Reportagem |
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De volta ao Orinoco, seguindo von Humboldt |
Por Yurij Castelfranchi
10/06/2006
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O céu era um teto baixo de nuvens negras. O chão, água enfurecida e
ondas de dois metros. O transporte, uma canoa de 13 metros, feita de
uma tora só, cavada com machado e moldada a fogo. A equipe, cinco
indígenas, dois espanhóis, um cão mastim, pássaros, macacos, centenas
de amostras de flores e folhas. E dois jovens cientistas: o alemão Alexander von Humboldt (1769-1859) e o francês Aimé Goujaud Bonpland (1773-1858).
Era 18 de abril de 1800, e os dois viajantes, que já andavam pela
América do Sul há meses, estavam entrando na remota bacia do Médio
Orinoco, de onde, dizia um ditado, “quem vai não volta, ou volta
louco”. Iriam estudar a geologia, a fauna e a flora da região. E
averigüar a existência de um rio lendário, o canal Casiquiare, que não
nascia de fonte e não caia no mar. Mais de duzentos anos depois, fomos
lá para seguir as pisadas de Humboldt. Também num barco de 13 metros,
porém de alumínio e com motor de 40 Hp. Com o diário de viagem
do cientista na mão, com o pano de fundo uma paisagem natural quase
intocada, idêntica à que ele viu há dois séculos, vimos o que mudou.
Numa área ainda hoje remota e quase inabitada, há ainda missionários
caçadores de almas. Mas chegaram também os caçadores de ouro e o
espectro da guerrilha.
Descida no rio Orinoco
A cidade que Humboldt não viu
Nossa viagem começa num acampamento turístico à beira do rio Orinoco,
perto dos rápidos de Atures e Maipures, que eram para Humboldt uma
oitava maravilha do mundo. “Nada pode ser mais grandioso que esta
região”, escreveu o alemão, “…suas imensas corredeiras, o lençol de
espumas e vapores iluminados pelos raios do pôr-do-sol…”). Na noite de
18 de abril de 1800, Humboldt e seus companheiros acamparam aqui perto.
Mas não viram o que nós vimos. Porque Puerto Ayacucho, latitude 5,
porta de acesso à Amazônia venezuelana e ao Médio Orinoco, em 1800 não
existia. Foi inventada em 1924, com 200 habitantes entre selva e
planícies, para ser o último posto navegável subindo o Orinoco. Hoje é
uma cidade de 80 mil pessoas, cercada por um cerrado despenteado verde
brilhante, alternado às manchas pretas de rochas graníticas. Ayacucho
cresceu graças à migração de índios e mestiços para áreas urbanas, ao
turismo e a negócios com a Colômbia (logo no outro lado do rio),
lícitos e menos lícitos: contrabando de ouro, de gasolina (que na
Venezuela custa menos de 9 centavos por litro) e de drogas. Acampado,
Alexander von Humboldt escrevia: “além das Grandes Cataratas, uma terra
incógnita começa… Uma terra de fábulas, de visões e de fadas”. Na
época, acima das cataratas somente três tímidos assentamentos de
brancos ousavam violar a margem do Orinoco, preguiçoso gigante de águas
marrons. No interior, ninguém se arriscava. Na floresta inexplorada
viviam, de acordo com índios e missionários, raças de homens com um só
olho, outras com cabeça de cão e boca no meio do estômago, e o salvaje,
uma espécie de homem-macaco. Duzentos anos depois, turistas vêm para
brincar de rafting entre as corredeiras.
