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Etno-futebol indígena |
Por José Ronaldo Mendonça Fassheber e Maria Beatriz Rocha Ferreira
10/08/2006
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Segundo o antropólogo Michael Taussig (1) a faculdade
mimética pertence à "natureza" que tem as culturas de
criar uma "segunda natureza". Esta faculdade, no entanto, não se
dá meramente pela cópia do original. Ao contrário,
Taussig aponta para as ressignificações que cada cultura
consegue do original, influenciando esse original. Geertz (2)
propôs que os antropólogos foram os primeiros a insistir
que vemos as vidas dos outros através de lentes por nós
lapidadas, e que os outros vêem as nossas vidas através de
suas próprias lentes, cuja lapidação foi feita por
eles. Assim, as lentes indígenas, cada uma a sua maneira,
interpretam e re-interpretam os novos conhecimentos que ora como
outrora lhes chegam desavisadamente à sua porta. Mas a faculdade
mimética que eles possuem para transformar e re-significar esses
conhecimentos pode ser claramente identificada quando analisamos a
introdução do futebol e de outros processos de
institucionalização do esporte.
Os índios parecem ter lapidado uma lente para enxergar e
praticar seu futebol. Essa mesma lente já pouco enxerga a difusa
imagem da mimesis – advinda do processo civilizador (3) – mas a
produz sob seu foco e se torna visível sob análise, pois
a mimesis sintetiza a "tradição" – dos jogos
tradicionais, do parentesco – à sua conveniência; e a
novidade – o futebol, a organização dos esportes e dos
eventos – emergem de uma "segunda natureza".
Assim, chegamos ao conceito que Fassheber (4) denominou de
etno-desporto: é a prática das atividades físicas
tanto sob a forma de jogos tradicionais específicos e a mimesis
que dinamiza esses jogos, quanto sob a forma de adesão ao
processo de “mimesis do esporte global”. Em outros termos, é a
capacidade de adaptarem-se aos esportes modernos, sem, contudo, perder
a indianidade. Já por etno-futebol indígena, entendemos
ser o processo pelo qual a mimesis do esporte – pela via da
transformação dos jogos tradicionais e da
incorporação do futebol nas aldeias – permite-nos pensar
a afirmação da identidade étnica de forma
singular, se considerarmos a construção e o uso
específico que cada grupo faz de sua corporalidade.
O futebol, sendo o esporte mais popular do mundo, no Brasil,
além de uma grande paixão, alcançou uma segunda
natureza: o futebol brasileiro, categoria reconhecida no mundo inteiro
como detentor de uma identidade singular. O futebol não
apresenta grandes dificuldades práticas e instrumentais,
adaptando-se a várias condições e regras e
parece-nos ser este um dos fatos decisivos para a difusão de sua
popularidade no Brasil e em várias partes do mundo.
Isto porque o futebol é um jogo que pode ser disputado em campos
oficiais, quadras, ruas, terrenos, várzeas, pastos, com e sem
inclinações e buracos; com linhas pintadas, desenhadas ou
simplesmente imaginadas; com traves de ferro, madeira, gravetos,
camisas e sandálias; com bolas oficiais, de couro, de
plástico, de meia e até de papel e fita. Na chuva ou em
areias escaldantes. De uniforme, chuteira, sem camisa e
descalço. De uniforme e descalço e de chuteiras sem
camisas. De manhã, de tarde, de noite ou de madrugada. Pode
acompanhá-lo a água, o éter, a cerveja ou a
cachaça. Antes, durante ou depois. Regras podem ser adaptadas no
jogo informal. Gols e campos podem ser diminuídos, "três
vira, seis acaba".
Dada sua facilidade prática, e sua grande possibilidade de se
adaptar, tornar-se mimesis, transformar-se, é possível
entender que da mesma maneira que o esporte bretão conquistou o
mundo, conquistou também os indígenas que o praticam
há pelo menos oitenta anos, como é o caso dos kaingang.
