Nas
últimas décadas, mais precisamente a partir dos anos 1970, o debate sobre a
questão animal e as relações entre humanos e outros viventes tem mobilizado
pensadores e pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, em várias
partes do mundo. Esse crescente interesse pelo tema possibilitou, inclusive, o
surgimento de um novo campo de investigação que, sob a denominação de estudos animais, vem se afirmando como
um espaço de entrecruzamento de várias disciplinas oriundas das ciências
humanas e biológicas, em torno de dois grandes eixos de discussão: o que
concerne ao animal propriamente dito e à chamada animalidade, e o que se volta
para as complexas e controversas relações entre homens e animais não-humanos. O
que evidencia a emergência do tema como um fenômeno transversal, que corta
obliquamente diferentes campos de conhecimento e propicia novas maneiras de se reconfigurar,
fora dos domínios do antropocentrismo e do especismo, o próprio conceito de
humano.
Nesse
espaço híbrido têm sido referências teóricas importantes os escritos de Jacques
Derrida sobre o animal, as análises de Michel Foucault sobre animalidade e
loucura, o conceito de devir-animal de Gilles Deleuze & Félix Guattari, as reflexões de George
Bataille sobre a animalidade, as abordagens bioéticas de Peter Singer, a noção
de companion species de Donna Haraway, os estudos etnológicos
de Eduardo Viveiros de Castro, além das instigantes contribuições de John
Berger, Giorgi Agamben, Dominique Lestel e Cary Wolfe, entre outros. Mas foi
Michel de Montaigne quem prefigurou esse pensamento, ainda no século
XVI, através de seu ensaio “Apologia de Raymond Sebond”, no qual, com propósitos de
desqualificar a presunção humana, empreende um longo elogio aos animais. Muitas
das considerações apresentadas por ele se fazem presentes, hoje, nos estudos
sobre as relações entre humanos e outros viventes.
No que
tange aos estudos literários, as discussões relativas ao problema dos animais
começaram a se delinear mais efetivamente nos últimos anos. É notável o crescente
interesse crítico-teórico pela temática, fora das circunscrições metafóricas
que quase sempre marcaram os enfoques literários dos animais não-humanos. O que
se justifica, não apenas pelas preocupações de ordem ecológica que têm movido a
sociedade contemporânea, mas também por uma tomada mais efetiva de consciência,
por parte dos escritores e artistas em geral, dos problemas ético-políticos que
envolvem nossa relação com as demais espécies viventes. Não são poucos os escritores/artistas
que hoje têm explorado, sob um enfoque liberto das amarras alegóricas,
diferentes categorias do mundo zoo. Feras enjauladas nos zoológicos do mundo, animais
domésticos e rurais, bichos de estimação, seres vivos classificados pela
biologia, cobaias de laboratórios, animais confinados e abatidos em fazendas
industriais e espécies em extinção têm ocupado, cada vez mais, um visível
espaço em livros, telas de cinema, palcos e salas de exposição. Para não
mencionar as imbricações entre humanidade e animalidade, natureza, cultura e
técnica, presentes em diversas produções simbólicas contemporâneas. Muitos
escritores e artistas buscam, dessa forma, investigar a complexidade que os
animais representam para a razão humana, buscando deles extrair, inclusive, um
saber alternativo sobre o mundo e a humanidade. Autores como o sul-africano, ganhador do
Nobel, John M.
Coetzee, o inglês John Berger, a australiana Eva Hornung, o francês Jacques
Roubaud, os mexicanos Juan José Arreola e José Emílio Pacheco, o italiano
Alessandro Boffa, a americana Patricia Highsmith, entre vários outros, são
alguns nomes exemplares.
Pode-se afirmar que Franz Kafka
foi um marco nesse processo, ao inserir em seus contos – no início do século XX
– figuras animais fora da circunscrição antropocêntrica, inscrevendo na
zooliteratura ocidental uma nova forma de compreender o animal e as
manifestações da animalidade. Nesse sentido, a novela A metamorfose, de 1915, é
um marco para o surgimento de uma linhagem literária voltada para os processos
de identificação/entrecruzamento de humano e não humano, sob um viés crítico,
capaz de desestabilizar as bases do humanismo antropocêntrico. Ela pode ser
considerada, assim, uma obra precursora no horizonte da literatura moderna e
contemporânea que problematiza as fronteiras entre humanidade e animalidade.
