O
antropólogo francês Philippe Descola argumentou certa vez que, se as Américas
contribuíram de modo decisivo com produtos agrícolas, vegetais, para a economia
e a culinária europeias, o traço distintivo do fluxo oposto – da Europa para
terras americanas –bem poderia ter sido a introdução de numerosas espécies de
animais domesticados no Novo Mundo: bois, cabras, ovelhas, cavalos, galinhas,
porcos, e mesmo cães e patos, cujas populações nativas alcançavam apenas certas
porções do continente (América do Norte e Central, Andes e a região do escudo
das Guianas).
Pode-se
afirmar, todavia, que o que de mais importante os europeus trouxeram para a
América – e, aqui, passo a referir-me especificamente à América do Sul e, ainda
mais precisamente, às terras baixas do continente, uma vez que a zona andina
(as terras altas, montanhosas) possui características muito particulares quanto
a essas questões – não foram os animais em si, mas a própria domesticidade enquanto critério
definidor de certa relação entre seres humanos e animais. Com efeito, não havia
animais domesticados, no sentido estrito do termo – populações animais mantidas
em estreito contato com agrupamentos humanos por meio do controle reprodutivo e
da seleção artificial – por estas plagas; havia, isto sim, e em abundância,
animais que chamamos familiarizados,
ou amansados (na tradução do inglês tamed, ou do francês apprivoisée), isto é, trazidos como
filhotes da floresta e criados no convívio com humanos nas aldeias: aquilo que
os povos Tupi costeiros denominavam xerimbabos.
Credito: Revista de Atualidade Indígena, ano II, nº 8, 1978. Funai legenda: Primeiro contato com os Matis, no vale do Javari (AM): os índios pediram filhotes de cães aos funcionários da Funai
Essa
domesticidade foi, evidentemente, transformada aqui, de modos diversos,
processo que continua a se desenrolar hoje em dia. Não obstante, se a
presença de animais de origem exógena nas aldeias indígenas na Amazônia e em
outras partes das terras baixas sul-americanas despertou algum interesse (pouco,
é verdade), este foi sobretudo anedótico ou, quando muito, impressionista:
“abundam cães” em uma aldeia Tapirapé, ou os Parintintim “criam galinhas em
quantidade” ou, ainda “os Bakairi adotaram a criação bovina no início do século
XX”. Nada mais do que isso, carecemos de pesquisas detalhadas que compreendam o
lugar ocupado por essas espécies alienígenas nos universos sociais,
cosmológicos, técnico-econômicos e rituais das diferentes sociedades indígenas
no continente, mesmo naqueles locais em que esses seres emergiram
inequivocamente como de capital valor simbólico e de crucial importância no
conjunto de práticas e conhecimentos nativos, tal o cavalo entre os Kadiweu
(inclusive chamados, no período colonial, de “índios cavaleiros”) no Mato
Grosso do Sul e os bovinos entre os Wayuu (também conhecidos como Guajiro) na
fronteira venezuelana-colombiana.
Tal
ausência dos animais domesticados de origem europeia nas reflexões de cientistas
sociais contrasta fortemente com a ubiquidade desses seres nas aldeias, no
passado e atualmente e, provavelmente, expressa uma faceta daquilo que a
antropóloga Joanna Overing definiu como “um desinteresse antropológico pela
domesticidade e pelo cotidiano”. Focada em uma interpretação que toma, como
definidora das sociocosmologias nativas das terras baixas, a relação com a
alteridade definida pelo idioma da afinidade (aliança) e atualizada em
mecanismos de abertura violenta para o exterior como a caça, o canibalismo, o
xamanismo e a guerra, a etnologia e a história indígenas da América do Sul têm
deixado, tradicionalmente, de lado as dimensões “internas” das sociedades
nativas, os modos por meio dos quais a sociedade é criada a partir das relações
de consanguinidade, de filiação, de amizade, de companheirismo, de mutualismo,
de confiança, de afeição. Ora, qualquer um que tenha animais de estimação, ou
que se interesse minimamente pelo tema, sabe que este é o vocabulário
absolutamente compreensível e corrente: falar de animais domésticos é falar em convivência
(ou convivialidade, como a mesma
Joanna Overing prefere dizer).
