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Reportagem
O que nos mostram as avaliações em ciências: o triste cenário brasileiro
Por Cassiana Purcino Perez
10/02/2015
Você é capaz de calcular a quantidade de combustível necessário para percorrer, de carro, uma distância conhecida, sabendo o consumo médio por quilômetro rodado do veículo? De acordo com os resultados da pesquisa do Indicador de Letramento Científico (ILC) da população brasileira, divulgados em julho do último ano, tarefas cotidianas como essa, que envolvem a capacidade de usar conceitos e procedimentos científicos básicos, são de difícil realização para mais da metade (55%) dos entrevistados.

O ILC, estudo realizado pela Abramundo – empresa que desenvolve materiais de ciências para o ensino fundamental – em parceria com o Instituto Paulo Montenegro e a organização não-governamental Ação Educativa, contou com a participação de 2002 pessoas entre 15 e 40 anos de idade, com ao menos quatro anos de escolaridade e residentes em uma das nove regiões metropolitanas brasileiras. Embora inédito, por sua abrangência e seu caráter não-escolar, os resultados apresentados apontam para a mesma direção de avaliações semelhantes: somos um povo de analfabetos funcionais em ciências!

Na última edição do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (em inglês, Pisa – Programme for International Students Assessment), realizada em 2012 com estudantes na faixa de 15 anos, o Brasil ocupou a 59º posição em uma lista de 65 países avaliados em ciências, e os resultados indicam que 61% dos estudantes brasileiros têm fraco aproveitamento na área, o que significa que, na melhor das hipóteses, eles podem apresentar explicações científicas óbvias e tirar conclusões somente de evidências explicitamente apresentadas. Por outro lado, apenas míseros 0,3% dos estudantes brasileiros estão nos dois níveis mais elevados de conhecimento, entre os seis níveis possíveis, e são capazes de aplicar conhecimentos científicos em uma grande variedade de situações complexas de vida.

De acordo com Russel Teresinha Dutra da Rosa, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), testes como esses requerem que os participantes mobilizem diferentes conhecimentos e formas de expressá-los e, por isso, são ferramentas relevantes para o planejamento de ações com vistas à formação de pessoas capazes de tomar decisões cientificamente embasadas. “Considero que os resultados desses exames fornecem indicadores dos níveis de letramento científico da população”, diz a pesquisadora.

Vale chamar a atenção aqui para o fato de que um indivíduo considerado cientificamente letrado é aquele que não apenas sabe ler o vocabulário científico, mas compreende os processos científicos relativos ao seu cotidiano, os problemas sociais relacionados à ciência e à tecnologia e seu impacto sobre a sociedade, de forma a ser capaz de participar de processos de decisão sobre questões envolvendo a ciência.

Causas das dificuldades
O sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz já apontava em seu livro O ensino das ciências no Brasil e o Pisa, de 2009, que os fatores que explicam o baixo desempenho do Brasil em ciências são de diversas ordens, indo desde problemas individuais e familiares até questões sociais, culturais e econômicas. A forma como a disciplina é inserida no contexto escolar pode nos ajudar a compreender algumas de nossas dificuldades.

“O ensino de ciências nas escolas ainda é pautado pelos livros didáticos, os quais oferecem informações fragmentadas, organizando-as como definições de conceitos. Os textos principais, muitas vezes, assemelham-se aos verbetes de um dicionário. São descontextualizados, escritos com uma linguagem impessoal e distante da forma cotidiana de se comunicar, não chegando a despertar o interesse e a curiosidade dos estudantes”, descreve Rosa. Nesse cenário eminentemente voltado para a transmissão de conteúdo, deixam-se de lado os demais aspectos envolvidos no conceito de letramento científico e formam-se indivíduos incapazes de transpor o conhecimento escolar para a vida prática. O ILC destacou esse problema ao evidenciar que, ainda que o nível de letramento científico esteja positivamente relacionado com o nível de escolaridade, uma parcela significativa de pessoas com escolaridade mais alta apresenta letramento científico rudimentar (37%) ou ausente (4%). O letramento científico rudimentar é definido, na pesquisa, como capacidade de resolução de problemas que envolvam a interpretação e a comparação de informações e conhecimentos científicos básicos, apresentados em textos diversos, envolvendo temáticas presentes no cotidiano.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), documentos de referência para os ensinos fundamental e médio, lançados em 1998, já apontavam claramente o problema da abordagem conteudista em seu capítulo destinado às ciências naturais, defendendo que “a compreensão do que é ciência por meio desta perspectiva enciclopédica, livresca e fragmentada não reflete sua natureza dinâmica, articulada, histórica e não neutra”. Como solução, o documento sugere o trabalho na sala de aula a partir de temas que contextualizem os conteúdos e permitam uma abordagem inter-relacionada das disciplinas científicas (biologia, química e física). Apoiadas por pesquisas acadêmicas na área de ensino de ciências, soluções como essa, no entanto, ainda têm apresentado dificuldades para chegar às escolas e aos livros didáticos. “O contato com os conteúdos e as estratégias de ensino de ciências durante a formação inicial (dos licenciandos) não é satisfatória e também a formação continuada (dos professores) nas escolas ainda recebe pouco espaço e tempo. Grande parte das pesquisas sobre os livros didáticos, por exemplo, não foi considerada na sua produção (os livros didáticos não sofreram alterações que as pesquisas apontavam ser necessárias). Da mesma forma, as condições de trabalho nas escolas não melhoraram, apesar de as pesquisas apontarem a importância da formação em serviço”, diz Rosa.