Mas, que os índios brasileiros são apaixonados por
futebol seria inútil dizer, já que entre todos os
brasileiros esse esporte desperta todo tipo de paixão. Inclui
até a paixão de quem "odeia futebol". Então
não poderia ser diferente entre os ticuna, entre os
kaiapó, entre os assuriní ou entre qualquer povo
indígena com muito ou pouco contato. Entre os kaingang, a
introdução do futebol entre eles coincide com o processo
civilizador de "esquecimento" de seus jogos de guerra kanjire e
pinjire, considerados ultra violentos pelos colonizadores. E o futebol
serviu como boa metáfora de tais treinamentos de guerra,
deslocando a violência para uma direção do que era
tido como comportamento civilizado.
Ademais, o futebol introduzido entre os indígenas permite-nos
algumas análises sociológicas importantes. Um exemplo
claro, é a posição de centralidade que o campo de
futebol ocupa dentro de diversas aldeias. O futebol pode ser percebido
também pela interação e pela
integração social dos moradores de uma terra
indígena (TI), destes com os de outras TIs e com a
população e com as equipes da cidade em
competições municipais e regionais.
O futebol, mesmo que não seja tradição
indígena, parece trazer consigo elementos da
tradição. Por exemplo, as equipes podem ser formadas ou
montadas na tradição da patrilinearidade
(determinação de uma linhagem paterna) e da
uxorilocalidade (regra de residência em que o genro vai morar na
casa do sogro) entre alguns povos Jê. Desta maneira constituem-se
equipes formadas por um grupo de filhos e de genros geralmente ligados
às lideranças das TIs. Renovam-se, pois, as
tradições. As relações
futebolísticas entre parentes de muitas aldeias permitem o
trânsito pelas terras que cultural e imemorialmente são
suas. Esta dimensão ocupa também o espaço das
cidades construídas sobre elas. Então, os contextos
urbanos, suburbanos e rurais tornam-se as localidades do encontro e
relações sociais entre índios e não
índios, onde eles demarcam suas diferenças e
singularidades.
Vale lembrar também o pensamento de Clastres (5), onde cada
sociedade – as nossas ou as indígenas – cada qual à sua
maneira, marca suas leis nos corpos de seus indivíduos.
Então, leis diferentes de diferentes sociedades implicam na
produção de corpos diferenciados. As identidades que os
esportes conseguem entre os índios, pela mimesis, parecem ser o
exemplo disso.
No corpo indígena, a noção de força
construída desde a ancestralidade permanece expressa
física e simbolicamente. Talvez, mesmo que muitos jogos
tradicionais indígenas estejam no silêncio ou no
esquecimento, eles representavam uma cosmologia que de uma forma ou
outra está também no esporte atual. Mas a
noção de força parece ser a forma de maior
expressão da identidade indígena, porque mais que uma
força física adquirida, treinada e diferenciada em
relação aos não-índios, existe a
expressão da diferença simbólica entre eles
– diferença positiva em relação a eles
próprios e que eles fazem questão de enfocar. Assim,
entendemos o desportista como uma categoria nativa que opera papel
estratégico na construção do corpo indígena.
O futebol se apresenta, pois, como fato social total, no sentido que
emprestamos de Mauss (6), pois ele pode ser analisado sob vários
ângulos: é um fato jurídico (no sentido da mimesis
das organizações esportivas, das
padronizações de regras e das relações
entre índios e não-índios), ao mesmo tempo em que
é fisiológico (pois leva em conta a
construção e o uso do corpo), é sociológico
(reuniões intra-TI, inter-TIs e extra-TI) e ao mesmo tempo
é carregado de dramas e performances discursivas.
E apresenta-se também como peça fundamental do
entendimento da mimesis do futebol incorporado e re-significado em e
por seus corpos; e justificado nas relações sociais que
se podem obter a partir dele e através dele. Em resumo, o
futebol demonstra ter mesmo uma eficácia social – na
re-inserção dos povos indígenas ante o mundo dos
brancos – e uma eficácia simbólica – pois significa
manter sua identidade étnica.
