No início deste ano o primeiro
ministro britânico Tony Blair se envolveu numa polêmica ao declarar que
não pretende deixar de viajar de avião para diminuir as emissões de
carbono na atmosfera. E mais, ele considera impraticável estabelecer
metas individuais para amenizar os efeitos das mudanças climáticas.
Para o primeiro ministro, a solução deve vir de pesquisas que tornem os
aviões mais eficientes e menos poluentes. Blair aposta, portanto, na
ciência e não na mudança dos padrões de comportamento para diminuir a
pegada ecológica da humanidade no planeta. Mas o que nos leva a pensar
a atitude de uma autoridade como Blair? Que conter os efeitos das
mudanças do clima anunciadas em fevereiro pelo Painel
Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU, dependerá
apenas de mudanças em larga escala? Qual o peso do comportamento de
cada indivíduo para frear o aquecimento global?
Segundo dados do relatório Planeta
Vivo 2006, publicado pela ONG WWF a pegada ecológica – medida que
indica o impacto da atividade humana no planeta – mais que triplicou
desde 1961, superando a capacidade de regeneração do ambiente em
aproximadamente 25%. “Excedemos a capacidade de a Terra suportar nosso
estilo de vida e é necessário parar. Precisamos equilibrar nosso
consumo e reduzir os resíduos. Caso contrário, corremos o risco de
danos irreparáveis”, alerta Jim Leape, diretor geral do WWF
Internacional, no texto que introduz o relatório.
A pegada ecológica produzida pelo
avião é profunda porque as aeronaves são bem mais poluentes do que o
carro. Um único vôo emite mais carbono do que meses de viagens num
carro esportivo, por exemplo, mesmo sendo esse um dos tipos mais
poluentes de automóvel. Mostrando uma preocupação maior com a questão
do que Tony Blair, o ministro da economia da Inglaterra, Gordon Brown,
duplicou a taxa de embarque paga pelos passageiros britânicos que,
entretanto, pareceram não se incomodar em pagar mais para viajar de
avião, mesmo nos vôos curtos, e tampouco que entenderam a verdadeira
intenção da medida.
Aviões e carros são parte de uma
mudança nos modos de locomoção humana, decorrente da revolução
industrial. “É difícil negar direitos adquiridos pela sociedade ao
longo da história. A mobilidade foi uma conquista da humanidade”,
defende Karen Suassuna, técnica em mudanças climáticas do WWF-Brasil.
“Não podemos frustrar as pessoas. A participação de cada indivíduo é
essencial na questão das mudanças climáticas, mas, na verdade, medidas
para uma vida sustentável acontecem tanto do lado do governo quanto do
lado dos indivíduos”, acredita. Para ela não adianta pedir para as
pessoas trocarem seus carros pela bicicleta se elas vão arriscar a vida
ao fazer isso. Nesse sentido, a primeira atitude para uma vida mais
sustentável é exigir a melhoria do transporte público ou a construção
de ciclovias.
Criando opções de mobilidade
Para Miriam Duailibi, presidente do
Instituto Ecoar para Cidadania, que trabalha com educação ambiental, o
engajamento dos indivíduos em uma questão tão urgente como a do
aquecimento global, cujas conseqüências afetam a todos, em todos os
cantos do planeta, é fundamental. Ela diz que pequenas atitudes
cotidianas, como reciclar lixo ou plantar algumas mudas de árvores são
insuficientes, dada a gravidade do problema, mas nem por isso não devem
ser tomadas. “É bom lembrar que todas as grandes mudanças na história
da humanidade vieram de movimentos sociais: os direitos trabalhistas,
os direitos das mulheres, dos negros, dos consumidores, das minorias e
também as conquistas em relação à preservação ambiental”, diz. “Podemos
também atuar enquanto investidores, não comprando ações de empresas que
não sejam socioambientalmente corretas e, enquanto eleitores,
pressionando os gestores públicos e nossos representantes no
legislativo para que se comprometam com políticas radicais de
diminuição de emissões, especialmente no que diz respeito ao transporte
público”, completa. Anualmente um carro médio emite na atmosfera cinco
toneladas de dióxido de carbono, sendo responsável por 60 a 80% da
poluição atmosférica dos centros urbanos. O tráfego de veículos em
nossas cidades é responsável por cerca de 80% do ruído urbano. Cinco
mil bicicletas em circulação representam 6,5 toneladas a menos de
poluentes no ar, dez bicicletas estacionadas ocupam a vaga de um
automóvel e cinco bicicletas em movimento ocupam o espaço de um
automóvel.
