No
cenário mundial da produção cinematográfica, os Festivais Internacionais de
Cinema exercem um papel fundamental ao, anualmente, receber, selecionar, exibir
e premiar os melhores filmes disponíveis naquele cenário e exibi-los, portanto,
numa vitrine privilegiada – são os festivais que primeiro revelam
cinematografias de destaque, apontam talentos e tendências da arte do cinema,
acolhem diversidades e jogam luz sobre produções que talvez nem chegassem ao
circuito comercial se não passassem pelas suas disputadas salas.
A
tarefa de analisar e classificar centenas de filmes ano a ano, com o
compromisso de selecionar as produções que mais se destacam, de oferecer
oportunidades iguais a países e gêneros, não é nada simples. Envolve critérios
objetivos e subjetivos, equipes alinhadas e centenas e centenas de horas em
frente a uma tela de cinema – essa é a rotina e o desafio dos festivais – em
particular o Festival de Cinema de Sundance (Janeiro/Estados Unidos), o
Festival Internacional de Cinema de Berlim (Fevereiro/Alemanha), o Festival
Internacional de Cinema de Cannes (Maio/França), o Festival Internacional de
Cinema de Veneza (Agosto/Itália) e o Festival Internacional de Cinema de
Toronto (Setembro/Estados Unidos), que desenham, com suas premiações, uma
curiosa geografia da produção internacional.
No
Brasil, graças aos dois maiores festivais internacionais de cinema que
acontecem no segundo semestre, a tradicional Mostra Internacional de Cinema de
São Paulo – Mostra SP, em outubro e novembro, que este ano completou 40 anos, e
o Festival do Rio, em setembro/outubro, que teve sua 18ª edição em 1996, o
público brasileiro tem oportunidade de entrar em contato com uma parte
significativa dessa produção internacional.
A
diretora da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (MostraSP), Renata de
Almeida, ao dar sua visão das premiações, destaca que elas são importantes, mas
há algo ainda mais relevante, para ela, na exibição de mais de 300 filmes que
costumam constar da programação do evento anual: “Quando faço o fechamento dos
filmes da Mostra SP, eu quero que todos eles tenham sucesso. Afinal, já
passaram por uma seleção rigorosa, então quanto mais holofotes sobre eles, mais
chances de serem vistos, e é isso que a gente quer. Os festivais são espaços
que se abrem para os filmes, que lhes dão oportunidades de serem vistos. Nessa
edição de 40 anos da Mostra SP, por exemplo, El amparo, de Rober Calzadilla, da Venezuela, ganhou como Melhor
Filme do Júri, quando havia filmes concorrentes de outros festivais, como 24 semanas, da Alemanha, que concorreu
em Berlim; Tramontaine, coprodução
entre Líbano e França, que estava na Semana da Crítica em Cannes; ou Heartstone, coprodução entre Finlândia e
Dinamarca, que concorreu em Veneza. Para mim, tanto faz quem é premiado, porque
o meu objetivo é dar os destaques da produção internacional do ano e ajudar ao
máximo todos os filmes”. Imagem 1. Arte do pôster é criação do
cineasta italiano Marco Belocchio, especialmente para 40ª Mostra de
Internacional de Cinema de São Paulo. Créditos: divulgação. Geografia das premiações
Há uma grande
concentração geográfica de filmes exibidos em circuitos comerciais, nos Estados
Unidos, Canadá, China e Japão, segundo levantamento realizado pela Unesco, publicado em
2015. Esse contexto de exibição de produções cinematográficas, no entanto, não
se reflete no conjunto das premiações de maior destaque dos cinco principais festivais
internacionais de cinema, que costumam premiar, além dos países da América do Norte
e Ásia, principalmente Europa. Quando apenas o número de produções é analisado