O mapa para uma transformação no ensino de ciências no país parece existir, mas o caminho deve passar por esforços políticos para alterar a estrutura viciada de formação insuficiente dos docentes, com baixa remuneração, que obriga a realização de cargas horárias pesadas, com aulas ministradas para classes superlotadas, em diferentes instituições escolares. “Considero que, para uma melhoria no ensino, seria necessário que cada professor pudesse ter um vínculo institucional, atuando em uma única escola com uma carga-horária remunerada para o planejamento e a avaliação, havendo um espaço coletivo de produção da equipe escolar”, indica Rosa. Mas enquanto essa mudança não acontece, o país arca com as consequências de seu atraso em ciências.

A importância da ciência em uma sociedade moderna
Segundo o economista Cláudio de Moura Castro, em seu livro O futuro de um país sem ciência, o domínio dos princípios científicos nos permite tomar decisões mais inteligentes, evitar riscos desnecessários e aumentar nossa produtividade. Um exemplo de experiência cotidiana que pode ser usado como argumento é a situação hipotética que abre este texto: quem não compreende os conceitos e cálculos envolvidos naquela situação, por exemplo, pode acabar gastando mais do que o necessário ou ficar parado, sem combustível para chegar ao seu destino.

Mas é na questão da produtividade que uma nação paga o maior preço por negligenciar a importância da ciência. Castro defende que quando os processos produtivos se tornam mais complexos e incluem maior dose de tecnologia, a abstração científica deve suprir o que os sentidos já não percebem para que as decisões técnicas sejam eficientes. Segundo o autor, no Brasil, ainda dependemos de um número muito limitado de pessoas minimamente competentes em ciências, atrasando o nosso desenvolvimento. Novamente, o ILC comprova isso, ao evidenciar que apenas 12% dos profissionais que ocupam cargos de gestão pública ou privada são considerados cientificamente proficientes (o nível mais alto atribuído na pesquisa).

Russel Rosa fecha esse cenário sombrio com uma constatação que tem se mostrado cada vez mais verdadeira: “Uma população ignorante no que se refere aos conhecimentos científicos é dependente e consumidora dos conhecimentos científico-tecnológicos produzidos em outros países”.

Novas avaliações
Ausentes dos programas do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) desde 1999, questões de ciências humanas e ciências naturais foram inseridas, em caráter experimental, na Avaliação Nacional de Rendimento Escolar (Anresc) ou Prova Brasil, como é mais conhecida, e na Avaliação Nacional da Educação Básica (Aneb), realizadas em 2013. Nessa edição das provas, estudantes do 9º ano do ensino fundamental e do 3º ano do ensino médio tiveram seus conhecimentos em ciências avaliados. Ficaram de fora da avaliação, porém, os alunos do 5º ano do ensino fundamental, que também fazem as provas de português e matemática do Anresc e do Aneb.

De acordo com documento oficial sobre a inclusão de ciências no Saeb, o objetivo da prova experimental foi o de servir como matriz piloto para ser aperfeiçoada e consolidada a partir da próxima edição das provas, que deve ser aplicada em 2015. Como os resultados da prova experimental não foram divulgados, nos resta torcer para que essa iniciativa tenha sido um primeiro passo em direção à mudança necessária no ensino de ciências no país.