Desde a década de 80, Estados Unidos e Brasil passam por um processo de crescimento astronômico da população carcerária, que pode ser atribuído ao modelo baseado na “tolerância zero” às mínimas infrações. Pobres e negros são maioria nestas estatísticas. Especialistas em sociologia penal afirmam que o aumento da população presa decorre de um crescente apelo por maior rigor punitivo que tomou todo o mundo, conforme os Estados de bem-estar social foram sucumbindo ao neoliberalismo e deixando de oferecer ampla segurança aos cidadãos. Ao mesmo tempo em que cresceu a insegurança social, principalmente para os setores excluídos, também cresceu a sensação de medo e risco da violência na população em geral.
A resposta freqüente do poder público – na figura de legisladores, juizes, policiais – tem sido ampliar a extensão e sofrimento da “pena privativa de liberdade”, além de aprisionar mais gente. A capacidade de contenção do crime destas medidas não se mostra, entretanto, maior do que daquelas mais amenas. No Brasil, por exemplo, parece uma triste ambigüidade que, quanto mais se prende, mais se cria criminosos, desde que as penitenciárias se transformaram em “escolas do crime”. Pesquisadores defendem que penas alternativas são mais eficazes. Prevenir o crime é, contudo, o que mais compensa em termos de segurança pública.
Por que punir?
Não é de se estranhar que uma vítima defenda a punição de um criminoso com rigidez excessiva. Mas o desejo de vingança que qualquer ser humano é passível de ter não é, entretanto, o princípio fundamental que guia o direito penal. Parte do Estado, que detém o monopólio do uso da força, o sistema jurídico, que define o que é crime e como puní-lo, atende a uma lógica de funcionamento coletiva, diferente da individual. “Os argumentos em torno da necessidade de punir ao longo da história são muitos”, explica Nalayne Pinto, pesquisadora de sociologia criminal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “De modo geral, temos: as teorias retribucionistas – a pena deve retribuir o mal causado –; as teorias preventivas – a pena serve para prevenir futuros crimes e intimidar os criminosos –; e as teorias de regeneração, que defendem a ressocialização do preso para transformá-lo em não criminoso”.
Mariana Souza, advogada e pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Controle Penal da Universidade de Brasília (UnB), lembra da chamada “função inoculizadora” das prisões: elas servem para isolar os criminosos e afastá-los dos “cidadãos de bem”. Nalayne Pinto, também partidária da “criminologia crítica”, condena essa função das cadeias de isolar, esconder e re-castigar os já excluídos, “selecionando e separando os ‘indesejáveis', ‘removendo o lixo humano que não se deseja ver', para lembrar as palavras de Zygmunt Bauman”. Esta é, no entanto, a função a que as penitenciárias mais têm servido: tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, negros e pobres são a grande maioria dos prisioneiros. “Na minha visão, e na visão de um crescente número de pessoas, parece claro que a hipótese de que as prisões são instituições para controle das pessoas de cor é de longe mais viável do que a noção de que as prisões são um esforço para prevenir o crime”, afirma Tiyo Salah-El, condenado a trinta anos de reclusão por assassinato nos Estados Unidos. Na cadeia, graduou-se em história da América africana e fez mestrado em ciência política. Num manifesto em favor da abolição das prisões, conclui: “prisões e outros sistemas de punição são para controle social, e não para controle do crime”. Estudo recente divulgado pelo Pew Center on the States revela que, nos EUA, um em cada 15 adultos negros está atrás das grades, e um em cada 36 adultos hispânicos. Quanto às mulheres, uma em cada cem negras com idade entre 35 e 39 anos está presa, enquanto entre as brancas há uma presa para cada 355 nesta faixa etária.
Nalayne Pinto chama a atenção ainda para o caráter social e não objetivo do conceito de crime. A definição dos desvios de comportamento, que são considerados crimes, varia de tempos em tempos e sofre influências culturais. “O que significa que há também divergência no conceito de crime, pois, afinal, o crime não tem existência própria”, afirma a pesquisadora. Segundo ela, são as classes dominantes, as elites e formadores de opinião, que definem o que é crime, selecionam e hierarquizam os crimes, bem como comportamentos a punir e o rigor da punição. Por isso, “a seletividade opera direcionada para os crimes das classes populares e para os comportamentos de grupos estigmatizados”, completa. Exemplos dessa seletividade são os crimes econômicos, contra o bem ou patrimônio público, como a corrupção e o desvio de dinheiro público, os chamados crimes “do colarinho branco”, que têm uma punição muito menos severa do que os crimes violentos, mesmo que prejudiquem e possam até levar à morte muitas pessoas, ainda que indiretamente.
