Mais
do que acumular livros, as bibliotecas revelam formas de saber, criticar,
pensar e imaginar. Foi pensando assim que a Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) comprou em 1983, logo após a sua morte, a biblioteca de Sérgio
Buarque de Holanda um dos principais acervos históricos e culturais do país, formado
por 8.513 livros, 227 títulos de periódicos, 600 obras raras dos séculos XVI ao
XX, e 74 rolos de microfilmes, que tratam das relações diplomáticas entre
Brasil e Estados Unidos. Sérgio
Buarque de Holanda, historiador, crítico literário e professor de história da
civilização brasileira na USP, foi idealizador do Instituto de Estudos
Brasileiros (IEB/USP) e participou, em 1980,
da cerimônia de fundação do Partido dos Trabalhadores (PT). Naquele mesmo
ano, recebeu tanto o Prêmio Juca Pato, da União Brasileira de Escritores, como o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro.
Foi correspondente
de O Jornal na Polônia e na Alemanha
(1929-1930); professor em universidades europeias e americanas (décadas de 1950
e 1960); e autor de vários livros: Monções
(1945); Caminhos e fronteiras
(1957); Visão do paraíso (1958),
entre outros, além do clássico, Raízes do
Brasil (1936).
A
Coleção Sérgio Buarque de Holanda ocupa uma sala especial no 3º piso da
Biblioteca Central Cesar Lattes, da Unicamp, onde está o mobiliário preservado
que pertenceu ao historiador. Composto de
estantes, escrivaninha, escada, cadeira de repouso, máquina de escrever, uma
leitora de microfilmes, além de medalhas, troféus e prêmios, numa
reconstituição do seu gabinete pessoal de trabalho onde passou boa parte de sua
vida.
O
acervo abrange a área de ciências humanas, com destaque para os livros que
tratam da história do Brasil – mais especificamente, da história de São Paulo –
e para aqueles em língua alemã, que representam cerca de 20% do acervo. Por ter
participado de inúmeras missões culturais do Brasil em vários países, Sérgio
Buarque foi adquirindo, ao longo do tempo, livros raros e documentos preciosos
para a historiografia brasileira.
Autêntico
tesouro literário, nesse acervo é possível conferir obras com dedicatórias,
algumas bastante interessantes, como Os
parceiros do rio Bonito, de Antonio
Cândido, de 1971; A beata Maria do Egito,
de Rachel de Queiroz, de 1958, e as obras anotadas pelo historiador, o que as
tornam únicas. Sérgio Buarque de Holanda, cuidadosamente, fazia anotações a
lápis nas páginas dessas publicações, o que demonstrava profunda capacidade de
trabalho e o seu valor como historiador.
Nesse
acervo, além de todas as obras publicadas por ele, com suas várias edições
traduzidas para dezenas de idiomas, estão arquivadas teses e artigos publicados
em jornais e revistas. Encontram-se, ainda, as obras traduzidas e prefaciadas
pelo historiador, como a tradução feita para a editora Martins da obra de
Thomas Davatz, Memórias de um colono no
Brasil, que a tornou conhecida como fonte importante para a historiografia paulista,
e a introdução às Obras econômicas de
Azeredo Coutinho, publicadas no século XVIII. Todo o acervo documental com
fotos, correspondências, blocos de anotações e cadernos de pesquisa estão sob a
guarda do Sistema de Arquivos (Siarq) da Unicamp.
Apesar
de ostentar algumas centenas de livros raros do século XVI ao século XX, não se
trata de uma biblioteca de colecionador e tampouco de uma brasiliana, pois ao
lado de livros sobre temas brasileiros encontram-se coleções de literatura
italiana, francesa, russa, além de variados tratados de filosofia alemã e de
teoria da história.
Dentre
as obras raras pertencentes ao acervo de Sérgio Buarque, podemos citar uma considerada
a mais valiosa. Trata-se de uma
coleção de narrativas de viagens do século XVI, compilada por Giovanni Battista
Ramusio, formada por três volumes, Navigationi et Viaggi, publicada em Veneza entre 1554 e 1559. Ramusio preparou um quarto volume, mas o
manuscrito foi perdido no incêndio da Imprensa Giunta, em Veneza. Essa obra
abre uma era de história literária de viagens e navegações. O autor acrescenta
narrativas originais, denuncia anacronismos e erros históricos com sagacidade
crítica. Devemos a
Ramusio a preservação de relatos de viagens da maior importância para a
história da América; cada volume de sua obra aparece em várias edições, algumas
contendo mais narrativas e com pequenas diferenças nos mapas. O primeiro volume contém o
relato de viagem feito por Cabral em 1500, conhecida pelos historiadores
brasileiros como a relação do piloto anônimo; e
o terceiro volume, inteiramente dedicado à América, contém o mapa do Brasil. A
Coleção Sérgio Buarque de Holanda possui os tomos 1 e 3 da 2ª ed. (1554 e 1565)
e o tomo 2 da 1ª. ed. (1559).
