A delicadeza e fragilidade das obras raras são
admiráveis. Para sua preservação, iniciativas de restauro devem contar com o
apoio de uma equipe bem treinada, atividades de conservação preventivas –
envolvendo a ação de funcionários e a conscientização de usuários – e um local
que permita seu armazenamento adequado. As bibliotecas brasileiras têm se
aperfeiçoado nessas atividades, formando profissionais especializados e
promovendo reformas que permitam melhor armazenamento de seus acervos,
principalmente nesse setor de obras especiais.
Na Biblioteca Central César Lattes, da
Universidade Estadual de Campinas, o “espaço físico destinado a abrigar os
livros raros, tornou-se insuficiente para armazenar novas coleções”, afirmam
Marta do Val e Tereza de Carvalho, da Diretoria de Coleções Especiais e Obras
Raras da Unicamp. Mas o problema está com os dias contados. A Financiadora de
Estudos e Projetos (Finep) aprovou uma verba de 11 milhões para a construção de
um novo edifício, ao lado da Biblioteca Central, para abrigar tal acervo. A
conclusão da construção está prevista para daqui a dois anos. Porém, ainda não
é certo que todas as obras raras espalhadas pela universidade serão reunidas no
local. Já se sabe que serão integrados os acervos documental e bibliográfico da
Coleção Sérgio Buarque de Holanda que estão, respectivamente, no Siarq (Arquivo
Central do Sistema de Arquivos) e na própria BCCL. Diante disso, “as
perspectivas são as melhores possíveis principalmente em relação à preservação
e conservação desse acervo”, garantem do Val e Carvalho.
Fechada para obras. Esta é a situação da Biblioteca Central da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, inclusive da seção de obras raras,
que passará a dispor de um espaço mais adequado ao seu armazenamento,
conservação, e ao acesso dos pesquisadores. A reforma – totalmente custeada
pela instituição – prevê mudanças na climatização, substituição das estantes
atuais por deslizantes e a criação de uma sala de consulta exclusiva para as
raridades. Apesar da entrega estar prevista para junho deste ano, ainda não há
data marcada para a reabertura ao público, esclarece a bibliotecária Ana
Rüdiger.
Outra
biblioteca que passou por uma recente reforma foi a Mário de Andrade, cujas
obras no edifício principal e anexo somaram 26 milhões de reais financiados
pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), sendo que 15% desses
recursos foram empregados pela própria Secretaria Municipal de Cultura da
Prefeitura de São Paulo. Além das obras estruturais, foram realizados
tratamentos em todo acervo. A ordem agora é prevenir “para retardar ao máximo
uma nova reforma do porte da atual”, afirma William Okubo, diretor substituto e
supervisor de acervo. Após anos sem funcionários da área de conservação, a
biblioteca conta, desde julho de 2010, com uma especialista para as atividades
preventivas e de diagnóstico. Além disso, “os funcionários da Seção de Obras
Raras têm frequentado cursos especiais de atualização”, como os oferecidos pelo
Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e pela Associação
Brasileira de Encardenação e Restauro (Aber). Também “foi produzido um Manual de Procedimentos para padronizar
as atividades de conservação preventiva que as obras raras merecem”, garante
Rizio.
Quem
orientava a rotina de conservação e restauro do acervo da Biblioteca Brasiliana
José e Guita Mindlin era a esposa de José Mindlin, Guita. Especialista na área,
ela criou em São Paulo,
junto com Teresa Teixeira, a Aber, responsável pela formação da maioria “das
pessoas que trabalham com conservação e restauro em todo o Brasil”, segundo
Cristina Antunes, curadora desta biblioteca. Apesar de Mindlin ter como
princípio a compra de exemplares completos e em bom estado, quando essa regra era
quebrada, sua esposa orientava todo processo, cujas dificuldades eram o
cuidado, a lentidão e o alto custo do trabalho de restauração. O desejo de que “a obra de uma vida” não
fosse desmembrada, mas sim conservada em um lugar digno e em condições adequadas
e por ter extrapolado o sentido de uma coleção particular, ganhando, cada vez
mais, um caráter público, o casal optou por vinculá-la a uma instituição
pública e oficial paulistana, a serviço de estudiosos e da cultura brasileira,
através de sua doação. Assim, a Brasiliana dos Mindlin está prestes a ser
transferida para suas novas instalações na Universidade de São Paulo (USP) que,
por sua vez, “se dispôs a honrar todas as condições necessárias para a
manutenção e conservação do acervo e sua disponibilização aos pesquisadores e
interessados em todas as áreas de estudos brasileiros”, cini explica Antunes. Esse acervo numeroso e valioso estará disponível no
campus universitário, servido de uma equipe e de um laboratório, onde serão
realizados restauros e encadernações.
Mas, esse
projeto inicial foi o inspirador de outro, o Brasiliana USP, pertencente à reitoria
da USP e concebido pela BBM e pelo professor do Instituto de Estudos Avançados István Jancsó, morto em 2010. Atualmente, o projeto é coordenado por
Pedro Puntoni, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
da mesma universidade. O objetivo é disponibilizar não somente os acervos da
Mindlin, mas também a totalidade de obras da instituição pela internet,
acreditando na “importância da democratização da informação através do acesso
livre,irrestrito e gratuito a essas obras”, contribuindo, também, para a
preservação das obras físicas, uma vez que os livros raros dos vários acervos
estarão disponíveis em versões digitais.