Por fim, não podemos deixar de constatar o futebol como
realidade empírica dentro das aldeias: por essas e outras ou,
pelo uso do futebol como prática recreativa mais comum
atualmente, muitos consideram os índios como aculturados. Pode
ser que olhos menos atentos concordem com essa afirmação,
afinal eles não só jogam o futebol e o fazem muito bem e
cotidianamente, como também muitos usam roupas dos brancos,
trabalham e ganham dinheiro dos brancos, usam a religião dos
brancos, carro dos brancos e ganham uma ainda parca assistência
médica e educacional, modelo branco. Também dão
entrevistas e tiram fotografia para pesquisador branco da universidade
branca, com seus propósitos, projetos e intenções
brancos. Mas eles fazem com propriedade a leitura indígena sobre
os intentos desses brancos e ler-nos, marca-lhes mais uma vez sua
identidade.
E, apesar de seus mais de quinhentos anos de contato com a sociedade
dos brancos, apesar da aproximação territorial entre
cidades e TIs ser medida em poucos quilômetros em muitos casos,
tornando o contato e as inter-relações entre
índios e brancos uma atividade diária, e apesar de muitos
índios terem de viver no mundo e na lógica de trabalho da
sociedade dos brancos, é preciso ter olhos treinados para
perceber que eles lutam para manter o significado em suas
ações. E é possível fazê-lo
até pela via do futebol, ressignificado a partir de seus corpos
e de suas identidades.
Devemos considerar Taussig (1) para quem a habilidade dos
indígenas para adaptar não deveria ser confundida com
aculturação. Ao contrário, esta é uma
característica constante, tradicional da vida social e cultural
indígena para transformar o velho no novo e o novo no velho,
incorporando-os mais que os rejeitando.
Então cabe a pergunta: será o futebol o significado do
grande invasor? O futebol é um ópio para os
índios? Um ícone do capitalismo, como apregoa o olhar
marxista "mil-e-novecentos-e-setentista"? Mais que isso, não vos
parece um tanto quanto utópica a idéia de fazer
"cercadinhos" para os índios, para que eles não sofram as
conseqüências do contato? Não obstante ser
utópica nos parece bastante ingênua essa idéia.
Afinal, o contato é inevitável, e os índios
não são coitadinhos. Eles não gostam e não
precisam ser tratados dessa maneira. Ao contrário, a
história mostra como eles de fato resistiram e resistem, se
adaptam e se impõem ante nossa sociedade. Os índios
mantêm como podem – e certamente podem e o fazem – sua
indianidade.
Ademais, quem se lembra de perguntar: o que, afinal, querem os
índios? Qual o desejo dos deles? Antes de dizer o que pode ou o
que não pode entrar nas aldeias. Por que eles não podem
assuntar de nossos assuntos, conhecer o melhor e o pior do
conhecimento, da tecnologia ou do esporte? Não será um
excessivo paternalismo de nossa parte?
As respostas, meu amigo, são sopradas no vento por todos os
indígenas que conheci: "o índio pode fazer qualquer coisa
sem deixar de ser índio", ou então: "eu posso ser o que
você é, sem deixar de ser o que eu sou", inclusive jogar
futebol.
Afinal, ninguém reclama de um ucraniano médico, de um
polonês farmacêutico, ou de um biólogo chinês.
Todavia, todos se espantam quando um indígena faz faculdade, se
forma, se elege ou apenas joga futebol. ― "Ah! Esse não é
mais índio!!!", há sempre alguém para dizer.
E por que não?...
José Ronaldo Mendonça Fassheber é pesquisador da
Universidade Estadual do Centro-Oeste e Maria Beatriz Rocha Ferreira
é professora da Faculdade de Educação
Física da Universidade Estadual de Campinas.
Referências Bibliográficas:
1) TAUSSIG, M. Mimesis and alterity: a particular history of the
senses. New York/London: Routledge, 1993. 2) GEERTZ, C. The uses of diversity. In: McMURRIN, S.M.
The Tanner lecture on human values. Salt Lake City, U. Utah Press, 1986. 3) ELIAS, N. & DUNNING, E. A busca da excitação.
Lisboa: Difel, 1992. 4) FASSHEBER. J. R. M. Etno-desporto indígena:
contribuições da antropologia social a partir da
experiência entre os Kaingang. Campinas: FEF/Unicamp, 2006. (Tese
de Doutorado). 5) CLASTRES, P. A sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro, Francisco
Alves, 1978. 6) MAUSS. M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac &
Naify, 2003.
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