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Reportagem
Espaço aéreo sob controle: segurança, tecnologia e riscos
Por Flávia Gouveia e Marta Kanashiro
10/02/2007

Controlar o maior volume de vôos da América Latina, cerca de 70 mil por mês, numa área de 22 milhões de quilômetros quadrados: essa é a dimensão do problema que deve ser solucionado pelo sistema de controle do espaço aéreo brasileiro. Nos últimos meses, que mostraram que a solução não é nada trivial, instalou-se no país uma crise sem precedentes nesse setor. Vôos cancelados, passageiros aglomerados em saguões de aeroportos, denúncias, declarações polêmicas e propostas de possíveis soluções rechearam as páginas de jornais nesse período. Independentemente das causas dessa crise, que continua sendo discutida na mídia, vale perguntar: Como é feito o controle do tráfego aéreo no Brasil?

Em um aeroporto, o controle de tráfego aéreo é realizado pela torre de controle. A partir dela são controlados desde pousos e decolagens até a circulação no solo de veículos e pessoas nas áreas de manobras e circulação, num raio de alcance de 10 km. Os controladores de tráfego aéreo são os profissionais que fornecem indicações e autorizações de vôo, a partir de dados obtidos por radares e dos equipamentos de auxílio à navegação, dos dados meteorológicos e do tratamento dessas informações. As indicações podem estar relacionadas à rota, altitude ou velocidade propostas pelo operador da aeronave, dentre outros itens. A torre de controle reúne os profissionais e equipamentos responsáveis pela zona de tráfego do aeródromo, que é o espaço que inclui e circunda um aeroporto. Nesse órgão, o trabalho está dividido em posições operacionais, tais como controle de solo, autorização de plano de vôo e torre.

Para o controle das aeronaves que estão decolando ou pousando em uma área de raio equivalente a 100 Km, incluindo várias torres, o monitoramento é feito pelos Centros de Controle de Aproximação. Já os Centros de Controle de Área são responsáveis por regiões maiores, que formam poligonais, dividindo o país em cinco grandes áreas. Essas regiões de controle têm tamanhos e características diversas, e a troca de informações entre os órgãos de controle para transferir as aeronaves entre cada uma dessas regiões é fundamental para o funcionamento do sistema.

Radar Brasil

Centrais de controle

Existem no Brasil quatro grandes centros de controle ou Centros Integrados de Defesa Aérea e Controle do Tráfego Aéreo (Cindacta), que interagem para vigiar e controlar a circulação aérea geral. Em 1973, foi criado em Brasília o Cindacta I para gerenciar os vôos na capital federal, Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro. Com o crescimento do tráfego aéreo, foram implantados posteriormente o Cindacta 2 (Curitiba), Cindacta 3 (Recife) e Cindacta 4 (Manaus). Toda essa divisão do espaço aéreo e as respectivas atribuições de responsabilidade são feitas e divulgadas pelo Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea), órgão da Força Aérea Brasileira (FAB). A legislação brasileira, bem como os procedimentos adotados, usam como referência as normas e recomendações da Organização de Aviação Civil Internacional (Oaci). "O Brasil faz parte do grupo 01 da Oaci desde a sua fundação, em 1944, o que significa que o país participa ativamente da proposição de novas regras para a aviação mundial", explica o major-brigadeiro-do-ar Ramon Borges Cardoso, vice-diretor do Decea.

De forma geral, o controle do tráfego aéreo depende de um conjunto de sistemas interligados. O sistema de auxílios à navegação aérea e pouso é constituído de vários equipamentos instalados ao longo das rotas e nos aeroportos. Já o sistema de meteorologia é constituído por receptores de imagem de satélite, sensores receptores de temperatura, pressão e umidade do ar atmosférico superior e de superfície. O sistema de processamento de dados, por sua vez, é uma operação estendida dos radares e gera informações que são processadas e transformadas da forma digital para a forma alfanumérica, a fim de que possam ser apresentadas ao Centro de Controle de Tráfego Aéreo e de Defesa Aérea. Os computadores realizam, entre outras tarefas, o processamento dos planos de vôo; tratamento de radar; tratamento de defesa aérea e visualização de radar. O sistema de telecomunicações do controle de espaço aéreo é composto por equipamentos de comunicação via rádio, satélite, fibras ópticas, equipamentos de telefonia, roteadores e redes de computadores e canais de comunicação alugados de concessionárias de telecomunicações. Segundo a FAB, essa rede está estruturada para ser "redundante" e diminuir a possibilidade de problemas ou falhas. "A comunicação é o elemento fundamental para um controle aéreo eficiente", diz o major brigadeiro Ramon, "seja ela por dados ou por voz, como no VHF".

