Durante muitos anos, a formação
do conservador/restaurador brasileiro somente foi possível através de cursos e
especialização feitos na Europa e nos Estados Unidos. Após a década de 1970, começam
a surgir as primeiras iniciativas de cursos oferecidos pela Escola de Belas
Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pelo Centro de
Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis da Escola de Belas Artes da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) e pela Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro,
e, posteriormente, foram sendo criados outros cursos técnicos como o da Fundação
de Arte de Ouro Preto, da Associação Brasileira de Encadernação e Restauro, em São Paulo etc. Atualmente,
contamos com cursos de graduação em conservação-restauração de bens culturais
na UFRJ, na UFMG, na Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul,
além de outros em nível tecnólogo.
Apesar dos cursos de biblioteconomia,
de arquivologia e de museologia serem ligados à documentação e acervos, eles
oferecem, em geral, disciplinas eletivas não obrigatórias da área. No entanto,
os bibliotecários, arquivistas e museólogos necessitaram buscar cursos de especialização
para atuarem como conservadores-restauradores.
O conservador-restaurador, além
dos conhecimentos específicos em sua formação, recebe conhecimentos básicos de áreas
afins, tais como: história da arte, biologia, química e física. Ele deve
trabalhar de forma interdisciplinar com outros profissionais, como o cientista
da conservação, que darão suporte para análises e testes dos materiais
envolvidos.
Conservação-restauração de livros raros
Todo tratamento de conservação-restauração em livros raros somente deve
ser desenvolvido por um conservador-restaurador especializado, que tenha
conhecimento técnico-científico sobre a obra, seus materiais constitutivos e
suas técnicas de construção. Deve também ser capaz de avaliar seu estado de
conservação, as causas de deterioração e ter capacidade de intervir na obra,
para solucionar o problema, utilizando critérios e técnicas adequadas para sua
preservação. Essas intervenções devem ser as mínimas possíveis, sempre em busca
da permanência e da manutenção das características originais da obra. Todos os
processos devem ser executados utilizando materiais de qualidade de conservação
e que possam ser reversíveis.
Todo processo deve buscar a
recuperação da estrutura física do objeto restaurado, permitindo, assim, que os
valores presentes na obra original possam ser observados integralmente. Isso representa a conjugação de conhecimentos
científicos, estéticos e socio-históricos que fixarão os limites da intervenção
daquele que pode ser o restabelecimento da unidade potencial da obra, sempre
que isso seja possível, sem cometer uma falsificação artística ou histórica e
sem apagar nenhum vestígio do tempo.
O tratamento de livros raros,
muitas vezes, pode representar uma intervenção em obra única existente e,
portanto, o conservador-restaurador necessita dispor de conhecimento profundo
sobre ela e sobre seus elementos constitutivos. Para isso, ele necessita também
possuir um grande conhecimento dos diferentes estilos de encadernações. Desde o
início da história do livro, a encadernação tem como objetivo a proteção do
livro e, em se tratando de livros raros, temos que dar o mesmo tratamento a
ambos, tanto ao conteúdo (texto) quanto à sua encadernação, devolvendo à obra
suas características originais.
O Brasil tem uma carência muito grande na área de informação e conhecimento
especializado em tecnologia de construção de estruturas de livros e de
encadernações antigas e raras (como a da imagem abaixo). Diante dessa carência,
as instituições públicas, privadas e os colecionadores de livros raros, quando
necessitam executar intervenções nessas obras, se
deparam com um problema nem sempre bem resolvido. Por conta disso, muitas obras
acabam passando por tratamentos de intervenções
feitos por pessoas não capacitadas, comprometendo sua originalidade e,
com isso, perdem vestígios e testemunhos históricos relacionados à tecnologia
de construção e à própria história do objeto. Carimbos, dedicatórias e selos
são testemunhos de histórias individuais e institucionais que eventualmente são
apagados, destruídos, perdidos, bem como os próprios processos e identidade
material da manufatura. A memória do objeto perde-se, então, para sempre. Devemos
evitar a descaracterização de livros raros e de suas encadernações originais. Se
não se tem capacidade técnica e materiais adequados para os tratamentos
necessários, é preferível as obras como estão e bem acondicionadas – pelo menos
elas se manterão originais.
