10/12/2013
Há histórias de vida tão ricas e nobres que precisam apenas ser contadas, do começo ao fim, quase literalmente, sem grandes artifícios narrativos, apenas com discretos toques de lirismo a destacar sua beleza. Foi exatamente isso que o diretor – e também co-roteirista, Luiz Villaça (Cristina quer casar) percebeu ao ler com seu filho Nino, no Natal de 2001, o livro O contador de histórias (Editora Leitura, fora de catálogo), de Roberto Carlos Ramos.
No livro, que Nino ganhara da avó no Natal de 2001, Villaça foi surpreendido com as belas histórias infantis, mas sobretudo com o último capítulo – em que o autor contava a sua própria história. Naquele mesmo instante, surgiu a ideia de fazer uma cinebiografia da trajetória de Ramos. Já aí encontra-se um dos primeiros acasos – ou providência – desta produção peculiar – a leitura do livro acendeu a ideia do longa-metragem O contador de histórias.
Nos anos 1970, caçula de dez irmãos de uma família paupérrima de Belo Horizonte, Roberto Carlos foi entregue com seis anos para a Febem - Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (hoje Fundação Casa) pela mãe, que acreditou nas promessas de educação, amparo e cuidado que as propagandas públicas da instituição anunciavam, e uma assistente social, ao visitar a família na casinha de teto de zinco da favela, consolidou.
Lá, no que deveria ser um colégio interno, sentindo-se abandonado, o garotinho vivo, conversador e cheio de imaginação logo fez o que lhe pareceu necessário para sobreviver – aprendeu a mentir, a falar palavrão, a sofrer maus tratos calado, a fugir para roubar e viver na rua, a consumir drogas, a marginalidade, a esconder os sentimentos e desconfiar de tudo e de todos. As visitas mensais da mãe logo não aconteciam mais, e ele estava totalmente só.
Aos 13 anos, quando havia fugido mais de 132 vezes da instituição, Roberto foi considerado “irrecuperável” pelos educadores e responsáveis da unidade da Febem à qual pertencia. Mas a pedagoga francesa Marguerite Duras (a atriz portuguesa Maria de Medeiros), ao dar de encontro aos olhos tristes e duros do menino, recusa-se a aceitar o veredicto da instituição e leva o menino para casa. Ela acolheu Roberto, apesar dos riscos – deu-lhe casa, comida, afeto e histórias, lendo as aventuras do Capitão Nemo, personagem criado por Júlio Verne.
A estadia de uma semana durou um ano e, no final dele, veio a adoção. Os dois foram para a França, quando Roberto já estava alfabetizado em francês e português, de onde ele volta para Minas Gerais, aos 19 anos, para estudar pedagogia, recuperar o vínculo familiar, tornar-se escritor e um dos dez melhores contadores de histórias do mundo. O trabalho o levou de volta aos corredores da Febem, agora como professor. Ramos adotou 13 garotos, em situação de risco, abrigou outros 12 e conta histórias de tolerância, generosidade e amor pelo Brasil e mundo afora.
É tudo verdade, e o diretor Villaça deixou o fogo da realidade iluminar o filme – uma das suas principais qualidades. Para interpretar as três fases de Ramos, ele fez a seleção de elenco nas comunidades pobres, ONGs e grupos de teatro da periferia de Belo Horizonte, bem ali onde tudo aconteceu. Foi assim que Marco Antônio Ribeiro interpretou Roberto aos seis anos; Paulo Henrique Mendes, aos 13; e Cleiton da Silva, aos 20 – todos eles conheciam muito bem o ambiente de seus personagens, interpretados à flor da pele. O trio dividiu o Prêmio de Melhor Ator no Festival de Cinema de Paulínia, onde parte do filme foi rodado.
Do realismo da produção faz parte também a competente reconstituição de época, dos cenários aos figurinos. A narração do próprio Roberto Carlos Ramos dá o toque final. Mineiro nada típico, que fala com as mãos, encontra entonações de voz impossíveis e navega entre o humor e o sarcasmo, a afetuosidade e o ressentimento em tonalidades múltiplas, o narrador vai compondo no filme, ao lado da história, sutilmente, as denúncias de sua biografia: a desigualdade social das grandes cidades, a falácia dos serviços dedicados à educação e à assistência social, a conivência das autoridades com a criminalidade infanto-juvenil, o abuso dos mais velhos, o abandono familiar e público à infância. Mas aponta, também, a saída para essa situação: o afeto, a alfabetização e a imaginação.
O toque de gênio da direção de Villaça é justamente a encenação que ele criou para dar vida a essas saídas, para representar a capacidade de imaginar do contador de histórias, mesmo quando ainda criança: o abandono da família transforma-se num colorido e barulhento roubo a banco no qual o pequeno foi esquecido; a chegada à Febem torna-se a visita a um maravilhoso circo; o temido ladrão do bairro veste manto e coroa de soberano; a rua da favela é povoada de personagens fellinianos, misteriosos.
É esse poder, da imaginação, que o Roberto Carlos de 13 anos reencontra nas histórias do Capitão Nemo que ouvia de Marguerite e resgata para a sua vida. É esse poder que ele usa agora para transformar a vida de outras pessoas. No site do filme, que ainda está no ar, inclusive, há o Projeto Escola – orientação para professores do ensino médio para trabalhar o filme em sala de aula, estimular a leitura e a história oral. Ramos se autodenomina “o embaixador do país das maravilhas” com suas histórias inventadas de pivetes, malandragens e poesia. Do país, não sei, mas das maravilhas, certamente sim.
O contador de histórias
Ano: 2009
Direção: Luiz Villaça
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