Entre os diversos títulos que podem ser
encontrados no acervo, podemos citar a edição pirata de 1730, Memoires de M. du Guay-Trouin. Corsário francês e tenente coronel
general das Forças Navais, ele descreve, através dessa obra, suas campanhas.
Essa edição é considerada “pirata”, pois só a que foi publicada após 1740 teve
sua autoria reconhecida. O Brasil, por duas vezes, sofreu ataques das esquadras
inimigas francesas ao Rio de Janeiro (Duclerc, em 1710, e du Guay-Trouin, em 1711).
Na segunda vez, conquistaram e saquearam a cidade e, para abandoná-la, o
corsário francês exigiu uma boa soma em dinheiro, 100 caixas de açúcar e 200
bois.
Além
das obras citadas acima, destacamos ainda: a edição das Ordenações do reyno de Portugal,
de 1649, conhecida como Vicentina, por ter sido impressa no mosteiro de São
Vicente de Fora, obra valorizada pela sua exatidão e beleza de impressão; a nova edição da importante obra de
Andrea Alciati para o conhecimento da história da arte, Emblemata
cum commentariis, impressa em Patavii (Itália) e publicada em 1661,
com mais de mil páginas de texto; e a coleção de livros inéditos de história portuguesa
organizada por Jose Francisco Correa da Serra e publicada pela Academia Real
das Sciencias de Lisboa.
Destaque
também para a obra de Emanuele Tesauro,
Il cannocchiale
aristotelico,
que interpretou a poética de Aristóteles nesse livro
publicado em 1675 com vinheta na página de rosto, capitais ornamentadas e
encadernação em velino; e para o exemplar da Opere di Niccolò Machiavelli cittadino e
segretario fiorentin, impressa em Genova, publicada em 1798 em cinco
volumes e ilustrado com um retrato do autor.
Vale a pena citar ainda a crônica escrita pelo historiador
italiano Giovanni Villani, La prima seconda parte delle historie
vniversali de svoi tempi di Giouan Villani cittadino fiorentino,
impressa em Veneza, publicada em 1559 em dois volumes; trata-se de uma história
universal da Florença dos tempos antigos. A obra é uma fonte importante para a
história da Itália medieval.
Para
concluir, relacionamos alguns periódicos raros como o jornal literário O Patriota, primeira revista do Rio de
Janeiro (1813-1814) e segunda do Brasil, composta na primeira tipografia
oficial brasileira, a Impressão Régia, e cujo redator principal foi Manuel
Ferreira de Araújo Guimarães; e almanaques e revistas, contendo trabalhos
inéditos relativos à história e à geografia, como os que foram publicados, por
exemplo, na Revista do Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo.
A
á rea de Coleções Especiais da Biblioteca Central da Unicamp tem a preocupação
de preservar e de não descaracterizar a Coleção Sérgio Buarque de Holanda;
portanto, as únicas incorporações de obras ao acervo são reedições, traduções, livros
e recortes de jornais de ou sobre o historiador.
Todo
o acervo bibliográfico foi higienizado e processado tecnicamente conforme
padrões biblioteconômicos adotados pelo Sistema de Bibliotecas da Unicamp e
está disponível para consulta local a toda a comunidade e acessível para
pesquisa on-line na base de dados bibliográfica
Acervus, da Unicamp.
O
desenvolvimento da área de Coleções Especiais da Biblioteca Central Cesar
Lattes tem sido feito através da aquisição de bibliotecas particulares de
personalidades como Sérgio Buarque de Holanda, que se dedicaram a estudar a
história e a cultura brasileira e contribuíram para o desenvolvimento e mudanças
do panorama cultural de nosso país. O conjunto desses acervos torna a
universidade um centro de referência para a pesquisa em diversas áreas do
conhecimento.
Tereza Cristina de
Carvalho e Marta Regina do Val são bibliotecárias da Diretoria de Coleções
Especiais e Obras Raras da Biblioteca Central Cesar Lattes da Unicamp.
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