nos dados da Unesco, Índia, China, Japão e Estados Unidos, produzem mais de 200
filmes ao ano. Grande parte do continente africano sequer apresenta dados de
produção de filmes, e países da Oceania, América Central e do Sul (com exceção
do Brasil e da Argentina) têm uma produção que parte do incipiente e chega a,
no máximo, 60 filmes ao ano. Imagem 2. Mapa mundial da produção de filmes. Fonte:
Unesco Institute for Statistics, 2015. Nem sempre, porém,
quantidade traduz-se em qualidade, e quando essa lógica é aplicada à arte, ao
cinema, menos ainda, como fica evidente, por exemplo, com as premiações da Federação
Internacional dos Críticos de Cinema (do inglês International Federation of Film Critics – FIPRESCI). A Federação concede prêmios específicos
nos festivais internacionais de Cannes, Berlim, Veneza, Toronto e Rio de
Janeiro. Entre 2011 e 2016 os prêmios distribuíram-se majoritariamente entre a
Europa, Ásia e América do Norte, com exceção da premiação no Rio de Janeiro, que
contemplou Viejo Calavera (Bolívia,
2016), Te prometo anarquia (México, 2015), Obra
(Brasil, 2014), Tatuagem (Brasil,
2013), Nosilatiaj - la belleza
(Argentina, 2012) e Sudoeste (Brasil,
2011). No mesmo período, o Prêmio
do Júri do Festival de Cinema de Sundance, apesar da grande diversidade continental,
não contemplou países africanos, enquanto o Prêmio de Público premiou esses
países em 2011 (Kinyarwanda, Ruanda e
Estados Unidos) e 2014 (Difret,
Etiópia). Em Berlim, nos últimos cinco anos, alguns dos principais prêmios do
júri, como o Urso de Ouro e o Urso de Prata, também não premiaram nenhum país
da África ou Oceania; a América do Sul foi premiada uma única vez, com o filme O clube (Chile, 2015). África e Oceania
também são ausências sentidas na Palma de Ouro (2011-2016) em Cannes, que
premiou o Eu, Daniel Blake (Reino
Unido, 2016), mesma nacionalidade do Prêmio do Júri do mesmo ano, American honey. Em Veneza, o prêmio Leão
de Ouro para melhor filme contemplou A mulher
que se foi (Filipinas, 2016) e De longe
te observo (Venezuela e México, 2015), enquanto o Prêmio Leão de Prata do
Júri premiou Cães errantes (China e
França, 2013) e Animais noturnos
(EUA, 2016). Quando filmes premiados
nos festivais internacionais, mais voltados para a produção independente,
também são reconhecidos pelo Oscar, o grande evento da indústria do cinema, isso
pode resultar em um aumento de inscrições. O Festival de Cinema de Cannes viu o número de filmes da seleção oficial passar de 69
para 134 em vinte anos, como consequência de premiar produções que foram também
contempladas com o Oscar - Pulp fiction: tempo
de violência, de Quentin Tarantino (1994), Oscar de 1995; O pianista (2002), de Roman Polanski,
Oscar de Melhor Ator (2002). Há mais de trinta anos esse
fenômeno vem acontecendo em Sundance. Mas em
2015, após premiar Boyhood (Estados
Unidos, 2014) e Whiplash (Estados
Unidos, 2015), que subsequentemente, venceram o Oscar, o festival recebeu
12.729 inscrições de filmes, segundo o cineasta e ator Robert Redford, fundador do festival, que resultaram
na seleção de 123 títulos na programação oficial do evento.
Fenômeno similar
aconteceu com o Festival Internacional de Cinema de Toronto, os vencedores do
prêmio de público - People’s Choice Award: O
artista (França, 2011), 12 anos de escravidão
(EUA e Reino Unido, 2013) e O jogo da
imitação (EUA e Reino Unido, 2014),
sendo depois vencedores da categoria de Melhor Filme no Oscar de seus
respectivos anos. Em 2011, o festival recebeu 3.461 submissões, das quais foram
escolhidos 268 filmes. Em 2016 foram 6.933 submissões e 296 filmes selecionados.