A rede de comunicação divide-se em comunicações móveis para interligar controladores e pilotos, e fixas, entre controladores, mas abrangendo também órgãos de outros países, para troca de informações operacionais. O Serviço Móvel Aeronáutico (SMA) possui aproximadamente 4.400 estações de comunicação-rádio distribuídas pelo território nacional, que operam em diferentes faixas de freqüência. Já o Serviço Fixo Aeronáutico (SFA) é realizado por meio de redes de comunicação por telefonia e possui ramais telefônicos que permitem comunicações operacionais imediatas, em alguns casos. As redes internacionais que integram o sistema fazem parte da Rede de Telecomunicações Fixas Aeronáuticas (AFTN) e é fundamental para a troca de mensagens operacionais sobre condições meteorológicas, condições de operação de aeródromos, ou coordenação de tráfego entre centros de controle.

Gestão do espaço aéreo

O controle do espaço aéreo do país é um sistema integrado gerido pela aeronáutica. Segundo informações da FAB, na década de 70, quando foram implantados os primeiros radares, o país não dispunha de recursos para montar dois sistemas de aviação, um civil e outro militar. Optou-se na ocasião por um sistema integrado de informações e diferenciado de funções, ou seja, apesar de haver uma parte civil, a estrutura é toda militar e os controladores civis devem respeitar as normas estabelecidas pelo comando da aeronáutica, sem direito a greves, por exemplo. No entanto, em virtude da crise aérea brasileira discute-se a possibilidade de essa função ser dividida entre o comando da aeronáutica e um órgão civil.

Para o major brigadeiro Ramon, dividir o controle aéreo entre órgãos militares e civis é mais dispendioso e opõe-se a um movimento internacional de tornar todo o controle militar. Apesar deste ponto de vista, a questão divide opiniões na medida em que, no final de 2006, em virtude da crise aérea brasileira, foi entregue ao presidente Lula uma proposta de desmilitarização do controle aéreo. A proposta de mudança desse setor no país ainda inclui a reformulação das carreiras e remunerações relacionadas ao controle do espaço aéreo, além da revisão das normas que tratam das destinações das tarifas aeronáuticas e aeroportuárias pagas pelas empresas e passageiros.

Tecnologia e segurança seguem padrões internacionais

Atualmente, todo o espaço aéreo sob responsabilidade do Brasil tem cobertura por radar e, segundo a FAB, o país poderia ter seu tráfego aéreo controlado por meio apenas de comunicações via rádio, sem prejuízo à segurança de vôo. Os radares são utilizados (além da vigilância do espaço realizada pela defesa aérea) para permitir que o sistema possa diminuir o espaçamento entre as aeronaves e controlar mais vôos no mesmo espaço aéreo. A distância que as aeronaves devem manter entre si depende não apenas de suas características, mas das regiões nas quais circulam. No entanto, a partir de 2005, quando se iniciaram mudanças no sistema de aviação, essa distância foi reduzida de 600 metros para 300 metros, o que permitiu, por exemplo, a circulação de quatro aeronaves no corredor Brasil-Europa onde antes viajava apenas uma.

Segundo o Major Brigadeiro Ramon, abaixo de 3 mil metros, em determinadas áreas do interior do país, a detecção de radar é limitada ou nula, por isso o controle aéreo é realizado por cobertura via rádio VHF, UHF e HF (para longas distâncias e áreas oceânicas). A FAB julga a comunicação por rádio entre controladores e pilotos suficiente para segurança do tráfego aéreo dessas aéreas, e o acompanhamento das aeronaves por meio de fichas de progressão de vôo (strips), pois o fluxo desse tráfego é menos significativo. O major brigadeiro Ramon afirma ainda que para cobrir altitudes de 3 mil metros seriam necessários 680 radares em lugar dos 70 existentes no país. "Isso seria muito oneroso porque cada radar representa um gasto de US$ 20 milhões com infra-estrutura, equipamentos e manutenção, sem contar as despesas de pessoal. Deveria haver aproximadamente 30 pessoas em cada local", diz ele.

O Decea, no seu planejamento a longo prazo, busca estabelecer uma cobertura de radares que tenha esse alcance, em todas as aerovias brasileiras. Por enquanto, a estratégia utilizada é implantar radares fixos nas principais cidades brasileiras e utilizar radares transportáveis para cobrir as áreas de interesse operacional. Além disso, são utilizadas aeronaves de controle e alarme aéreo (R-99) para a detecção e vigilância de vôos a baixa altitude, como elemento surpresa da vigilância do espaço aéreo. "Essa estratégia é a adotada por todos os países devido ao elevado custo para recobrir todo o território com radares de detecção de aeronaves a baixa altitude" explica o Brigadeiro.