“A secunda descoberta da América”
Friedrich Wilhelm Alexander von Humboldt foi considerado o homem mais
famoso do mundo, em sua época, junto com Napoleão. Foi elogiado por
Goethe, Darwin e Simón Bolívar, que o chamou de “verdadeiro descobridor
da América do Sul”. Estudou direito, economia, línguas, geologia,
botânica, química, física, astronomia, zoologia, anatomia. Foi
funcionário público, mas sempre sonhou com uma grande expedição
científica que lhe permitisse buscar uma “ciência universal”, capaz de
mostrar “a profunda unidade da natureza”. Quando, em 1796, sua mãe
morreu, Humboldt dedicou toda sua herança ao projeto, gastando até o
último centavo para comprar os mais avançados instrumentos científicos
(dezenas), pagar a viagem (a do companheiro Bonpland também) e, em sua
volta, publicar a imensa mole de dados recolhidos. Junto com Bonpland
(“boa planta”, apelido que o botânico tinha desde a infância), embarcou
de Corunha em junho de 1799. Os dois cientistas fizeram escala em
Tenerife e chegaram em julho em Cumana, na atual Venezuela. Ficaram
explorando a costa vários meses. Em fevereiro de 1800, se dirigiram
para o interior, rumo ao Orinoco, que exploram ao longo de 4 meses,
percorrendo mais de 2700 km. Em novembro, viajaram para Cuba. Meses
depois, percorriam as Andes, escalando o Pichincha e o Chimborazo, na
época considerado o pico mais alto do mundo. Chegaram em Lima em
outubro de 1802. Viajaram enfim ao México, onde residiram durante um
ano. Seguiram para os Estados Unidos e foram homenageados pelo
presidente Jefferson. Voltaram à Europa em agosto de 1804, como heróis.
Haviam descrito e recolhido milhares de plantas e centenas de animais,
estudado as linhas isotermas e os peixes elétricos, os fenômenos
magnéticos e as propriedades do guano, as correntes oceânicas e as
tempestades tropicais, o vulcanismo e as chuvas de meteoros. Hoje,
existem uma dezenas de lugares, no mundo, com o nome Humboldt. E, até
na Lua, há um Mare Humboldtianum. Em nossa viagem repetimos somente a
parte amazônica da extraordinária viagem do Humboldt, na bacia do Médio
Orinoco e do rio Casiquiare, no âmbito de uma expedição financiada pela
revista italiana Focus Storia e pela empresa de turismo Kel12.
A viagem
Saímos do acampamento logo cedo, perdendo um jantar à base de bachacos, grossas formigas do género Atta,
consideradas uma iguaria (“voarão amanhã”, explica Saúl, faz-tudo do
acampamento, “e será fácil pegá-las no mato, ou em casa, atraídas pela
luz”). Partimos do porto de Samariapo, o primeiro acima dos rápidos, e
subimos o Orinoco rumo a latitudes decrescentes. A viagem é dura até
para quem está acostumado com a Amazônia. Passamos dias inteiros no
barco, debaixo de chuvas violentas. Nosso chuveiro é o rio, toalete é a
floresta, cama uma rede militar de plástico. Os mosquitos são de
espantar por número e ferocidade. Humboldt lamenta deles quase a cada
página de seu diário: são tema também de quase todas nossas conversas.
A paisagem é imponente, mas quase sufocante: um muro verde de mata
fechada é o único horizonte. Às vezes, o rio não parece ter margem,
porque onde a floresta começa, as águas não terminam. Penetram a selva,
submergindo-a. Numa pequena comunidade de índios Piaroa, tomamos uma
bebida à base de farinha e seje,
como chamam aqui o fruto de bacaba. Duzentos anos antes Humboldt fez o
mesmo: “parece leite de amêndoa”, escreveu. Só encontramos crianças e
idosos na aldeia. Os adultos passam o dia nas roças e na pesca,
enquanto os adolescentes tiveram que abandonar as famílias. Para poder
estudar, se transferem para os internatos, colégios católicos nas
comunidades de Isla Ratón ou de San Fernando de Atabapo, que já na
época de Humboldt era uma base de missionários. Chegamos lá no dia
seguinte. A cidade surge no ponto em que o rio Atabapo, negro como
Coca-Cola, corre paralelo às águas claras do Orinoco e do Guaviare,
criando um contraste cromático esplêndido. Na época do Humboldt, S.
Fernando era uma pequena missão. Hoje tem um vistoso posto de fronteira
da Guardia Nacional Venezuelana,
que mostra os músculos em direção à vizinha Colômbia, com brilhos de
artilharia pesada e barcos de guerra. Na pequena aldeia do outro lado
do rio, combates entre as Fuerzas Armadas Revolucionarias Colombianas (Farc) e o exército deixaram dezenas de famílias de desplazados.