Fronteiras essas que demandam, mais do que nunca, uma abordagem pautada no
paradoxo: ao mesmo tempo em que são e devem ser mantidas – graças às inegáveis
diferenças que distinguem os animais humanos dos não-humanos –, é impossível
que sejam mantidas, visto que os humanos precisam se reconhecer animais para se
tornar humanos.
No
Brasil, verifica-se que a miríade de escritores voltados para um enfoque mais matizado
e consciencioso dos animais é expressiva, remontando à segunda metade do século
XIX, com Machado de Assis, que dedicou memoráveis contos, crônicas e passagens
de romances à situação dos animais no mundo dominado pela ciência e pelo triunfo
do racionalismo moderno. Vale dizer que ele foi um dos primeiros escritores
nacionais a fazer o elogio do vegetarianismo, numa crônica sobre a greve de
açougueiros acontecida no Rio de Janeiro em 1893, além de ter se manifestado
contra as touradas e abordado criticamente a crueldade das práticas de
vivissecção, comuns nos laboratórios científicos do tempo. Para não mencionar o
uso paródico que o escritor fez das fábulas, ao dar voz e palavras aos animais
em alguns textos como o conto “Ideias de
canário”, no qual ele mostra ser a ave bem
mais sábia do que o ornitologista que a estuda, ou a crônica “Conversa de
burros”, de 1892, em que relata uma interessante e filosófica conversa entre
dois desses animais sobre a possibilidade de ficarem livres da exploração
humana por causa da expansão do uso da tração elétrica nos bondes do Rio de
Janeiro. A diferença com relação à fabula tradicional é que os animais, neste
caso, não são antropomorfizados e nem estão a serviço da edificação humana, mas
aparecem como animais-animais que expressam o que o autor imagina que eles
falariam se pudessem fazer uso da linguagem verbal.
Já no
século XX, autores como Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano
Ramos, Clarice Lispector e João Alphonsus também se ocuparam do universo
animal, sem se renderem ao mero fascínio da fábula e da alegoria. A esses se
somam também alguns escritores atuais, como Wilson Bueno, Nuno Ramos, Regina
Redha, Astrid Cabral, Rubens Figueiredo e Eucanaã Ferraz, que, atentos à
situação do mundo neste início do século XXI, adotam uma postura mais incisiva
e radical diante da questão, assumindo uma posição mais engajada em relação ao
problema dos animais na sociedade contemporânea. Basta dizer que Regina Redha
publicou o primeiro “romance vegano” brasileiro, em 2008.
No caso
específico de Guimarães Rosa, pode-se dizer que ele se destaca como o grande
animalista das letras brasileiras. Desde seu primeiro livro de contos, Sagarana (1946), Rosa nunca deixou de
conferir aos animais uma especial atenção, tomando-os quase sempre como
sujeitos ativos, fora do amansamento antropomórfico e moralizador que constitui
grande parte da zooliteratura ocidental. Nas páginas de quase todos os seus
livros “fervilham bichos” de todas as espécies. Além disso, os embates, as interações, o
corpo-a-corpo dos homens com o mundo animal são bastante frequentes em suas
narrativas, indiciando o vivo interesse do escritor em abordar as afinidades e
os limites que há entre humanos e não humanos. Isso se dá a ver especialmente
nos textos em que o autor enfoca a convivência diária entre vaqueiros e os
animais do mundo rural do interior de Minas Gerais. Para não mencionar a
exploração que o autor faz dos traços de animalidade do humano, como em
“Meu tio o Iauaretê”, que trata da transformação de
um onceiro em um homem-onça, por um processo de contágio.
Percebe-se,
assim, um visível interesse de Rosa pelas “comunidades híbridas”, nas quais
predominam a riqueza e a diversidade das relações entre homem e animal não-humano, estas construídas a partir de compartilhamento de sentidos,
experiências, afetos e necessidades. A isso se soma ainda o interesse do
escritor em observar os aquários e os bichos enjaulados nos zoológicos
do mundo, como atestam as instigantes séries “Aquário” e “Zoo”, do livro
póstumo Ave palavra, as quais podem
ser tomadas como uma espécie de bestiário poético-afetivo.Aliás, chama a atenção
numa das seções desse livro, uma frase que parece justificar toda a série
zoológica de Rosa: “Amar os animais é aprendizado de humanidade”.