Na mesma linha, Nazareno Stanislau
Affonso, urbanista e atual diretor da Associação Nacional do Transporte
Público (ANTP) acredita que as ações individuais são capazes de gerar
um movimento de opinião pública e, a partir daí, provocar mudanças. Ao
mesmo tempo, entretanto, ele defende a criação de obstáculos para
disciplinar o uso individual do automóvel. Em Singapura, na Ásia, há um
pedágio urbano permanente, com tarifas que variam de acordo com a hora
do dia e são bastante pesadas nos horários de pico. Em Bogotá,
Colômbia, a gasolina foi sobretaxada em 20%. Metade do que é auferido
com o tributo é destinado à expansão do transporte público, a outra
metade deve ir para melhorias das vias públicas dos bairros pobres.
Essa política de investimento tem o compromisso de fazer com que em
2015 os automóveis não circulem nos horários de pico em toda a cidade.
“Pesquisas referentes às cidades brasileiras mostram que nas vias em
que circulam o transporte coletivo, o espaço destinado para os ônibus
varia de 10 a 30% do total, chegando ao valor máximo apenas em Curitiba
e Porto Alegre, que efetivamente têm políticas públicas municipais de
favorecimento dos corredores de transporte público sobre pneus”,
explica Affonso, criador da ONG Ruaviva que trouxe para o Brasil a
campanha “Na cidade sem meu carro”, que acontece mundialmente no dia 22 de setembro.
O movimento foi criado em 1998 na
França. Dois anos depois surgiu o “Dia europeu sem carros”. O Brasil
aderiu em 2001. Nas cidades brasileiras que participam, foram 37 no ano
passado, a prefeitura delimita o perímetro urbano onde é permitida
apenas a entrada de veículos essenciais, transportes públicos e
bicicletas. O objetivo é promover a reflexão sobre uma cidade mais
justa e agradável, onde o indivíduo seja visto como agente prioritário
e a rua possa voltar a ser um ambiente de convivência e lazer. “No
Brasil e no mundo, um processo histórico fez do carro agente
prioritário do sistema de mobilidade das grandes cidades. Assim, ao
longo dos anos foram feitos grandes investimentos para sustentar o
automóvel como principal meio de transporte. Há também o poder
persuasivo da mídia a serviço da indústria automobilística, que coloca
o carro como símbolo de status e conforto”, explica Débora Regina
Possa, geógrafa do Instituto Ruaviva. “Diante desse quadro o transporte
público e coletivo ficou em segundo plano”, completa. Além da mudança
de comportamento, Nazareno Affonso defende uma mudança conceitual, “No
senso comum a idéia é de que a solução está no automóvel e que
transporte público é coisa para pobre”, lamenta o urbanista.
Educação para o consumo
A mensagem do relatório do IPCC é
clara, o planeta não tem recursos suficientes para sustentar os atuais
níveis de consumo. “Não só o consumo de água e energia, mas também de
produtos industrializados e de embalagens. Muito do que consumimos são
coisas totalmente dispensáveis”, alerta Duailibi. Em artigo publicado
no livro Meio Ambiente no Século 21, de 2003, o ambientalista Fábio
Feldmann diz que se a China atingisse a média de um ou dois carros em
cada garagem, como nos EUA, eles consumiriam 80 milhões de barris de
petróleo por dia, quantidade maior do que o total da produção
atualmente. Feldmann foi quem instituiu o rodízio de veículos na cidade
de São Paulo em 1996, quando era secretário estadual do meio ambiente.