Garimpeiro mostra pó de ouro compra
seus mantimentos, álcool e paga mulheres
Ouro e balas
Um dia depois, desembarcamos em Cárida. Ouvimos um ruído seco, como de
marteladas. A atmosfera é desoladora. A aldeia é uma praça barrenta,
cheia de lixo. Muitas casas são cobertas com plástico rasgado, pedaços
de alumínio, telas. Vejo a origem do ruído. Algo que Humboldt não viu.
Numa cabana, uma garota Piaroa senta no chão, com duas crianças, uma
arara e um tucano, cercada por um mar de latas de cerveja vazias. Bate,
amassa e põe num saco. É raro encontrar cerveja no Médio Orinoco. Nas
comunidades indígenas não existe, em muitas comunidades dos brancos sua
venda está proibida. Mas aqui é Cárida, terra de ouro e balas.
Antigamente era uma aldeia Piaroa, hoje é uma interzona mestiça, onde
os índios devem lidar com uma modernidade que só parece mostrar sua
face cruel. Estamos em frente ao monte Yapacana, área de altíssima
biodiversidade, parque nacional e terra indígena invadida por centenas
de garimpeiros clandestinos armados, em sua maioria vindos da Colômbia
e do Brasil, que ninguém tira de lá. A obsessão antiga dos europeus
pela busca de um El Dorado se alia aqui com maquinarias novas, que
escavam, sugam e filtram terra e lama da selva, cuspindo venenos:
mercúrio, prostituição, alcoolismo, doenças, violência. Pergunto quanto
a garota ganha batendo as latas. O professor da escola, um garoto, ri:
“Não é um bom negócio, gringo. Dois quilos dão uma raya”. Não existe dinheiro aqui, tudo se paga em rayas,
riscas de pó de ouro, cerca de 0.1 gramas. Um garimpeiro abre uma
garrafinha que tem pendurada no pescoço e me mostra duas riscas. “Isso
dá para uma cerveja. Seis rayas,
um frango assado”, explica. “Eu consigo quase 5 gramas de amarelo por
dia”, continua. O ouro do garimpo é suficiente para comprar álcool e
mulheres (que às vezes são mantidas como escravas perto do garimpo). É
suficiente para voltar na sexta à noite da selva e beber até segunda.
Nunca basta para voltar ricos para casa. Os garimpeiros pagam a um
patrão para usar espaço e máquinas. Pagam comida, gasolina e
equipamento a um preço altíssimo. Quase sempre se tornam prisioneiros
de um sonho. E podem matar ou morrer para defendê-lo. Em 1993, não
muito longe dali, em Haximu, garimpeiros brasileiros exterminaram uma
aldeia Yanomami inteira.
Preparamos o barco. A nosso lado, uma canoa com soldados da Guardia Nacional. “Eles estão aqui para expulsar os garimpeiros da área indigena?”, pergunto para um colombiano. “No, señor”,
responde. Estão aqui, explica, para cobrar a propina. Cem gramas de
ouro para cada máquina montada na montanha. “Já tem quinze máquinas, lá
em cima”, conta um índio. “Cairá, a montanha, com tantos buracos…”.
Desesperados, garimpeiros em busca de um futuro invadem o presente dos
índios. Cinco gramas de amarelo por dia, em troca de uma vida negra
como o inferno.
Los gringos
Após dias de viagem, estimo em cerca de 400 as picadas de mosquito puri-puri que
vejo em meu corpo, apesar de mosquiteiro e repelente, dos quais nunca
abri mão. Dormir já se tornou quase impossível. Chegamos à boca do rio
Casiquiare. Hoje, se chama Tama-Tama. É uma aldeia indígena ao lado de
uma “base de los gringos”, missionários evangélicos norte-americanos da New Tribes Mission.
“A obra do Senhor não será cumprida até quando existirem povos que não
conhecem sua Palavra”, me explica Brian, piloto de avião e missionário.