O animal como sujeito
Outra questão que se coloca é o
esforço desses escritores em apreender, pela palavra articulada, o “eu” dos animais não-humanos, entrar na pele deles,
imaginar o que eles diriam se tivessem o domínio da linguagem humana, encarnar
uma subjetividade possível (ainda que inventada) desses outros, conjeturar
sobre seus saberes acerca do mundo e da humanidade. Guimarães Rosa explorou isso nos contos “O
burrinho pedrês” e “Conversa de bois”. Outro exemplo é Carlos Drummond de
Andrade que, no poema “Um boi vê os homens”, encenou a voz de um “eu-bovino”
que rumina seu próprio conhecimento sobre a vida e a espécie humana, pondo em
xeque a capacidade dos homens em entender outros mundos que não o amparado pela
consciência. Recurso este também adotado
pelo poeta carioca Eucanaã Ferraz no poema “Fado do boi”, de 2008, espécie de
recriação interrogativa do poema drummondiano.
Tal esforço de encarnar a
primeira pessoa de um animal na escrita não deixa também de ensejar algumas
especulações. É possível configurar/encenar na
linguagem dos homens uma subjetividade animal?
O que vem a ser subjetividade? É uma instância reservada apenas
àqueles que se enquadram nas categorias de eu, razão, consciência, desejo,
vontade e intencionalidade?
Michel de
Montaigne, na “Apologia de Raymond
Sebond”, já defendia a ideia do animal como sujeito e chamava a atenção para a
complexidade dos bichos, mostrando que eles, dotados de variadas faculdades,
“fazem coisas que ultrapassam de muito aquilo de que somos capazes, coisas que
não conseguimos imitar e que nossa imaginação não nos permite sequer conceber”
(1). Interessante que tais considerações hoje vêm encontrarando amparo
científico graças, sobretudo, às descobertas da etologia contemporânea.
Dominique Lestel, em As origens animais
da cultura, reafirma as conjeturas de Montaigne, ao mostrar – a partir de
estudos recentes no campo do comportamento animal – a extraordinária
diversidade de comportamentos e competências dos viventes não-humanos, que vão
da habilidade estética até formas elaboradas de comunicação.
Assim, diante dos estudos etológicos
contemporâneos, quem garante que os animais estão impedidos de pensar, ainda
que de uma forma muito diferente da nossa, e ter uma voz que se inscreve na
linguagem? Estará, como indaga Lestel, a nossa racionalidade suficientemente
desenvolvida para explicar uma “racionalidade” que lhe é estranha, caso esta
realmente exista? (2).
À literatura cabe sondar, através
dos recursos da imaginação e da ficção, essas possibilidades. Cada escritor busca criar
uma forma de encontro com a outridade animal, seja através do pacto, da aliança
e da compaixão, seja pela entrada no espaço desses outros, seja pela tentativa
ilusória de figuração ou de incorporação de uma subjetividade alheia, o
registro ficcional sobre animais se faz sempre como um desafio à razão e à imaginação. São tentativas que indicam tanto a nossa necessidade
de apreender algo deles, quanto um desejo de recuperar nossa própria
animalidade perdida ou recalcada, contra a qual foi sendo construído, ao longo
dos séculos, um conceito de humano e de humanidade. Afinal, foi precisamente
através da negação da animalidade que se forjou uma definição de humano, não
obstante a espécie humana seja fundamentalmente animal.
Maria Esther
Maciel é professora associada de teoria da literatura e literatura comparada da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). É autora, dentre algumas publicações,
dos livros: A memória das coisas
ensaios de literatura, cinema e artes plásticas (2004), O animal escrito (2008) e Escrever/Pensar
o animal (Org.,
2011). E é, atualmente, colunista
semanal do caderno de cultura do jornal Estado de Minas.
Notas de rodapé
- Montaigne, Michel de. Apologia de
Raymond Sebond. Ensaios II.
Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p.118.
- Montaigne
admitia a existência de um processo de raciocínio nos animais. Ele chega a
mencionar o conhecimento que os atuns teriam dos três ramos da matemática:
a astronomia, a geometria e a aritmética. Nas palavras do filósofo, eles
“revelam conhecer a geometria e a aritmética, porquanto se reúnem em
cardumes da forma de um cubo quadrado por todos os lados, de sorte que
formam um batalhão sólido de seis faces iguais; nadam nessa ordem de
dimensões idênticas atrás e na frente, de modo que quem os encontra e
conta uma fileira tem ideia precisa do todo, já que a largura do cardume é
igual à profundidade e ao comprimento” (Montaigne. Apologia de Raymond Sebond. p.
222).
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