É inegável, no entanto, que a produção internacional de cinema tem crescido a
passos largos nas últimas décadas, e o aumento de inscrições para os festivais
internacionais também é um indício desse fato. Imagem 3. Grand Théâtre Lumiere. Premiação de gala na
edição deste ano de Cannes. Créditos: divulgação. Razão
e Emoção Festivais
apresentam regras objetivas e específicas, como acontece em Sundance, que define como filmes internacionais
aqueles que receberam financiamento superior a
50% de fontes fora dos Estados Unidos, e Berlim, que estabelece que filmes de nacionalidade alemã devem
ser estreias mundiais. O
processo de escolha dos filmes requer colaboração do time de programação. Renata
de Almeida, da MostraSP, explica que esse ano o evento chegou a 1400 filmes
inscritos, e foram exibidos 322, de 50 países. “É humanamente impossível uma
pessoa ver 1400 filmes. Temos uma equipe que assiste, faz relatório, uma
pesquisa e uma defesa do filme”. Frauke
Greiner, diretora de publicidade do Festival Internacional de Cinema de Berlim
explica que “o processo de seleção começa no verão europeu e vai até janeiro.
Cada seção de exibição tem um comitê de pré-seleção, e as decisões artísticas
finais são feitas pelo diretor do festival (para a Competition e Berlinale
Special) e diretores de cada uma das outras seções, como Panorama, Berlinale
Shorts, Forum e Special Presentations”. Greiner informou que não divulga os
critérios de seleção dos filmes de Berlim. O
processo de seleção e de curadoria dos festivais é meticuloso e resulta em
vários desdobramentos para o público e a indústria. A curadoria está
sintonizada com a missão de cada festival. “Desde as suas origens, o Festival
de Cannes é fiel à sua vocação fundadora: revelar e valorizar obras para servir
à evolução do cinema, favorecer o desenvolvimento da indústria do filme no
mundo e celebrar a 7ª arte a nível internacional”, é a missão do evento há mais
de seis décadas. Segundo a direção do Festival de Cinema de Sundance, “a cada
ano, nós construímos um programa para o Festival que celebra o espírito
independente de histórias diversas, interessantes e originais. Projetos que
empurram os limites do estilo e da narrativa fazem nossos olhos brilharem, mas
não existe uma única estética ou gênero que procuremos em detrimento de
qualquer outro”, o que infelizmente, pode ocasionar o não reconhecimento do
mérito das produções. Apesar
de os festivais cercarem-se de regras, os critérios são também subjetivos. Na
Mostra SP, por exemplo, há uma constante busca em equilibrar a programação com
filmes premiados em outros festivais, diretores de destaque e novidades. “Há um
elemento pessoal, relacionado ao que o evento vai abordar naquele ano, mais jornalístico,
digamos, que também é muito importante. Nessa 40ª edição da Mostra SP exibimos
muitos filmes que tratavam da questão dos refugiados, foi proposital. Um dos
membros da nossa equipe de seleção pode até não escolher um filme indicado ao
Oscar, mas ele certamente vai gerar curiosidade no público, e esse também é um
critério nosso. Então, esse último olhar sobre a programação da Mostra é meu”,
explica Almeida. O
júri, via de regra escolhido de cinco nacionalidades diferentes, na MostraSP, e
“dentre indivíduos da comunidade global de artes, cada um dos quais traz uma
perspectiva única e uma gama de experiência”, como explica a direção de
Sundance, representam bem esse encontro entre o objetivo e subjetivo, presente
na curadoria da programação anual de cada evento.
Há
elementos técnicos de avaliação dos filmes para a definição da programação de
cada um desses cinco festivais internacionais, que juntos exibem uma média de
1.500 filmes em cada edição. Mas, ao contrário da Netflix que usa – polêmicos –
algoritmos para escolher a programação do usuário, o processo de curadoria é
essencialmente humano. Almeida explica ainda que “o filme só está completo
quando chega até alguém que o verá de uma maneira diferente da minha. Tem o seu
histórico de vida, vai tocar de uma maneira diferente do que vai me tocar. E
tem um lado também na seleção dos filmes da Mostra SP que é ‘me apaixonei por
tal filme, adorei, acabou’. ”
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