De acordo com a FAB, os índices de segurança observados no Brasil estão próximos dos padrões de primeiro mundo. Para Marcos José Mahler de Araújo, líder de projetos da empresa brasileira produtora de softwares para aviação Atech, "esse é o indicativo mais contundente de que nossos serviços e sistemas têm uma qualidade próxima daquela existente nesses países". Na área de pesquisa acadêmica, existe hoje um grande número de pesquisadores e docentes em universidades como a Universidade de São Paulo (USP) e o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) que têm se dedicado a desenvolver conhecimento nessa área. Os resultados dessas buscas estão começando a aparecer e a ganhar projeção internacional.

Normalmente os equipamentos têm redundâncias e raramente uma falha chega a causar dano à operacionalidade do sistema. Existem procedimentos de contingência prevendo as mais variadas situações e que são adotados sempre que uma situação comprometa ou possa vir a comprometer o nível de segurança do serviço prestado. Caso isso aconteça, reduz-se a capacidade do sistema, pois a tendência é que se trabalhe cada vez mais com uma separação maior entre as aeronaves. No limite, pode-se chegar a uma parada total do serviço, com interrupção do tráfego, mas esse tipo de ocorrência é extremamente raro, segundo os especialistas.

Para identificar problemas e propor soluções em casos de incidentes aéreos, realiza-se uma investigação e produz-se um Relatório de Incidente de Tráfego Aéreo (Ricea). Quando há um reporte são iniciados procedimentos de análise, utilizando relatos dos envolvidos e a gravação de todas as comunicações e visualização de dados tramitados na prestação do serviço de tráfego aéreo. O principal produto do Ricea são as recomendações de segurança extraídas. Além disso, a análise de diferentes relatórios serve para que a administração identifique pontos que deverão ser priorizados em seu planejamento.

Controle aéreo em evolução

No começo dos anos 80, a Organização de Aviação Civil Internacional (Oaci) reconheceu que as limitações dos sistemas atuais de navegação aérea estavam crescendo de maneira significativa e que seria necessário introduzir melhorias para sustentar a aviação civil do século 21. Em 1983, foi instituído o comitê especial, denominado Sistemas Futuros de Navegação Aérea (Fans), ao qual foi confiada a tarefa de estudar, identificar, analisar e avaliar novos conceitos e novas técnicas sobre o assunto e apresentar recomendações para o desenvolvimento progressivo e coordenado da navegação aérea.

O Comitê Fans executou sua primeira tarefa em 1988, elaborando a concepção de sistemas de comunicações, navegação e vigilância (CNS), baseada, principalmente, em satélites, destinados a suportar e a propiciar a implementação de novos conceitos, abrangendo a gerência do tráfego aéreo (ATM). O sistema CNS/ATM, quando for totalmente implantado, deverá oferecer uma precisão maior com relação à previsão do ponto onde uma aeronave se localiza no espaço aéreo. "O sistema vigente já está em obsolência", afirma o major brigadeiro Ramon. "Com o CNS/ATM, uma aeronave estará efetivamente a até 0,3 milhas de distância do ponto previsto pelos equipamentos durante 95% do tempo de vôo, número bastante inferior às atuais 4 milhas de raio de previsibilidade", diz.

Ciente do fato de que um alto grau de cooperação internacional seria necessário, envolvendo os administradores da aviação civil, as organizações internacionais, os prestadores de serviços e os usuários, a Oaci estabeleceu um novo comitê especial, encarregado de desenvolver um plano mundial coordenado que disciplinasse a sua implementação. O plano foi concluído e produziu diretrizes de transição, incluindo as recomendações necessárias para garantir que os sistemas CNS/ATM concebidos pela Oaci fossem implementados de uma maneira progressiva. A concepção preconizada pela Oaci inclui tecnologia de satélites e elementos dos sistemas de alcance óticos, instalados em terra. Para Araújo, "o problema básico do controle de tráfego aéreo é a limitação de espaço e a necessidade de um nível satisfatório de segurança". Com as tecnologias disponíveis hoje, consegue-se prestar esse serviço para um certo nível de demanda. O aumento dessa capacidade depende de uma evolução correspondente da tecnologia que permita garantir os mesmos níveis de segurança com a demanda maior. "O CNS/ATM tem permitido grandes avanços nesse sentido", diz o líder de projetos da Atech. Os elementos essenciais dos novos sistemas CNS/ATM estão detalhados no site da FAB. A implementação do novo sistema foi dividida em três fases, sendo que a primeira já foi realizada e vigora desde 2005.