A
afinidade, portanto, parece não servir bem como modelo para abordar as relações
entre índios e animais domesticados. Serve para a caça, mas não para a
domesticidade, melhor descrita pelos idiomas da familiarização e da consanguinidade.
Os Karitiana – povo de língua Tupi-Arikém em Rondônia, com quem trabalho há dez
anos, e entre os quais desenvolvi uma pesquisa sobre a presença desses seres exóticos
– afirmam que “cachorro é como filho”, destacando, assim, a relação de
familiaridade/consanguinidade que corta as fronteiras entre o humano e o
não-humano. Como tal, os animais criados por eles assumem uma posição em tudo
análoga à das crianças humanas: há um genuíno prazer na criação desses seres,
no cuidado cotidiano com eles; prazer que, inclusive, porta dimensão estética,
pois se diz que os animais de criação (como são chamados), como as crianças,
“enfeitam a aldeia”, tornando-a agradável ao olhar de todos; há, ainda, a
percepção de que esses seres cumprem um ciclo de vida tal qual o dos humanos:
filhotes são mimados e protegidos, mas animais adultos devem portar-se como indivíduos
autônomos e responsáveis, cuidando de suas próprias necessidades e desejos – da
mesma forma que qualquer humano maduro; por fim, há de se frisar que o cuidado
com os animais domésticos é, sobretudo, assunto de mulheres, competência de uma
esfera de saberes e afetos propriamente femininos.
Como
filhos, matar esses animais com quem se convive diuturnamente torna-se uma
questão complexa e prenhe de implicações afetivas e emocionais. Há, nas aldeias
Karitiana, sempre muitas galinhas, e os índios afirmam que as comem;
entretanto, conforme relatado por outros autores, os Karitiana “dizem que
comem, mas não comem”. Ao menos, não comem as galinhas de sua criação, pois não
parece haver problema em deliciar-se com galinhas alheias, roubadas do vizinho,
compradas na cidade ou cedidas para outrem. Apenas duas vezes vi pessoas terem
de sacrificar suas próprias galinhas em função da necessidade de se ter carne
para o almoço – e, como é amplamente sabido, na Amazônia uma refeição sem carne
está lamentavelmente incompleta: nas duas ocasiões as aves foram perseguidas
por homens armados de arco e flechas, numa perfeita simulação do ato de caçar.
Assim, para que sejam tornadas alimento, as galinhas domésticas precisam,
antes, ser convertidas em caça, des-familiarizadas
violentamente, interpondo entre elas e a panela a ação das armas que buscam
quebrar o vínculo forte entre os animais e as mulheres que as criam. O que não
quer dizer que o consumo dessa carne seja, deste modo, tornado simples e
desprovido de sentimentos: toda morte de um animal gera sentimentos ambíguos e,
no caso dos animais de criação, genuína tristeza e raiva (contra o agressor),
especialmente nas mulheres e nas crianças.
Para
comer, pois, é necessário caçar: o termo Karitiana para (animal de) caça (himo) é, significativamente, o mesmo
para carne. Os animais de criação, então, não são carne e, em certo sentido,
não são mesmo animais, presos à convivência direta e contínua com seus pares
humanos: o que define a animalidade propriamente dita – a intolerância à
presença humana, a agressividade, a fuga, a timidez e, acima de tudo, a
comestibilidade (pois caça é carne e é animal) – falta aos animais domésticos,
comensais dos homens e mulheres, seus protegidos, seus filhos. Sua eventual
conversão em carne, como visto acima, envolve operações simbólicas precisas não
isentas, contudo, de fortes implicações afetivas.
O
idioma da predação, portanto, não parece prestar-se à domesticidade. Isso,
quanto aos animais introduzidos pelos brancos: este ser por definição doméstico
não é familiarizado no sentido usual do termo – tornado familiar de um afim
genérico, como acontece, por contraste, com o animal trazido do mato e amansado
nas aldeias, conforme Carlos Fausto. Ele parece, desde já, portar uma
familiaridade intrínseca, talvez por vir sempre acompanhado de humanos
(brancos) e, em certo sentido, ser feito por eles: “criado”, na dupla acepção
da palavra em português (fazer e cuidar). Talvez por isso os Karitiana sustentem
uma diferença notável entre os animais nativos e aqueles introduzidos: estes,
diz-se, “não têm história”, destacando-se que não existiam nos tempos míticos –
o que denominam “tempo antigamente” – e não foram feitos pelos criadores do
universo Karitiana, como aconteceu com os xerimbabos nativos. Vieram “pela mão
dos brancos”, como contam as narrativas dos primeiros encontros de vários dos
homens e mulheres mais idosos, que viram essas curiosas criaturas, pela
primeira vez, na infância, lá pelos anos de 1940.
