Uma criança pode ter um acidente vascular cerebral (AVC)? A resposta, que pode gelar a espinha de muitas pessoas, é sim. Crianças ou mesmo bebês durante a gestação podem ser acometidos por um AVC, e perceber ou diagnosticar tal evento é tarefa complicadíssima. No caso do período peri-natal (durante o parto), só é possível saber se houve um AVC através dos testes realizados com o bebê recém-nascido (teste do pezinho, por exemplo) e que revelem, posteriormente ao AVC ocorrido, uma dissonância com o padrão esperado. Até os 28 dias de vida (período neo-natal), o perigo de ocorrer esse tipo de acidente com o bebê também é presente e é preciso enorme atenção para diagnosticar. Em crianças a dificuldade de diagnóstico também é grande, mas vai diminuindo com a idade, sendo cada vez mais perceptível.
“No exame neurológico de um adulto é muito fácil de evidenciar uma hemiparesia, ou seja, uma diminuição da movimentação da metade do corpo. Na criança, isso é muito mais difícil, não só porque ela não colabora no exame, mas porque no primeiro ano de vida, parte da movimentação ainda é reflexa, devido aos reflexos primitivos”, afirma Maria Augusta Santos Montenegro, neuropediatra da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. Além de tudo isso, há também o perigo do AVC acontecer no período pré-natal (anterior ao parto), mas nesse caso, o diagnóstico é um pouco menos difícil, pois ele pode ser decorrente de doenças da mãe (como diabetes ou hipertensão), o que pode deixar os médicos preparados para qualquer anormalidade na saúde do feto.
Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), são considerados AVCs na infância os casos ocorridos em crianças de 29 dias a 18 anos. Pesquisar o AVC nessa faixa de idade é difícil e, por isso, os estudos são escassos. “A pesquisa em AVC infantil impõe diversos desafios metodológicos: a documentação existente sobre o início da doença geralmente é incerta, pois não há dados dos pacientes anteriores ao ocorrido; e o sub-diagnóstico é frequente, uma vez que casos que apresentam sintomas leves ou transitórios, por exemplo, não são identificados e diagnosticados”, diz Peterson Marco de Oliveira Andrade, mestre em saúde da criança e do adolescente e em ciências da saúde pela Faculdade de Medicina da UFMG..
Há também desafios quanto à utilização de instrumentos adequados para diferentes idades ao longo do desenvolvimento da doença, para avaliar aspectos motores, cognitivos, comportamentais e de linguagem. Isso porque são encontrados subgrupos bastante distintos de pacientes, variação de idade em que ocorreu o episódio de AVC ou mesmo o tempo entre o AVC e a idade em que ocorreu a avaliação. “Uma criança que teve um AVC durante o período perinatal, ou seja, na época do nascimento, pode ser diagnosticada só no segundo semestre de vida, com nove ou dez meses de idade”, afirma Montenegro.
É também difícil caracterizar a causa do AVC, dado que poderia indicar que tipo de sequelas a criança pode apresentar. “Por conta de tudo isso e devido à ausência de consenso e de ensaios clínicos randomizados (aleatórios), não se sabe quais são as melhores intervenções terapêuticas disponíveis para casos de AVC na infância”, pontua Andrade. As medicações trombolíticas que já têm sido usada em adultos ainda não foram aprovadas nem estão liberadas para serem usadas em criança. “De uma forma geral, a nossa intervenção e prevenção mais importante é, num primeiro momento, estabilizar a criança e ter certeza de que ela vai se recuperar do AVC que já teve. Mas o mais importante é estabelecer a causa, ou seja, a etiologia, para prevenir eventos futuros”, observa Montenegro. Se a criança teve um AVC por causa de uma má formação cardíaca, vai ser preciso que ela seja corrigida para tentar prevenir um segundo episódio na mesma criança.
Outro fator muito importante na semiologia e na identificação do AVC na infância é que, segundo os estudos de caso observados na FCM da Unicamp, 60% dos pacientes apresentaram convulsões durante a instalação do quadro nas primeira vinte e quatro horas do evento, e isso é bem diferente do que acontece na população adulta.
Causas mais comuns
“Muitas crianças que apresentam AVC têm outra condição médica associada, como disfunções cardíacas ou anemia falciforme, estando vulneráveis a efeitos adversos durante toda a fase do desenvolvimento infantil”, explica Andrade. “No adulto, a associação que se faz ao indivíduo com AVC é ele ter colesterol alto, diabetes, é ser sedentário, tabagista, etc. Em crianças, no caso do AVC isquêmico (em que há o entupimento da veia), as causas mais comuns são principalmente as cardiopatia congênita e a meningoencefalite”, aponta Montenegro.
Em casos de cardiopatia congênita, a criança nasce com uma má formação no coração, a qual, em algum momento, pode liberar um trombo – massa sólida formada pela coagulação do sangue – que vai obstruir um vaso sanguíneo cerebral, causando um AVC isquêmico. No caso da meningoencefalite, mais conhecida como meningite, o processo infeccioso pode se estender até os vasos sanguíneos e isso pode causar uma vasculite – inflamação do vaso sanguíneo – ou gerar uma obstrução, também causando uma isquemia localizada no cérebro. No AVC hemorrágico – quando ocorre o rompimento de uma veia –, as causas mais frequentes são a má formação de artérias e veias como novelos de vasos sanguíneos, que algumas crianças desenvolvem e, em algum momento da vida, podem se romper.
Com relação aos aspectos clínicos do AVC na infância, as sequelas neuroanatômicas – que envolvem o crescimento e o desenvolvimento encefálico da criança – mais frequentes são hemiplegia (paralisia parcial) e outras alterações motoras, além de alterações sensoriais, perceptivas e emocionais. Após o AVC, as crianças – assim como os pacientes adultos – podem apresentar alterações motoras como fraqueza muscular, contrações irregulares do músculo, padrões anormais de movimento e perda de condicionamento físico. “Esses déficits podem limitar a capacidade de realizar tarefas funcionais, e a criança pode ter dificuldades para andar, fazer compras, subir escadas e cuidar de si mesma em tarefas aparentemente simples”, diz Andrade.
Os déficits cognitivos também estão presentes e são frequentemente subestimados em crianças com AVC, podendo afetar todos os aspectos da funcionalidade no cérebro das crianças e dos adolescentes. Um aspecto relevante a ser ressaltado são as dificuldades de aprendizagem, que surgem como sequela frequente do AVC infantil.
“O AVC na infância é uma área negligenciada pelos profissionais e pelo público em geral, principalmente por desconhecimento do problema e suas consequências potenciais”, alerta Andrade. Os avanços tecnológicos e de técnicas como as de neuroimagem estão tornando-se mais comuns e facilitando a detecção do problema, permitindo a realização de um maior número de diagnósticos. De acordo com o pesquisador, as taxas de incidência (casos novos) e prevalência (aumento em relação à média anterior) de AVC na infância têm crescido. Segundo ele, atualmente a incidência de AVC em pediatria é estimada em 2,5 a 2,7 por 100 mil crianças ao ano na América do Norte e 13 por 100 mil ao ano na França. A taxa de recorrência do AVC em crianças apresenta uma variação de 6% a 40% dos casos, variando de acordo com idade, tempo de diagnóstico e tratamento e especificidades sociais, econômicas e geográficas. No Brasil, devido à falta de documentação e à incipiência dos estudos nessa área, esse número é totalmente desconhecido.
|