Com um serviço de preservação próprio,
que é referência em tratamento de livros raros, a Fundação Casa de Rui
Barbosa, localizada no Rio de Janeiro, além de atender
às necessidades de sua coleção, oferece cursos, seminários e estágios
orientados na área – iniciativa bastante louvável num país que possui poucos
especialistas capacitados em executar intervenções nesse tipo de acervo. Ainda
assim, pondera Dilza Bastos, chefe do Serviço de Biblioteca da Fundação,
“evita-se o manuseio daquelas obras raras já digitalizadas, preferindo-se o
acesso ao documento eletrônico”.
Situação
semelhante é a da Fundação Joaquim Nabuco, que também possui um Laboratório de
Pesquisa, Conservação e Restauração de Documentos e Obras de Arte (Laborarte)
– responsável por práticas de conservação e restauração de documentos, livros e
obras de arte. Com apoio e incentivos provenientes da própria instituição, é
mantida “uma política de digitalização documental que contribui para a
conservação do acervo, possibilitando o acesso e minimizando o manuseio da
documentação rara”, explica Lúcia Gaspar.
Na
Biblioteca Domingos Soares Ferreira Penna/MPEG, a conservação do acervo raro
tem sido preventiva, incluindo a conscientização e orientação dos usuários
quanto aos critérios e normas de uso de tais raridades. Apoio e incentivos a
essas medidas chegam através de projetos e, também, por meio da iniciativa
ministerial. Porém, dificuldades como a “falta de conteúdo programático nos
cursos das universidades da região Norte, sobre conservação de acervo antigo,
raro e valioso”, implicam na redução do número de profissionais locais “com
perfil e qualificação adequada para lidar com este tipo de acervo”, o que é
agravado pela concentração de mão de obra qualificada no eixo Centro-Sul,
explicam Aldeídes Camarinha e Berenice Bacelar, coordenadora do Centro de
Informação e Documentação (CID) e curadora da coleção de obras raras da
biblioteca do Museu Goeldi. Apesar do fechamento da referida biblioteca para
reforma, a consulta à Coleção de Obras Raras continua aberta à visitação, uma
vez que seu espaço foi recém-estruturado através de um projeto apresentado ao
Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), em 2009.
Embora no
Real Gabinete Português de Leitura não haja laboratório de restauração, a
instituição – privada e mantida com recursos próprios – possui em seu quadro de
funcionários três encadernadoras que realizam pequenos reparos necessários,
esclarece a bibliotecária Vera de Almeida. Diferente do Centro de Informação e Documentação
(Cedi), pertencente à Biblioteca Pedro Aleixo, onde existe um setor próprio que
monitora as condições de temperatura e umidade do acervo, cuidando também de
sua higienização, desinfecção e restauração. Enquanto na Biblioteca de Ciências
Biomédicasda Fiocruz, a preocupação não se restringe apenas aos
microorganismos. “A segurança de acervos tem sido uma preocupação constante
(...). Sinistros (inundações, alagamentos, incêndios...), ações criminosas de
depredação e furto, entre outras tantas, também se constituem em danos causados
aos acervos bibliográficos”, afirma Jeorgina Rodrigues.
O Plano Nacional de Recuperação de Obras Raras – Planor/FBN
Em outubro
de 1983, foi criado o Plano Nacional de
Restauração de Obras Raras, subordinado ao Departamento de Processamento
Técnico da Fundação Biblioteca Nacional, com o objetivo de orientar
“procedimentos e técnicas de conservação e restauração de acervos raros, bem
como a implantação de laboratórios de restauração, treinamento de
pessoal de outros estados, monitoramento do uso de recursos, estruturação do Repertório
Bibliográfico Nacional, dentre outras ações”, explica Rosângela Von Helde,
bibliotecária e atual gerente do plano.
Em 1994,
sua nova nomenclatura substituiu, por decisão do Ministério da Cultura, a
palavra “restauração” por “recuperação”. A partir de 2004, o projeto passou a ter gerência própria, bem como seus
objetivos foram reestruturados através do surgimento de novas ações, como: “programas
de treinamento e capacitação em identificação, organização e tratamento técnico
de livros raros; elaboração de critérios de raridade; assessorias e visitas
técnicas; promoção de eventos (Encontro Nacional de Acervo Raro – Enar); gerenciamento
do Catálogo do Patrimônio Bibliográfico
Nacional – CPBN, que reúne registros bibliográficos de obras dos séculos XV
ao XIX, de acervos raros de instituições públicas e privadas existentes no
país”.
Atualmente, busca-se ampliar tal catálogo, através do contato com as
instituições mapeadas pela equipe, na tentativa de elaborar um Guia do Patrimônio Nacional de Acervos Raros e Antigos, que será publicado em breve.
Entre
as instituições envolvidas nessa matéria, a Biblioteca Central/UFRGS; a
Fundação Casa de Rui Barbosa; a Fundaj; a Fiocruz; e o Museu Paraense Emílio
Goeldi afirmaram realizar ou já ter participado de algum tipo de atividade
conjunta com o Planor/FBN. A bibliotecária da Pedro Aleixo, Matie Nogi,
lamentou não haver “nenhuma ação neste sentido, embora haja interesse da
instituição em formalizar um trabalho de colaboração dessa natureza”. Segundo a
gerente do plano, é importante ressaltar para as instituições interessadas que
“o campo de atuação do Planor é restrito aos acervos raros (...). Não há
seleção ou necessidade de publicação de editais”. Mais informações podem ser
obtidas através dos contatos disponibilizados no site do plano: http://www.bn.br/planor/.
Leia também a reportagem As obras raras das bibliotecas brasileiras.
|