Assim,
esses animais – exóticos, exógenos, introduzidos – portam uma dupla marca de
estranheza, advinda do fato de terem se apresentado sempre na companhia dos
colonizadores brancos: não partilham da história antiga do povo Karitiana, e não
habitam a floresta (gopit), espaço
por excelência dos animais criados pelo demiurgo Botyj no início de tudo. Estranheza que os Karitiana buscaram
administrar por meio da designação dessas novas espécies de seres, feita a
partir das criaturas que já conheciam: assim, cavalos viraram “veados grandes”
(de ty), bois tornaram-se “antas dos
brancos” (opoko irip’), cachorros,
“onças de criação”, “onças domésticas” (obaky
by’edna). Galinhas, denominadas opok
ako, “o muito dos brancos”,
quer seja, aquilo que os brancos possuem e carregam em abundância, sinaliza
outro tema importante da percepção Karitiana não só desses animais, mas também
dos brancos e de seus bens em geral: a multiplicidade,
ou a capacidade de reproduzir-se de maneira descontrolada e exagerada. De fato,
xerimbabos nativos só muito raramente reproduzem no interior das aldeias;
galinhas, contudo, contrariam essa esterilidade aldeã de forma notável; assim
fazendo, apontam na direção das formas de apropriação contemporânea desses
animais entre numerosos povos indígenas nas terras baixas.
Mulher Tapuia, de Albert Eckhout (1643) pintada no
período da ocupação holandesa do Nordeste. Símbolo da ferocidade e do
caráter diabólico, a presença do cachorro está em consonância com a imagem que
os europeus tinham dos índios do interior nordestino, selvagens e bárbaros em
comparação com os Tupi da costa. A obra também pode sugerir a convivência e
relação próxima existente entre índios e cães – introduzidos com a colonização –
no sertão desde, pelo menos, o século XVII
O
animal doméstico: história e antropologia
A
introdução de animais domesticados de origem exógena em populações indígenas é
uma constante na história do Brasil, intercâmbio inaugurado na própria certidão
de nascimento do Brasil, a carta de Pero Vaz de Caminha, que narra o encontro
entre índios e portugueses no litoral sul da Bahia em abril de 1500, e que
conta como os índios reagiram à aproximação de cabras e galinhas trazidas nas
embarcações europeias. Desde então, esses seres exóticos espalharam-se
rapidamente pelo território nacional, naquilo que o biogeógrafo Alfred Crosby
definiu como “imperialismo ecológico”: a paulatina transformação da biota
nativa em paisagens cada vez mais parecidas com a Europa, colonização movida
pela “pata do boi”, no dizer de Capistrano de Abreu. Conhecemos razoavelmente
bem os mecanismos e os efeitos da “frente de ocupação pastoril” – conforme a
definiu Darcy Ribeiro – mas apenas em suas linhas-mestras; o detalhe
permanece-nos obscuro, e sabemos menos ainda dos modos como a ocupação do
Brasil por esses animais estrangeiros impactou as múltiplas sociedades
indígenas que habitavam, e habitam, a região. Menos ainda se sabe sobre como
esses seres – bovinos, caprinos, suínos, equinos, caninos, galináceos –
ocuparam a Amazônia, dado que, nas áreas de floresta densa, os animais não
podem se mover livremente, dependendo da condução de seres humanos: dado para o
qual atentam os Karitiana, que afirmam ter conhecido esses seres desde sempre
“na companhia dos brancos”. Uma história da ocupação animal da floresta
amazônica ainda está por ser escrita.
Ocupação
cuja face perversa estamos vendo se agravar nos dias correntes, com o avanço da
pecuária sobre a hileia, na última fronteira do processo que tornou o Brasil o
dono do maior rebanho de bois e o maior exportador de carne bovina do planeta.
