10/06/2013
Que características do bioma Caatinga fazem com que, a despeito da grande pressão humana que sofre – visto ser a região semiárida mais habitada do planeta –, ainda possua cerca de 53% de sua área coberta por remanescentes florestais?
Newton Barcellos – O motivo para que exista essa quantidade de remanescentes é que a vegetação da Caatinga tem uma grande facilidade de se adaptar ao clima local e não morrer durante uma seca, como essa última que nós vivemos; e apesar da pressão humana – o antropismo –, ela não se deteriora com facilidade. Apesar de séculos e séculos de exploração, a caatinga apresenta uma grande facilidade de se regenerar. Ela rebrota de três maneiras. Se você corta uma árvore, como um pereiro, uma caatingueira, uma jurema preta – que são as espécies mais comuns por aqui –, poucas semanas depois, o toco dela que ficou começa a brotar, numa quantidade de brotos impressionante. Se não brotar no toco por uma razão qualquer, brota através do sistema radicular da planta estabelecida ali há muitos anos. A uma distância de um metro a um metro e meio da planta que foi cortada começam a brotar no solo mudas que vêm da raiz dessa planta. Ou ainda, há a terceira forma de regeneração na Caatinga que se dá por meio de sementes. Há sementes ali no solo daquela planta que foi cortada recentemente ou, então, roedores, como preás, tatus, pássaros que passam por ali, se alimentam dos frutos e soltam essas sementes, fazendo com que a caatinga brote de novo. Essas são as formas de regeneração natural, apesar de séculos e séculos sendo explorada, não só para energia, mas também para abrir áreas, para converter o solo para plantar capim para o gado, ou então para a agricultura – feijão, milho, algodão, entre outras culturas.
O estado de conservação da Caatinga estaria também relacionado à forma de utilização do solo praticada na área abrangida pelo bioma?
Barcellos – Exato. Outra razão é que na Caatinga, nesse miolo do semiárido que compreende o Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e o centro da Bahia, onde chove cerca de 400 milímetros por ano, o uso do solo se dá pela agricultura familiar. O agricultor corta ou desmata cerca de 2 hectares por ano para plantar milho e feijão, e essas culturas vão bem porque havia fertilidade no solo devido à existência anterior da floresta ali. Aí ele vai plantar durante três anos nessa mesma área, até que o solo se esgote. Então, ele vai abandonar aqueles dois hectares durante três, quatro ou cinco anos e vai abrir outros dois hectares, em um sistema de rodízio. Enquanto ele está plantando nos novos dois hectares o milho e feijão, aquela área anterior está se renovando. Nesse “miolo” de semiárido, é assim que a agricultura se comporta, a não ser em casos isolados, como em Petrolina, nas margens do rio São Francisco, onde há irrigação e outros casos pontuais. No restante do semiárido onde há a caatinga, a agricultura é mais para subsistência. Então, é muito devido a esse sistema clássico, histórico, familiar de rodízio que a caatinga está aí. Porque o pousio deixa ela descansar, pois a natureza recompõe a fertilidade dela, e pode-se plantar o milho novamente ali depois de alguns anos.
Qual o estado conservação desses remanescentes?
Barcellos – Nesse grande cenário de remanescentes, existem situações em que a caatinga ainda está iniciando sua regeneração e tem áreas em que ela existe há mais tempo. Em encostas, no pé da serra – onde acumula mais água e mais umidade – em topos de morros, é possível ver caatingas muito bem conservadas. Já nos solos mais rasos, a caatinga é muito rala. São áreas que podem ter sido usadas para o cultivo do algodão durante décadas e décadas. Então, a qualidade desses remanescentes é muito variada. É uma “colcha de retalhos” enorme.
De acordo com dados apresentados no livro Uso sustentável e conservação dos recursos florestais da Caatinga, de 2010, no período entre 1996 e 2006 houve um aumento na cobertura florestal de 7% na região Nordeste. A que se deve esse incremento da vegetação nativa nesse período?