Assim, eles vivem anos juntos a tribos com pouco ou nenhum contato com
os brancos, para traduzir a Bíblia em todas as línguas e pregá-la. A
obra deles é polêmica. Foi criticada por antropólogos, missionários de
outros grupos e por lideranças indígenas. A evangelização feita pela Missão Novas Tribos
foi acusada de ser agressiva e violenta. Isso porque os missionários
consideram pecado os índios se pintarem de urucum (o corpo é o templo
do senhor, dizem, e não deve ser sujado), como também consideram obra
do demônio os cantos e as danças indígenas, que os índios devem
abandonar ao se converter. Interrogo Brian, e também lhe pergunto da
investigação do governo venezuelano contra eles e das ameaças que,
dizem os índios, os guerrilheiros da Farc fizeram. A resposta é
sintética e cortante: “se Deus não nos quisesse aqui”, explica, “se
nossa missão não fosse também a Dele, já estaríamos mortos, ou presos”.
Esmeralda
Antes de entrar no Casiquiare, subimos mais um pouco o rio Orinoco,
como fez Humboldt. Em duas horas estamos em Esmeralda. Nos tempos de
Humboldt era uma minúscula comunidade para onde, escreve o cientista,
os missionários eram enviados de castigo. O castigo eram os mosquitos,
que aqui se chamam, sem nenhum exagero, “a praga”: Esmeralda parece
realmente a capital mundial desses insetos. Visitamos o hospital, onde
um médico cubano sorri e nos socorre com pomada e comprimidos. Têm
problemas mais sérios que nossas picadas: a malária mata famílias
inteiras na região. E nessa temporada há também picada de cobras. Hoje,
Esmeralda é uma pista de pouso (construída acima de um gigantesco leito
de cristais de quartzo, trocados por esmeraldas por conquistadores
ingênuos), com uma cidadezinha a seu redor. Têm um grande colégio
salesiano para índios, principalmente Yanomami, Yekuana, Kurripaco,
Piaroa. Converso com eles: a maioria quer se formar para voltar para
aldeia como professor indígena.
O dono da única loja de conveniência da região mostra orgulhoso umas
fotos. Era dono também de um acampamento de pesca esportiva. “Reconhece
o cara?”, pergunta. Reconheço: nada menos que George Bush pai. Em outra
foto, vejo Jimmy Carter. Em outra ainda, Bush Junior, atual presidente
dos EUA, juntos com Cisneiros, o “homem mais rico da Venezuela”. Bush,
explica o comerciante, vem aqui freqüentemente para pescar. Enquanto
senta em seu barco, um helicóptero de guerra com armamento pesado voa
na sua cabeça para vigiar.
Mesmo sem esmeraldas, Esmeralda tem uma atmosfera remota e esplêndida.
Em seu horizonte, o Duida, monte sagrado dos Yekuana, quase
inexplorado. Humboldt não continuou subindo rumo às fontes do Orinoco,
por medo das flechas envenenadas de pequenos guerreiros de pele clara,
na época quase desconhecidos, que os outros índios chamavam de Waika.
São os Yanomami. Hoje, Esmeralda continua sendo a fronteira de seu
território na Venezuela: o último lugar aonde um branco pode chegar sem
autorização do governo.
Aldeia Yanomami no Casiquiare
O Casiquiare
Entramos, enfim, no canal Casiquiare. Quando Humboldt chegou aqui, em
21 de maio de 1800, estava tão exausto que, apesar da alegria por ter
medido as coordenadas do rio misterioso, não comentou senão com poucas
linhas em seu diário. Nós estamos entusiasmados. Somos recebidos por um
engraçado véu de noiva feito por centenas de formigas de asas brancas.