Este processo de transformação do país em um gigante global do agronegócio tem
sido feito às custas da brutal destruição da Amazônia e da sua transformação em
extensas pastagens.
Vários
povos indígenas na Amazônia – como os Karitiana – e alhures não escapam a essa
febre agropastoril, e vêm, crescentemente, se interessando por projetos de
implementação de criação animal em suas aldeias. Vinculando a introdução da
pecuária a políticas de segurança alimentar e combate à fome e à desnutrição,
os proponentes desses projetos – ligados a esferas estatais e a organizações
não-governamentais – ignoram aspectos importantes da natureza das relações
entre índios e animais. O mecanismo de familiarização – animais tratados como
filhos – acima evocado, por exemplo, traz importantes implicações para a tripla
relação entre animais, povos indígenas e esses novos agentes de formulação e
implantação de políticas públicas. Com efeito, muitos dos projetos destinados
às aldeias indígenas, em seus componentes geração de renda e economia,
preconizam a instalação da criação animal em escalas ampliadas. Esses projetos
desconsideram, ainda, a experiência, pois as perspectivas de sucesso têm se
mostrado, em geral, pífias: colecionam-se fracassos – galinheiros destruídos,
bois abandonados, gramíneas forrageiras invasoras espalhando-se
descontroladamente, abate indiscriminado, desconhecimento técnico – mas as
razões para eles ainda são pouco conhecidas.
Olhar
para a introdução de animais domesticados em povos indígenas nas terras baixas
da América do Sul implica, portanto, também estar atento às inflexões locais de
processos macropolíticos e macroeconômicos. Ademais, questões de saúde pública
(zoonoses) também se colocam, sem falar na reflexão – ainda por fazer, mas mais
do que necessária – sobre a precária condição de muitos desses seres nas
aldeias vis-à-vis à legislação
ambiental e de proteção aos animais do país e os intensos debates, acadêmicos e
leigos, acerca da defesa e da libertação animal.
A
antropologia pode e deve, seguramente, ser uma ferramenta a contribuir com esse
importante conjunto de debates públicos, ao olhar com cuidado para as
modalidades indígenas de constituição das relações entre humanos e animais. O
foco nos afetos, emoções e vínculos, contudo, sugere que um passo a mais deve
ser dado na análise consagrada de taxonomias e de representações indígenas de
seres e da relação com esses mesmos seres. Não o animal como signo, ou símbolo,
mas – conforme defende o antropólogo John Knight – o animal como sujeito, como
partícipe ativo e agente na construção e reconstrução das sociabilidades
comunitárias. Animais e humanos como elementos de um conjunto de laços de
natureza simbiótica, naturezaculturas,
na inspirada sugestão de Donna Haraway. Só assim poderemos compreender melhor o
que é o animal domesticado, esta figura ambígua e complexa entre a natureza e a
cultura ou, como dizem os Karitiana, entre a casa e o mato e entre a aldeia e a
cidade. Assim poderemos avaliar com justeza o papel central que tiveram esses
seres não só na história geral do Novo Mundo, mas nas histórias particulares de
cada um de seus povos nativos.
Para
saber mais:
- “Rebanhos
em aldeias: investigando a introdução de animais domesticados e formas de
criação animal em povos indígenas na Amazônia (Rondônia)”, de Felipe Vander
Velden. Espaço Ameríndio, vol. 5, no.
1, 2011, disponível em http://seer.ufrgs.br/EspacoAmerindio/article/view/16602)
- Número
especial da Revista de História da Biblioteca
Nacional (no. 60, setembro de 2010) dedicado a abordagens
historiográficas sobre os animais, e que traz alguns artigos sobre a introdução
de espécies no Brasil colonial. (disponível apenas para assinantes)
Felipe
Vander Velden é professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de
Pós-Graduação em
Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar). A
tese de doutorado (Inquietas companhias:
sobre os animais de criação entre os Karitiana, Campinas, Unicamp, 2010) de
Felipe Vander Velden, na qual discute aprofundadamente os temas apenas evocados
neste artigo, será publicada, em breve, pela Alameda Casa Editorial.
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