Barcellos – O que está acontecendo é resultado de circustâncias econômicas do país aliadas a fatores climáticos da região. Quando falo de circunstâncias econômicas, eu já estou incluindo aí o Bolsa Família, porque isso foi uma revolução no semiárido. O pessoal que tinha dificuldade de produzir alguma coisa ou gerar renda, com o Bolsa Família, já tem uma renda garantida, o que é bom por um lado. Em situação de crise, é muito bom que exista o Bolsa Família. Porém, por outro lado, está ocasionando dificuldade de mão de obra no semiárido para o trabalhador do campo. Se o sujeito pode tomar a cervejinha dele com a esposa, com a mãe, não quer ir para a enxada num sol forte do semiárido; ele prefere ter uma moto, virar motoboy no meio urbano, nas pequenas cidades. Portanto, está havendo uma dificuldade de encontrar mão de obra no campo. E o que aconteceu por causa disso é que as propriedades maiores, que alugavam mão de obra para proprietários com terras entre 600 e 1000 hectares, e ainda são encontradas com frequência no semiárido, não estão conseguindo ser viáveis economicamente como eram no passado, porque não tem gente ali, o pessoal está mais nas grandes cidades, nas capitais – Mossoró, Campina Grande etc. Os grandes e médios proprietários ofertaram a terra para o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), deixaram a terra parada; e quando está parada, ninguém corta e aí a vegetação se regenera. É por isso que há esse incremento. De forma geral, é por isso. Enquanto essas terras não forem efetivamente desapropriadas, a cobertura florestal está voltando, é esse o fenômeno. Posteriormente, é possível que a situação comece a se reverter: onde tinha floresta e as terras estavam paradas, com a chegada dos assentamentos, de gente nova, aí pode ser que haja um decréscimo. E é por isso que queremos entrar numa política pública do manejo florestal comunitário.
Qual a importância econômica do manejo dos recursos florestais para as comunidades locais? Quais atividades apresentam maior retorno para os pequenos produtores rurais?
Barcellos – Com essa política de assentamento no semiárido, onde antes havia o proprietário, mais um morador e um vaqueiro, hoje há oitenta famílias, de forma que é possível imaginar a pressão sobre os recursos naturais que existem ali. É por isso que o nosso foco de atuação, hoje, são os assentamentos. Porque primeiramente eles são públicos, pois são do Incra e, enquanto o assentamento não for emancipado, ele vai ser do governo federal. No caso do crédito fundiário, aquela terra comprada já é particular ou de uma associação. Os assentamentos têm um apelo social muito grande. Aí entra o Serviço Florestal Brasileiro ajudando a cuidar pelo menos de um recurso natural chamado floresta, a caatinga que está lá ainda. Porque, se deixar sem assistência técnica, o que se vê comumente é que os assentados acabam detonando a base dos recursos naturais. Não por serem maldosos, claro. Eles precisam comer, acabaram de chegar. Vão abrir a terra para plantar e enquanto o milho não chega na maturação para poder comer, o assentado vai caçar, seja para comer ou para vender, e também vai cortar lenha e carvão para vender, é claro, pois existe a demanda. Legal ou ilegalmente, alguém vai comprar carvão. O nosso público prioritário, hoje, são os assentados do Incra ou do crédito fundiário, que são o grande público que precisa de assistência técnica nesse momento. O nosso público é a agricultura familiar.
Quais são os principais fatores a ameaçar a conservação biológica nesse bioma?
Barcellos – Os dois maiores fatores que eu enumeraria são: o desmatamento para energia e o sobrepastoreio. Está no sangue do sertanejo ter gado, que pode ser bovino, caprino ou ovino. Aquele sertanejo que não tem “criação”, como eles chamam, não é considerado homem, não é considerado sertanejo. Ele tem que ter uma quantidade de cabeça de gado, mesmo nessas condições do semiárido. Tem-se visto na mídia a quantidade de animais que morreram devido à forte seca que nós tivemos agora e, mesmo sabendo desse problema, os agricultores fizeram empréstimo no Banco do Nordeste, na agência de financiamento, e compraram gado acima da capacidade de suporte da Caatinga. Põem lá numa unidade de área uma quantidade que extrapola o que caberia realmente – e o Banco do Nordeste tem permitido isso, o que me preocupa – e degrada o solo, principalmente o caprino, que come as brotações dos tocos das árvores cortadas, impedindo a regeneração das plantas. O desmatamento para energia e o sobrepastoreio são as duas maiores ameaças à diversidade, não somente florística, mas também faunística, porque sem abrigo para os animais não há fauna. Por isso, se há muito desmatamento ou impedimento à regeneração da Caatinga, compromete-se a diversidade faunística também. Embora se utilize fogo para limpar a terra, matar o toco das plantas, não acontecem aqui no semiárido, apesar da secura, ventos muito fortes e insolação, o que se vê no Cerrado, aquelas áreas enormes com fogo acabando com Unidades de Conservação. Aqui o pessoal usa fogo de forma não muito significativa e bem controlada. Em relação ao desmatamento para energia, nós estamos falando de algo em torno de 30 milhões de metros cúbicos de lenha consumidos anualmente no Nordeste. E não estou falando que sejam consumidos só na Caatinga, são consumidos no Nordeste todo, principalmente nas capitais. No nosso trabalho, nós estamos priorizando os assentamentos para que eles possam participar desse mercado grande de maneira legalizada e para que isso garanta, então, a permanência do agricultor no assentamento, porque se não tiver isso, eles vão acabar detonando a base de recursos naturais naquela área ou assentamento e vão alugar sua mão de obra para algum agricultor ou vão para a cidade ser flanelinha. Com essa perspectiva, que nós estamos dando a ele, de uma renda extra durante a época seca do ano, com o manejo florestal, isso está mudando muito.