O rodízio surgiu como solução de emergência para enfrentar o
agravamento da poluição no inverno na capital paulista. Hoje, ao
contrário da época em que foi instituída, a obrigatoriedade de deixar o
carro em casa um dia na semana conta com ampla aprovação da população.
Na verdade, mais do que combater um problema ambiental, o rodízio
existe porque há carros demais em São Paulo e os congestionamentos se
tornaram inevitáveis. “Estamos diante de um dos maiores desafios do
mundo moderno, que é controlar o consumo. Enquanto muitos consideram a
aquisição de bens como um direito pessoal, é preciso salientar que esse
mesmo direito pode afetar a qualidade de vida de maneira geral. No fim
das contas, entendo que o rodízio teve o mérito de introduzir a idéia
de que parte das deficiências de infra-estrutura (no caso, o sistema
viário) pode ser resolvida com mudanças de comportamento. Nos fins de
semana, os paulistanos lotam as estradas em direção à praia. Se fosse
feito um rodízio de carros para descer ao litoral, com horários
determinados segundo as placas dos carros, a ampliação da Rodovia dos
Imigrantes seria desnecessária. Milhões de reais seriam economizados”,
disse o ambientalista em entrevista à revista Veja, de 28 de ferereiro
deste ano.
Mudar padrões de consumo e
comportamento não é um objetivo fácil de ser alcançado. “Precisamos
readquirir velhos e bons hábitos como o de carregar uma sacola de
compras, reutilizar roupas, objetos, tecidos, embalagens, caminhar ao
ar livre etc.”, sugere Duailibi. Para ela a questão do aquecimento
global, conhecida há mais de uma década, vinha sendo mantida restrita à
academia, governos e especialistas. “Somente agora, com a aceleração
das mudanças climáticas, a imprensa começou a se interessar pelo tema,
e este drama planetário chegou ao conhecimento da população. Mesmo
assim, por ser um assunto complexo, as pessoas ainda estão confusas,
elas não percebem facilmente a relação entre seu modo de viver,
produzir, se locomover, consumir e descartar com o aquecimento”,
afirma. “Precisamos, com urgência, de um vasto e amplo programa de
educação ambiental, não apenas em escolas, mas usando todos os recursos
da mídia, com o objetivo de expor à população a gravidade da questão,
sem catastrofismos antipedagógicos, mas apontando caminhos, exemplos,
aprofundando a discussão como forma de mobilização nacional”, completa.
Na opinião de Duailibi temos a nosso favor um grande know-how em
campanhas de massa aliada a uma publicidade criativa e uma mídia
influente. Karen Suassuna, do WWF-Brasil, concorda com ela: “A
experiência com o apagão em 2001, mostrou que o brasileiro responde
muito bem a campanhas de conscientização sobre o consumo”, diz. Por
causa das campanhas daquela época, hoje todos sabem a vantagem das
lâmpadas fluorescentes em relação às incandescentes, assim como o
consumidor aprendeu a identificar o padrão de consumo de energia de uma
geladeira.
Segundo dados do WWF, pequenas ações
individuais podem efetivamente reduzir até um terço das emissões de
gases do efeito estufa. O site da ONG traz uma lista delas: calibrar os
pneus do carro para evitar o consumo excessivo de gasolina; desligar as
luzes dos ambientes que não estão sendo utilizados, retirar da tomada
os aparelhos em stand-by; dar preferência a frutas da estação para
diminuir os gastos com transporte etc. No caso específico do Brasil,
onde o principal causador de emissões de gases causadores do efeito
estufa é o desmatamento, Suassuna lembra que já é possível exigir o
selo FSC (sigla em inglês para Conselho de Manejo Florestal), que
garante que a madeira foi retirada corretamente. “Quanto mais
incentivarmos o manejo sustentável, menores serão os incentivos para
desmatar”, afirma ela.
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