Punindo mais
“O sistema prisional americano passou, nas últimas décadas, por uma inflação carcerária”, diz Nalayne Pinto. Dados de Wacquant trazidos por ela indicam que, de 1981 a 2007, a população carcerária aumentou 628% nos EUA, passando de 369 mil presos para cerca de 2,3 milhões. Fernando Salla, pesquisador do Núcleo de Estudos de Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP), acrescenta outros dados divulgados pelo jornal The New York Times, no final de abril deste ano, que dão a dimensão astronômica desse número. Segundo ele, apesar de os Estados Unidos representarem apenas 5% da população mundial, esses 2,3 milhões de presos correspondem a um quarto da população encarcerada mundial. Há, nos EUA, uma média de 700 presos para cada 100 mil habitantes ou, de outra forma, um preso para cada cem indivíduos adultos. “Estes números dão uma idéia do novo padrão de percepção do crime que se dissemina em todo o mundo a partir dos anos 1970, caracterizado por prisões mais severas e penas mais duradouras, e que encontra nos EUA o seu ponto de apoio mais forte”, comenta Salla.
A inflação carcerária nos EUA seria resultado da criação e alteração de leis e instituições da justiça criminal, da recolocação da pena de morte no debate público, do aumento dos contingentes policiais e da adoção de programas de policiamento urbano conhecidos como “Tolerância zero”, tal como o da cidade de Nova Iorque. Seguindo esse modelo, passou-se a impor um controle rígido sobre as ilegalidades populares, principalmente para controle de drogas, cujos crimes não são os mais severos. Foram adotados mecanismos sofisticados de imposição das punições legais (como pulseiras eletrônicas), restrições à liberdade de locomoção e privatização dos serviços de segurança. Salla adverte para o perigo de transferir para uma empresa privada uma função que é eminentemente do poder público. Quando o crime se torna um negócio e em torno dele se cria uma indústria, “qual o interesse em reduzir o crime, se há vários interesses privados que dele se beneficiam?”, pergunta o pesquisador.
No Brasil, a situação não é muito diferente. Segundo Nalayne Pinto, em 1990 havia 90 mil presos no país, número que saltou para cerca de 442,5 mil em 2007, representando um aumento de 468% no período. “Em ambos os casos, assistimos, nos últimos anos, a um recrudescimento penal que encarcerou como nunca antes na história recente do Ocidente”, comenta. A diferença é que os EUA investiram mais no orçamento para o sistema prisional, com aumento do número de penitenciárias (inclusive com a privatização das estaduais, que geram lucros para seus investidores). Já no Brasil, exceto nos últimos cinco anos, quando foram criadas prisões federais, o contingente aumentado de presos foi alocado nas já lotadas penitenciárias, sob condições que se tornaram ainda mais precárias, “gerando sérias violações aos direitos humanos, como doenças, violações sexuais, mortes e torturas, e resultando em rebeliões constantemente”, conclui Nalayne. Aqui, a pena privativa de liberdade, prevista em lei, acaba sendo reforçada pelo sofrimento causado pelas péssimas condições de vida a que são submetidos os presos nas cadeias superlotadas. Apesar disso, as demandas pelo respeito aos direitos humanos têm encontrado algum eco. Agentes penitenciários de Presidente Venceslau, no estado de São Paulo, por exemplo, mostram-se sensíveis a eles em seu cotidiano de trabalho. “Nós estamos aqui para servir o cidadão, o que implica numa maneira diferenciada de atendimento, de se direcionar às pessoas”, comenta uma agente.
Por outro lado, tanto aqui como nos EUA se intensificaram as ações de “aprisionamento dos pequenos traficantes de rua, o ´avião` ou o ´estica` na gíria brasileira”, acrescenta a pesquisadora. O major da Polícia Militar do Rio Grande do Sul, André Woloszyn, especialista em terrorismo pelo Colégio Interamericano de Defesa (EUA), concorda com a adoção de tais medidas. Segundo ele, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo (14/04/2008), “o programa Tolerância zero na cidade de Nova Iorque conseguiu reduzir em 46% a prática de delitos baseado no princípio do rigorismo penal e na constatação de que delitos de menor gravidade, se não duramente combatidos, acabam se transformando em crimes de natureza grave”. Já os outros três pesquisadores entrevistados discordam dessa análise sobre a eficácia do rigor punitivo. Eles destacam que “não é a quantidade ou o rigor da pena que geram efeito de coibição ao crime, mas a certeza da punição”. Segundo Souza, “estudo do Instituto Latino-americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (Ilanud), divulgado em 2006, revelou que o endurecimento da legislação penal não inibe a prática de crimes”.