Os pássaros, após dias de chuva, estão festejando o sol equatorial. Em
meia hora observamos falcões, tucanos, garças, airões, araras,
martim-pescadores. E duas tribos de hoatzin: cômicas, barulhentas e
desajeitadas aves de aparência pré-histórica. Bizarria idrológica, o
canal Casiquiare não tem fonte nem foz. Nasce de uma bifurcação do
Orinoco que acaba caindo em outro gigante, o Rio Negro: duas entre as
maiores bacias fluviais do mundo são conectadas. Muitos, na época de
Humboldt, não acreditavam. O geógrafo francês Philippe Buache afirmou
que o Casiquiare não passava de uma lenda, “um erro geográfico
monstruoso”. Humboldt, que em seus diários dedica dezenas de páginas à
vida e costumes dos indígenas, confiava neles: “são excelentes
geógrafos”, disse. O canal, hoje como nos tempos de Humboldt, é quase
inabitado, cúmplices, a malária e os pouquíssimos espaços não inundados
da região. Paramos num pequeno acampamento de Kurripaco, que falam
também a língua geral, inventada pelos jesuítas duzentos anos antes que
Humboldt passasse por ali. Estão comendo um jacaré. Irene, corajosa
líder indígena Colombiana, me conta sua vida incrível. Enquanto tira,
com um espinho de limoeiro, os dois bichos-de-pé que descobri ter pêgo,
me explica quão absurdo e violento pode parecer o mundo, e quão difícil
é sobreviver, para um índio, no fogo cruzado das opostas imposições de
paramilitares, guerrilheiros, exércitos, leis e fronteiras nacionais.
No dia seguinte visitamos uma aldeia-fantasma Yanomami, abandonada por
uma epidemia de malária, e paramos em outra comunidade que vive em
condições difíceis. Após algumas horas, o xamã nos convida para
assistir a um grande ritual. Na casa, há xamãs de várias aldeias e
muitos homens com suas armas, tomando o pó alucinógeno chamado yãkõana.
Ficamos um dia com eles. A experiência é tão extraordinária que não
conseguiríamos descrevê-la no espaço desta reportagem.
Rio Negro
Dormimos numa comunidade ao pé da pedra Culimacari. Foi ali que
Humboldt mediu as coordenadas do Casiquiare. Subo a pedra com grande
dificuldade e com a maior inveja do meu guia, que anda rápido enquanto
eu deslizo na pedra úmida, arranho minhas pernas e acabo coberto de
lama e folhas. Mas vale a pena. A floresta inundada é um triunfo de
fungos, borboletas, morcegos, beija-flores, sapos. E a vista da selva,
lá em cima, dá o calafrio do infinito. No outro dia, entramos nas águas
do Rio Negro e chegamos a San Carlos del Cocuy, última etapa do trajeto
amazônico de Humboldt. O alemão não pôde continuar. Carregava caixas
cheias de mapas, sextantes, bússolas, lentes e microscópios. Os
portugueses imaginaram que fosse um espião dos espanhóis medindo
caminhos e rotas naquela área estratégica, e prepararam um mandato de
prisão para ele. Diferente dele, nós pudemos passar. Revistados pela
polícia federal, visitamos Cucuy, no lado brasileiro. E San Felipe, em
território Colombiano. Mostro meu passaporte ao oficial venezuelano
antes de pegar a canoa para o outro lado do rio. Posso ir, “mas sem
câmara nem caderno”, aconselha o militar. “Lá é área de guerrilha”,
explica. Turistas, desde que não americanos, são aceitos pelas Farc.
Mas nada de fazer perguntas ou tirar fotos. Em San Felipe não tem posto
de fronteira nem controle de identidade. Não tem prefeito, polícia ou
exército. Mas o hospital, a igreja, a escola e as lojas funcionam,
administradas pelos guerrilheiros, que cobram impostos da população.
Um dia depois, um avião minúsculo nós leva para longe da selva. A vista
do monte Autana, sagrado aos Piaroa, mergulhado nas nuvens, é de tirar
o folego. De volta a Ayacucho, lembro fotogramas desta viagem única. As
gigantescas árvores de Ceiba, as águias e os falcões, as crianças
indígenas brincando com nossa canoa e assobiando para chamar os botos
no rio. Lembro nosso suor, nossa pele suja de repelente, suor e poeira.
Lembro os garimpeiros e seus revólveres, os caçadores de almas e as
orquídeas, o orgulho corajoso dos yanomami, a vida difícil dos Yekuana,
Piaroa, Kurripaco. Lembro selvas possantes e remotas, lembro a
guerrilha e os militares, a massa amarga do tabaco e os cantos
indígenas. E um ditado que me contaram aqui: “Deus te aperta, mas não
te enforca”. Parece sob medida para esta terra forte, remota e ferida.
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