Quais os principais entraves à efetivação de um regime de manejo sustentável dos recursos florestais da Caatinga?
Barcellos – São basicamente dois. A falta de fiscalização mais presente, pois os agricultores têm toda uma burocracia para elaborar o plano de manejo com assistência técnica, têm que esperar autorização para o corte manejado e estão vendo o vizinho ali vendendo lenha direto, porque não tem fiscalização. O segundo aspecto é exatamente essa burocracia do governo estadual que autoriza o corte através do manejo florestal, que ainda é irritante. Não é apenas a questão de estar longe, é o fato do processo demorar, na capital, em análises durante meses. Aí o agricultor acaba perdendo o mercado. A fiscalização ineficiente ou deficiente e um bom grau de burocracia dos governos estaduais são os dois principais fatores de entraves a uma maior difusão e aceitação do manejo florestal. Eu acrescentaria também um terceiro fator que é a falta de informação, porque dentro dela existe o preconceito. Parece que existe aqui na região o sentimento de que quem consome lenha é atrasado, que isso é coisa de pobre. Ou então que quem vende a lenha é atrasado, é pobre, quando na Europa as termoelétricas estão usando biomassa, cavaco de madeira para queimar e transformar em energia elétrica. A Europa está desesperada atrás de biomassa, florestal principalmente, por conta da redução do uso de energia nuclear. E eles estão de olho no Brasil. Enquanto aqui no Brasil o uso dessa energia é visto como coisa de atrasados, de pobres e como uma atividade ilegal. O terceiro entrave é a informação que não é dada ou que é deturpada. No Rio Grande do Norte, 25% da energia consumida é proveniente da lenha. Sendo uma lenha proveniente de manejo, as emissões de carbono podem ser equilibradas pelo seu sequestro na medida em que a caatinga cresce novamente, como acontece em plantios de eucalipto.
Considerando-se a situação de vulnerabilidade socioeconômica à qual grande parte da população de muitas regiões do bioma está exposta, qual a importância dos recursos florestais da Caatinga com relação à segurança alimentar?
Barcellos – Um outro uso também importantíssimo da caatinga, além da energia, é a forragem animal, para os bois, caprinos e ovinos. Ao se manter a caatinga renovada através do manejo florestal, se matém também alimento para o gado. Diferentemente do Sul e Sudeste do Brasil, aqui o gado está, a maior parte, dentro da Caatinga, porque o pessoal tem dificuldade de desmatar toda a Caatinga e plantar capim. Aqui, parte pode ser o capim para gado leiteiro, aquele mais de luxo, mas o resto do gado está solto na Caatinga sobrevivendo do que a Caatinga fornece. Se eu estou mantendo a Caatinga através de manejo florestal, eu estou dando alimento para o gado e esse gado vai dar leite, vai dar couro e carne. Por outro lado, de maneira mais indireta, se eu tenho a manutenção de cobertura florestal através de um manejo, estou conservando o solo para a agricultura e estou conservando a cobertura florestal para não haver erosão e assoreamento nos rios. Portanto, a Caatinga presta serviços também. E ainda, se eu tenho a Caatinga, eu posso vender lenha e comprar açúcar, sal. Posso comprar o que eu não tenho, o que eu não posso produzir na minha propriedade.
Existe, em sua opinião, alguma contradição entre os objetivos de conservação do bioma e seu uso sustentável?
Barcellos – Não, muito pelo contrário. O plano de manejo funciona assim: ele analisa a propriedade como um todo e então ele pega aquela parte da propriedade que vai ser manejada e divide em quinze talhões, ou pedaços, e a cada ano eu corto um desses pedaços. Se eu corto um pedaço em 2013, no ano seguinte eu vou cortar o talhão de número dois e o talhão número um começa a regenerar. Aí eu só vou voltar ao talhão de número um quinze anos depois. Isso porque estudos demonstraram ser esse o tempo necessário para a Caatinga se regenerar. Se for somada toda a área protegida através de manejo florestal em Pernambuco, ela é maior do que a soma da área de todas as Unidades de Conservação nesse estado. Para poder conservar é necessário dar valor a ela, ao bem. Porque se eu dou valor ao bem, eu vou querer ter ele sempre. É o que está acontecendo em Pernambuco e vai acontecer também na Paraíba, onde existem assentamentos sendo assistidos. No Ceará, no Rio Grande do Norte e no Piauí também. Nós vamos cada vez mais dar escala a isso. Atualmente temos cerca de cem assentamentos sendo assistidos pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB) via contratos terceirizados. Esses serviços estão sendo contratados com dinheiro do Fundo Clima, porque o semiárido é onde as mudanças climáticas devem afetar mais. O Ministério do Meio Ambiente, que administra recursos do Fundo Clima, repassa para o SFB esse dinheiro, que nos permite abrir pregões eletrônicos para contratação de instituições de assistência técnica. Com esses contratos, tem sido aberto também o mercado de trabalho para engenheiros florestais que se formam aqui e que antes iam para a Amazônia.
