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Artigo
A cidade e a negação do outro
Por Lucas Melgaço
10/05/2010

Historicamente as cidades nunca foram locais igualmente acolhedores a todos. Elas nascem justamente do encontro e identificação entre um grupo de “iguais” interessados em se enriquecer e se defender da presença indesejada do “outro”. Os outros na cidade grega clássica eram, por exemplo, os estrangeiros e os prisioneiros de guerra. Na cidade medieval europeia, doentes como os leprosos eram os detentores dessa alcunha de “indesejáveis”. Atualmente, os imigrantes latinos nos Estados Unidos, os árabes e os negros africanos na Europa Ocidental e os nordestinos, homossexuais, negros, prostitutas, usuários de drogas, portadores de necessidades especiais, mendigos e desempregados no Brasil, são aqueles mais comumente considerados como os outros. A principal mudança em relação ao passado é que, mais do que questões de raça, credo, saúde ou nacionalidade, no atual período de globalização neoliberal tem sido a pobreza o principal atributo de diferenciação.

Muitas vezes a negação do outro não se dá apenas no âmbito das falas e das ações, mas se materializa em formas urbanas voltadas a separar e afastar os indesejáveis. Um exemplo muito presente na arquitetura das casas e apartamentos brasileiros são as dependências de empregada e as entradas e elevadores de serviço. Tais formas têm a função de demarcar os espaços de circulação e presença dos empregados e de lhes assinalar sua condição de outro.

Mais do que o interior das casas, porém, grandes complexos urbanísticos têm sido construídos como resposta a esse desejo de segregação. Os condomínios fechados, por exemplo, sejam horizontais ou verticais, têm no argumento da exclusividade o seu principal apelo publicitário. O ideal de felicidade vendido pelos agentes imobiliários passa pelo conceito de que é bom aquilo que pode ser usufruído de modo individual ou no máximo por um grupo de “semelhantes”. Muitas campanhas reforçam, por exemplo, o privilégio de se ter áreas verdes e praças de lazer exclusivas e sem a incômoda presença de “estranhos”. Ao invés de ter que lidar com o outro em uma praça pública de esportes, prefere-se o privilégio de se ter um campo de futebol particular, mesmo que ele passe a maior parte do tempo subutilizado por falta de jogadores.

Talvez seja, porém, um pouco demasiado dizer que os condomínios sejam totalmente intolerantes aos outros. Algumas dessas pessoas podem se tornar “desejáveis” quando úteis para o cumprimento de serviços pouco nobres, como a limpeza ou a vigilância. Sem faxineiros, empregadas domésticas e porteiros, funções geralmente delegadas a nordestinos, negros e pobres, seria inviável a existência dos condomínios fechados nos moldes em que foram pensados. Contudo, basta um furto dentro de um condomínio para que, de desejáveis, essas pessoas retornem à condição de indesejáveis. Na ocorrência de um crime, os primeiros suspeitos são sempre os outros, e nunca, por exemplo, um jovem morador do condomínio que faz pequenos furtos internos para manter seu vício em drogas.

A mesma lógica de criminalização do outro está presente também nas recentes estratégias de monitoramento das cidades através de câmeras de vigilância. Os suspeitos ali apontados são na maior parte das vezes aqueles que se enquadram no estereótipo do “marginal”, ou seja, cujos traços físicos, modo de vestir e de se comportar não estão dentro dos modelos considerados “normais”. As câmeras também são usadas como instrumentos de repulsa dos indesejáveis, como ocorre em São Paulo , onde elas foram instaladas no entorno do Jóquei Clube com o objetivo de inibir a presença de prostitutas.

O uso de instrumentos de vigilância também tem sido cada vez mais freqüente em escolas brasileiras, especialmente nas privadas, muitas vezes com o curioso argumento de que são estratégias contra o chamado bullying : um tipo de violência em que um grupo de estudantes promove humilhações e violência psicológica a colegas que não se enquadram nos padrões de estética e comportamento considerados normais. O bullying é uma violência de não aceitação da diferença, ou seja, de intolerância ao outro. As câmeras, porém, por serem instrumentos que primam pela homogeneização de comportamentos, surtirão efeito contrário ao esperado, pois reforçarão a intransigência a tudo que for excêntrico.

Ainda a propósito das escolas privadas, deve-se destacar que muitas delas têm servido como verdadeiros centros de formação para a não-aceitação da diferença. Desde cedo, as crianças que as frequentam são expostas a ambientes ultra-controlados e ultra-exclusivos. Na cidade de Campinas (São Paulo), por exemplo, o excesso de proteção fica claro no caso de uma escola que escolheu o interior de um shopping-center como local para a construção de uma de suas filiais. Não satisfeita, porém, apenas com a segurança fornecida pelo estabelecimento comercial, a direção da escola resolveu instalar câmeras de vigilância nos corredores do colégio e, até mesmo, no interior das salas de aula. O excesso de seletividade é evidente também graças aos altos valores das mensalidades praticados, o que faz com que apenas crianças de famílias com certas condições financeiras possam frequentar esses locais. Assim, ao invés de educarem as crianças a conviverem na diferença, essas instituições privadas inculcam, desde cedo, naquelas pequenas mentes, ideias de seletividade e de segregação. Além disso, enquanto a porcentagem de negros dentre os alunos de escolas particulares está evidentemente muito abaixo da média nacional, a porcentagem de negros em serviços de vigilância e limpeza desses estabelecimentos é certamente bem mais elevada.

