10/10/2007
“Senhor cidadão, eu quero saber com quantos quilos de medo se faz uma tradição”. O filme A Vila (2004) poderia ser resumido nesta sonora frase de uma música de Tom Zé. Dirigido por Manoj Nelliattu Shyamalan, mais conhecido por M. Night Shyamalan, A Vila conta a estória de um grupo de pessoas que vive num vilarejo na Pennsylvania cercado por uma floresta. A primeira cena, que se inicia com um enterro, conta ao expectador que estamos no ano de 1897, mas como em outros filmes deste diretor, nada é o que de fato se apresenta a primeira vista.
E logo de início, o que se coloca é que na floresta vivem seres monstruosos e conhecidos por “aqueles de quem não podemos falar”. Assim, a floresta e seus monstros compõem o limite que os habitantes da vila não podem transpor. Limites dados pelo medo, que são reforçados por um rígido sistema de valores e crenças, disseminado entre os habitantes, e controlado pelos anciãos do lugar.
Há uma cor, por exemplo, que é proibida, pois atrai os monstros, e também existem atemorizantes estórias contadas para as crianças sobre eles, brincadeiras entre adolescentes que testam sua coragem, oferendas feitas para apaziguar uma possível ira desses seres. Enfim, toda a vida das pessoas é atravessada por essa relação tácita com os monstros. Aliás, isso que surge como um silêncio: aquilo do que não podemos falar, é de fato dito o tempo todo de mil outras formas. Os anciãos, como dirigentes do lugar, são consultados em reuniões rotineiras pelos mais diversos motivos. Eles são como uma lei viva deste lugar, manifestam-se sobre o que deve e o que não deve ser feito em todos os aspectos da vida cotidiana e, em prol da segurança de todos, proíbem os habitantes de entrar na floresta.
Enquanto estão no vilarejo, as pessoas estão potencialmente seguras. Em toda extensão do limite entre esse local e a floresta há bandeiras demarcando o território e, em alguns pontos, há guaritas e sentinelas que avisam caso a fronteira seja transposta. Dizem as estórias dos anciãos que há muito os monstros não adentram o vilarejo. Há uma espécie de pacto entre eles, a vila não é invadida e os habitantes não são aterrorizados, desde que não adentrem a floresta. E cada um permanece então dentro de seu próprio terreno.
Mas mais do que isso, é quase como se não houvesse porque sair de dentro do vilarejo, ali não há dinheiro, não há pobreza, os alimentos e bens são repartidos entre os habitantes, não há violência, não há crime, as pessoas vivem em completa harmonia, num ambiente bucólico, como numa utopia realizada. Mesmo a morte de um dos habitantes no início do filme, que poderia ter sido evitada caso atravessassem a floresta em busca de medicamentos, não é um motivo forte o suficiente para romper essa estrutura social, causar revolta ou uma tentativa de enfrentar “aqueles de quem não podemos falar”.
O cenário modifica-se quando o personagem Lucius Hunt começa a insistir com os anciãos para atravessar a floresta. Um série de eventos estranhos passam a ocorrer, como avisos permanentes do limite intransponível, da manutenção da ordem. Mas apesar disso, esse não é um filme de terror, e apesar de pecar pela banalidade, toca em características importantes da nossa atualidade.
Diferente tanto de Sinais, como de O sexto sentido, este filme não tem um grande segredo que seja a chave do filme, não há a existência de espíritos ou alienígenas, por exemplo. Os monstros estão ali nos discursos, nos rituais, nas estórias e na prática de cotidiana de tudo o que ocorre, guardam as fronteiras as quais não devem ser jamais ultrapassadas, marcando toda a vida social daquela comunidade. Mas de fato, os monstros são apenas representantes da manutenção e proteção da fronteira, eles são mais ou menos como as estórias ou músicas infantis, que amedrontam para conseguir um determinado resultado de comportamento.
Assim, se há algo que pode ser interessante nessa trama banal é questionar: Quais são os monstros que guardam hoje nossas fronteiras? Como nos relacionamos com o que é exterior e com o outro? Que preço pagamos pela manutenção de uma pretensa segurança?
No decorrer do filme, descobrimos que o ano é 1987 e que os anciãos que formaram aquela vila recolheram-se ali porque tinham em comum eventos trágicos e violentos típicos das grandes cidades. Vítimas de assaltos, ou próximos de pessoas que foram assassinadas, os anciãos estão no meio de uma reserva natural, a tal utopia não realizada, que não precisa mais conviver com tudo aquilo que pode representar os malefícios das metrópoles.
Assim, atemorizados pelo que seriam os monstros dessas grandes cidades, fecham-se num ambiente isolado, e passam a criar seus filhos numa tradição que não apenas provém do medo, mas mantém-se por meio dessa sensação. Na parte externa do vilarejo, o jogo não é muito diferente e um jipe da segurança do parque cuida para que ninguém adentre os limites da floresta. A cena em que ocorre o diálogo entre os guardas florestais dá então esse toque interessante ao filme, afinal é necessário pescar e cutucar o telespectador, que está muito mais próximo do lado externo da floresta.
Mesmo que a pretensão aqui não seja discutir a caracterização apressada de “cultura do medo”, argumentada pelo sociólogo norte-americano Barry Glassner, vale lembrar que sua idéia adquiriu muita visibilidade após Tiros em Columbine e Fahrenheit 11 de setembro, do documentarista e cineasta Michael Moore. A Vila parece tentar retomar esse tipo de discussão, mas traz ainda a possibilidade de que os monstros que guardam nossas fronteiras sociais, sejam algo construído, inventado para manutenção de determinados tipos de condutas.
O interessante do medo estar vinculado a algo considerado imaginário, como os monstros, é refletir não apenas sobre sua invenção, sobre os limites que postulam, mas sobre como passam a nos integrar, seja na forma daquilo de que não se fala, ou nesse outro estranho que passa a ser monstruosidade.
Em tempos em que as fronteiras são tão fluidas e ao mesmo tempo tão lembradas nas viagens internacionais, nas câmeras de vigilância nas cidades, nas cercas elétricas e alarmes A Vila torna-se interessante para auto-reflexão, questionamento e estranhamento de uma estrutura que já é própria da nossa sociedade. Numa época em que há tantos mecanismos criados supondo auto proteção e segurança, em que o medo é um sentimento constantemente acionado para produzir e legitimar tais mecanismos, até mesmo um filme banal como este, pode servir para nos tirar do torpor.
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