Falamos sobre o grande potencial do uso e manejo dos recursos florestais madeireiros na Caatinga. E em relação ao potencial do uso de recursos não madeireiros?
Barcellos – É impressionante o uso dos recursos não madeireiros em todo o semiárido. Se você vai a uma feira, na capital ou no interior, por exemplo em Caruaru, o que tem de raízes e cascas é impressionante. Eu vejo também alguns outros usos industriais, por exemplo, o uso da casca do angico e da jurema preta – espécies que ocorrem na região – para o processo químico de curtir o couro. Existe uma grande indústria por trás dos recursos não madeireiros. Tem gente que coleta a casca para vender para coopertivas. Por enquanto não está ainda muito bem regulamentada essa exploração de recursos não madeireiros, porque ninguém sabe ainda qual a capacidade de suporte das espécies. Se eu não souber tirar a casca de uma planta, eu posso matá-la. Por isso já estamos fazendo uma pesquisa também sobre a extração da casca do angico para essa indústria do couro. Existe uma outra cooperativa na Bahia que produz umbú e exporta geleia feita com o fruto dele, uma árvore nativa do semiárido. O uso doméstico e medicinal das plantas daqui também acontece bastante. Mas ainda é necessário fortalecer essa parte relacionada ao uso dos recursos não madeireiros na assistência técnica que está sendo prestada. Faltam estudos, falta ainda regulamentação.
Embora apresente grande diversidade biológica e importância socioeconômica para a população local, por que o bioma não tem recebido muita atenção nas políticas públicas?
Barcellos – Eu acho que isso está mudando. Essa atenção ao bioma tem mudado, tem muita coisa agora voltada para ele. Até esse Decreto nº 6.874, de 2009, que lançou o Programa Federal de Manejo Florestal Comunitário Familiar, embora não seja apenas para a Caatinga, beneficia muito esse bioma. Já o Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação é todo voltado para a Caatinga, porque onde há o fenômeno de desertificação é no semiárido. Outra política pública é o Plano Nacional para a Promoção da Cadeia de Produtos da Sociodiversidade, que é muito voltado para esse bioma também. O Programa de Mudanças Climáticas também é muito voltado para o semiárido brasileiro. Até poucos anos atrás eu concordaria que a gente estava precisando de mais atenção, mais políticas públicas, mas hoje eu acho que mudou para melhor. Em décadas passadas, numa seca como essa que a gente teve, ou morria gente ou as pessoas iam embora. Agora as pessoas ficam na região porque têm mais armazenamento de água, mais políticas públicas do que existia a um tempo atrás. Seria até injusto dizer que não melhorou, senão não seria possível manter cerca de 23 milhões de pessoas. Diversas indústrias estão se instalando por aqui. Essas medidas estão levando o empresariado a se estabelecer no semiárido.
Dados do Incra mostram que a instalação de assentamentos rurais na região Nordeste tem sido crescente. Nesse ínterim, quais as oportunidades e possibilidades de desenvolvimento sustentável podem ser e estão sendo delineadas?
Barcellos – Os assentamentos já estão ocupando cerca de 12 ou 13% do território do Rio Grande do Norte. Se a gente não ajudar essa população que está se estabelecendo, eles vão detonar a base de recursos naturais. Porque a rede de assistência técnica do Incra, com a falência da Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural), tem tido falta de sucesso. O Incra tem dificuldade de pagar e, se ele não paga, as outras entidades contratadas para fazer o serviço não vão. Então, fica aquele negócio: eu finjo que te pago, você finge que trabalha. Os agricultores reclamam muito porque não aparece ninguém há meses e, por isso, não tem dado muito certo a assitência técnica oferecida por eles. Nós do SFB estamos trabalhando fortemente com o dinheiro investido pelo Fundo Clima com assistência técnica florestal, para manter esses agricultores no campo, com renda, com dignidade.
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