Evolução do número de presos nos EUA e Brasil (1980-2007)
Ano |
EUA |
Ano |
Brasil |
1981 |
369.000 |
1985 |
39.609 |
1991 |
824.000 |
1990 |
90.000 |
2007 |
2.319.000 |
2007 |
422.509 |
Fonte: Wacquant, Loïc. Punir os pobres. Nalayne Pinto (dados do Ministério da Justiça)
Existem outras medidas que indicam o endurecimento do rigor penal no Brasil durante os anos 90. As principais delas foram a aprovação da lei do crime organizado, a nova lei de drogas, a lei que cria o regime disciplinar diferenciado e a lei de crimes hediondos, que restringe garantias constitucionais aos acusados e condenados por tais crimes, como o direito à liberdade provisória e o direito à progressão de regime (do fechado para o semi-aberto e deste para o aberto, a fim de atender ao princípio da recuperação e ressocialização dos presos). Um levantamento das leis aprovadas em 2007 e dos projetos de lei em discussão no Congresso, referentes à política prisional, realizado por Souza, revelou “mudanças na legislação penal, processual penal e de execução penal, no sentido de aumentar o rol das condutas criminalizáveis, prever punições mais severas do que as prescritas anteriormente, reduzir garantias antes consagradas aos acusados de práticas criminosas, restringir direitos dos já condenados, prevendo-se um sistema cada vez mais rígido de execução da pena e ampliando ainda mais o poder de perseguir e de punir do Estado”.
Outro estudo, realizado por Alessandra Teixeira e Eliana Bordini para a Fundação Seade, revela que é muito baixo o percentual de presos que obtêm os benefícios da liberdade condicional e da progressão de regime previstos pela Lei de Execução Penal (LEP), de 1984, considerada uma lei liberal e garantista. Na vara das execuções penais da capital paulista, em 2002, apenas 54% dos presos pediram a progressão de regime e, destes, apenas 22,1% a obtiveram, sendo que 72,5% destes presos já haviam cumprido mais de um terço da pena, um lapso de tempo muito maior que o previsto na lei para concessão desse direito, que é de um sexto da pena. Embora o senso comum proclame que o sistema de execução penal é benevolente e liberta os presos precocemente, as pesquisadoras afirmam que, ao contrário, “o sistema de justiça criminal, notadamente enquanto executor da pena, opera na qualidade de aplicador de um plus punitivo, ao relativizar ao máximo os direitos previstos em lei para os condenados, adotando uma postura altamente repressiva, revelada pelos ínfimos percentuais de benefícios concedidos”.
Por que punir mais?
Para Fernando Salla, a disseminação do discurso da “tolerância zero” e da “lei e ordem” está relacionada à ascensão do conservadorismo nos EUA, à globalização, ao neoliberalismo e à crise do Estado de Bem-Estar Social. Enquanto nos anos 1950-70 as políticas punitivas eram voltadas à reintegração do criminoso à sociedade, com base na prevalência da visão de que a sociedade devia assumir a responsabilidade sobre os crimes, a partir dos anos 70, conforme o Estado deixou de investir nas políticas sociais, a sociedade também deixou de se responsabilizar pelos crimes, e os criminosos passaram a ser considerados culpados individualmente. Teríamos passado de um Estado de Bem-Estar para um Estado penal ou policial, em que o crime sai da agenda da solidariedade e passa para a da ordem. Além disso, o aumento dos crimes violentos, a corrupção endêmica, a impunidade e a difusão de uma imagem crescente de insegurança e violência pela mídia, bem como o decorrente acúmulo da sensação de medo também aparecem como fatores de estímulo aos apelos por maior rigor punitivo.
Penas alternativas, entretanto, são vistas pelos pesquisadores como mais eficazes no combate ao crime. “Todos os lugares do mundo que usam outros mecanismos punitivos, como restrição de direitos e trabalho comunitário, acabam por controlar as pressões por aumento das prisões”, analisa Salla. “A França, por exemplo, em dez anos teve um crescimento de apenas 10% da população encarcerada (de 50 mil para 54 mil). No Brasil, o encarceramento está crescendo a essas mesmas taxas ao ano”, contrasta. As penas alternativas diminuem também o índice de reincidência.
Para Nalayne Pinto, “se as políticas de prevenção ao crime não forem prioridade dos estados e até do governo federal, não teremos redução da criminalidade. As políticas repressivas já se mostraram ineficazes há muito tempo. É preciso investir maciçamente nas formas preventivas: no policiamento comunitário, na formação e capacitação policial, na investigação policial e nas perícias, assim como na inserção dos jovens em projetos sociais (os mais vulneráveis à vida no crime hoje)”, finaliza.
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