e fronteiras explícitas, que não deixam dúvidas. Por exemplo, que visibilidade pretendia Isabelle Dinoire, a primeira pessoa a realizar um transplante de rosto? Por que tanta especulação pela mudança de um simples pedaço de pele em sua face? Isabelle concedeu sua primeira entrevista na cidade francesa de Amiens, dizendo-se muito feliz porque agora tem “um rosto como todo mundo”2. Qual seria o rosto de todo mundo? O rosto azul peludo de Sully ou o imenso olho de seu amigo? Depois de morto e tendo a pele extraída, não pareceríamos todos/as plastinados em composição?

Parece-me, Isabelle, que a esse rosto de todo mundo não se lhe permite uma replicação sem original nem cópia que você escancara, que desmorona a tão pretendida rostidade/identidade de cada ser/sujeito/humano e, consequentemente, não monstruoso. O que provavelmente ocorre com o “rosto de todo mundo” é uma ensandecida busca pelo rosto original, que presentearia aos demais seres humanos semelhanças a essa rostidade – rosto cópia – nunca chegando ao topo d'O Rosto, mas nunca correndo o risco de degradação da queda. Assim, ex-cancarar, isso é, desmontar uma suposta CARA HUMANA do nosso corpo produz deslizamentos e fluxos criativos em uma política de resistência à absolutização das classificações, das comparações, dos regimentos éticos e morais. Apostar em intensidades das palavras que tentam apresentar e explicar o inenarrável – a experiência do encontro.


Elenise Cristina Pires de Andrade é p
rofessora e coordenadora do curso de pedagogia das Faculdades Network, Nova Odessa-SP.

1 Trechos do texto “Ser parido aos pedaços”, publicado no Jornal Folha de S. Paulo de 10/09/2000, referindo-se à produção cinematográfica X-Men, o filme, dirigido por Bryan Singer.
2 Fonte: Agência EFE, 06/02/2006 - 10h23,
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