A intolerância ao outro se faz ainda mais evidente em formas urbanas que são explicitamente construídas para impedir a presença dos indesejáveis. Em diversos lugares da cidade de Campinas podem ser vistos objetos pontiagudos cuja função é a de evitar que pessoas “estranhas” se sentem e ali permaneçam. Tais arquiteturas são muito comuns em frente a estabelecimentos comerciais (figura 1), mas podem também ser encontradas em lugares mais inusitados, como nas escadarias da Catedral de Campinas (figura 2).

 
Arquitetura anti-indesejáveis no comércio do centro de Campinas, 2009. Foto do autor.

 
Espetos colocados nas escadas da Catedral Metropolitana de Campinas, 2007.
Autor: Tiago Macambira

  Até mesmo a prefeitura da cidade, que deveria ser a principal representante do interesse público, tem o seu exemplar de arquitetura anti-indesejáveis. Na reforma de um viaduto em um bairro nobre, pedras pontiagudas foram instaladas com o intuito de afugentar moradores de rua e pedintes (figura 3). Essas são, obviamente, políticas que combatem o pobre, como ser indesejável na paisagem, e não exatamente a pobreza.

 
Arquitetura anti-indesejáveis sob viaduto de Campinas 2007. Autor: Tiago Macambira

Esse tipo de arquitetura voltada à expulsão dos indesejáveis não é, contudo, exclusividade de Campinas, mesmo que nessa cidade a sua concentração seja incrivelmente alta. As duas fotos a seguir, a primeira de uma calçada de Londres e a segunda da entrada da Faculdade de Direito da Sorbonne em Paris, mostram que essas formas arquitetônicas têm sido presentes em paisagens as mais diversas.  


Calçada de Londres com arquitetura anti-indesejáveis, 2009. Foto do autor.


Arquitetura anti-indesejáveis na entrada da Faculdade de Direito da Sorbonne,
Paris, 2010. Foto do autor.

É lamentável constatar como alguns arquitetos direcionam sua imensa capacidade criativa em projetos como esses. Há, todavia, casos ainda mais engenhosos como o que ocorre na região da “Cracolândia” em São Paulo onde, para afastar usuários de craque, um equipamento gerador de “chuva artificial” foi instalado sob a marquise de um prédio. Outro exemplo inusitado pode ser encontrado em algumas cidades inglesas que instalaram aparelhos emissores de ruídos ultra-agudos imperceptíveis para os maiores de 25 anos de idade, mas extremamente incômodo para os jovens. Contudo, o mais curioso deles é certamente o da também inglesa Mansfield: luzes róseas, como aquelas utilizadas por dermatologistas, foram colocadas em algumas ruas da cidade com o objetivo de realçar as espinhas dos adolescentes arruaceiros e com isso desestimular a presença dos mesmos naqueles locais.

Há, assim, uma deliberada adaptação das cidades para que elas se tornem receptivas para alguns e repulsivas para os indesejáveis. Mais do que uma questão estética, porém, essas arquiteturas carregam uma profunda carga simbólica. Quando uma prefeitura chega ao ponto de construir formas urbanas para expulsar os pobres, ela revela que suas preocupações não são coletivas, mas direcionadas a servir aos interesses de uma pequena classe hegemônica.

Por fim, é importante que não nos esqueçamos da forma espacial que mais claramente revela o objetivo de negar e segregar os indesejáveis: a prisão. Independente do local onde tenham sido construídas, as prisões são sempre majoritariamente povoadas pelos outros, o que no caso brasileiro são, sobretudo, os pobres. Além disso, há muito, a preocupação da Justiça brasileira não é a de recuperar seus presidiários e trazer esses outros para perto dos iguais, mas sim mantê-los o maior tempo possível isolados e na eterna condição de outro. Assim como os espetos anti-indesejáveis, as prisões não resolvem os problemas estruturais e profundos da sociedade, mas se contentam em promover uma “limpeza da paisagem”, tirando da vista dos iguais a incômoda presença dos “diferentes”.

Pode se, então, concluir que a cidade de hoje, mais do que aquela do passado, nega ao outro a condição de cidadão, negação esta que tem na pobreza o seu principal argumento. E, como pôde ser visto, essa intransigência não se restringe aos atos, pois se concretiza em formas urbanas repulsivas e segregadoras. Com a existência dessas formas, as cidades passam a criar as condições para que a intolerância seja não só mantida como também reproduzida. Confirmando-se essa tendência, chegará certamente o momento em que as cidades de poucos “iguais” se tornarão insuportáveis para uma grande maioria de “outros”.

Lucas de Melo Melgaço é geógrafo e doutorando em geografia, em co-tutela de tese entre a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade de Paris 1 – Panthéon Sorbonne.