Códice egípcio (Bíblia) sem data, com estrutura rompida. Foto do autor. Isso
representa um desafio para os conservadores-restauradores, já que é
necessário um conhecimento detalhado sobre as técnicas de encadernações referentes
à execução de procedimentos de intervenção, de conservação e de restauração que
dependam de uma intervenção estrutural para que depois a obra possa ser
remontada seguindo suas características históricas e originais. A base
conceitual definidora nesse processo requer que não apenas se recupere a
aparência externa do livro, mas se preserve os indícios, as características e o
próprio formato da tecnologia de construção da obra.
Apesar da existência de cursos
técnicos e de graduação em conservação-restauração de bens culturais no Brasil,
há uma lacuna na especialização de conservadores-restauradores de livros raros –
falta investimento nessa área. O profissional que tem interesse precisa buscar
a especialização fora do Brasil.
Aqui,
as principais coleções de livros raros são dos séculos XVI a XIX. Podemos
destacar como referência as coleções de livros trazidas pela família real que
se encontram na Biblioteca Nacional, no Gabinete Português de Leitura, no Museu
Nacional, no Museu Histórico Nacional e no Museu Imperial. Outras instituições
de igual importância são: Biblioteca Mário de Andrade; Biblioteca de José
Mindlin (doada para a USP); e bibliotecas católicas, como a do Mosteiro de São
Bento; além de coleções universitárias,
coleções privadas, bibliotecas municipais e distintos órgãos estaduais.
Atuação do conservador-restaurador de
livros raros
No Brasil, ainda são poucos os
centros especializados criados para manter a demanda existente e cada vez mais
crescente na execução de tratamento de livros raros. Os
poucos especialistas estão concentrados nas instituições públicas que contam
com laboratórios e alguns deles em atelier particular.
No Rio de Janeiro, a Fundação
Casa de Rui Barbosa, através de seu Setor de Preservação, é uma referência no tratamento
de livros raros (ver abaixo exemplos de obras restauradas em seu laboratório), atendendo
às necessidades do acervo e oferecendo também cursos, seminários e estágios
orientados na área.
À esquerda, restauração de um códice medieval do
século XIV. À direita, folha em pergaminho de um códice medieval com danos
causados por pragas. Fotos do autor.
A profissão de
conservador-restaurador
A profissão de
conservador-restaurador de bens culturais móveis e integrados, bem como a
função de técnico nessa área são de natureza cultural, técnica, científica, e exercidas
por profissionais de nível superior, bacharéis, tecnólogos e técnicos. São
assim considerados profissionais: o cientista da conservação; o administrador
da preservação; o técnico em conservação; e o restaurador de bens culturais.
O projeto para
regulamentação do exercício dessa profissão está sendo aprovado pelo Congresso
Nacional e dispõe sobre os requisitos para o seu exercício. Ressalta-se no
projeto a obrigatoriedade de graduação em curso de nível superior ou técnico
com área de concentração em conservação-restauração de bens móveis e integrados
ou pós-graduação na mesma área de concentração, com monografia, dissertação ou
tese sobre conservação e restauração de bens móveis e integrados. O exercício
da profissão é também permitido para aqueles que já estão em atividades de
conservação e restauração, que comprovem o tempo de experiência e tenham
concluído um curso superior. Os diplomados em curso técnico de
conservação-restauração de bens móveis e integrados podem exercer a atividade,
desde que sob a supervisão de um conservador-restaurador.
Após a regulamentação da profissão, todo
patrimônio histórico e cultural, tombado ou não, estará mais protegido e deve ser
preservado. Qualquer ação de intervenção nesse
patrimônio terá fiscalização e só poderá ser executada por profissionais
capacitados.
Edmar Moraes
Gonçalves é bibliotecário, especialista em conservação-restauração de livros e
encadernações raras e chefe do Setor de Preservação da Fundação Casa de Rui
Barbosa.
|