O ideal
do homem “belo e bom”, kalos kai agathos,
na clássica formulação grega, é parte integral da visão de mundo antiga: o
mundo é visto como harmonia, beleza, em uma palavra, como cosmos, e esta beleza
seria o resultado da relação deste cosmos com o mundo das Idéias. Nesta
concepção clássica do homem haveria uma relação de semelhança entre a beleza
externa e o traço moral da bondade. O belo é tido em altíssima conta e é visto
como parte de um universo bom e harmônico. Na filosofia de Platão, a beleza
serve para indicar e recordar o mundo das Idéias. Em Aristóteles, por sua vez,
a beleza do corpo é vista como o fruto da adaptação a um fim. Além disso, para
ele “as coisas agradáveis e belas são necessariamente boas”, “tudo o que produz
a virtude é necessariamente belo”. Entre os bens ele conta a saúde e a beleza
do corpo. O belo seria uma espécie de sinal da virtude.
Neste
universo clássico, marcado pelo culto do belo e da harmonia, também havia
espaço para a apresentação da dor e das paixões terríveis, como vemos nas
tragédias. As tragédias gregas, para recordar uma conhecida formulação de
Nietzsche, são justamente um misto de apolínio (culto do belo e das formas
“perfeitas”) e de dionisíaco (irrupção de uma força descontrolada, ruptura dos
limites). Já as figuras feias – que têm como paradigma o Tersites da Ilíada de
Homero – foram normalmente descartadas da tragédia e relegadas ao campo do
cômico. Segundo a regra do decoro das poéticas clássicas, não se poderia nas
tragédias apresentar pessoas não-nobres, ou seja, que estivessem fora do campo
da “beleza-nobre”. A tragédia era definida aristotelicamente como “a imitação
de homens superiores”. Estes conceitos de beleza e de bondade traziam consigo
uma visão de mundo total: era filosófica, estética, mas também política. Os
membros das famílias nobres, os heróis guerreiros, seriam os portadores das
características de beleza e bondade. Já a comédia, para Aristóteles, era a
“imitação de homens inferiores”, sendo que o “cômico consiste em um defeito ou
em uma feiúra que não causam nem dor nem destruição”. Um exemplo deste fato
seria justamente a máscara cômica, “que é feia e disforme sem exprimir a dor”.
No campo
da história da arte cristã esse modelo clássico será mantido com algumas
adaptações: com a doutrina do pecado vinculado ao corpo, o belo torna-se
extremamente sublimado (sobretudo na chamada Idade Média), mas a relação entre
o belo e o bem fica mantida. O mal e o seu sinal, ou seja, o feio, eram
reservados nas representações cristãs para a apresentação do pecado, da
tentação, do que deve ser evitado. Isto vale tanto para as representações
bíblicas do mal, como para as imagens sacras e para as obras literárias, de
Dante na sua Divina comédia a John
Milton no seu Paradise lost.
É ao
longo do século XVIII que essa equação foi sendo aos poucos abalada. As teorias
artísticas do Iluminismo podem ser vistas como típicas criações de uma era de
transição. Um autor-chave desta concepção como G.E. Lessing vai retomar no seu
livro Laocoonte, ou sobre as fronteiras
da pintura e da poesia, de 1766 (publicado no Brasil pela Editora
Iluminuras) as fórmulas clássicas aristotélicas, mas ao mesmo tempo insere
importantes modificações nelas. Para Lessing cada modalidade das artes deveria
adequar os objetos de sua imitação aos seus meios. Assim, caberia à literatura
a imitação de ações, já as artes plásticas deveriam ter por objeto temas
corpóreos, espaciais e não a narrativa de histórias. Seguindo esta máxima ele
tenta explicar porque Homero, para ele o grande modelo do escritor, faz a
descrição de Tersites na sua Ilíada. Lessing parte do pressuposto antigo de que
os artistas devem imitar o belo para ensinar o bem. Como afirmava seu
contemporâneo Johann Georg Sulzer em 1771: a essência da arte é a imitação do
belo e a produção do sentimento de deleite. Mas este mesmo Sulzer reconhecia
que o artista, para se manter fiel à natureza, deveria também apresentar o
feio. Este seria um sinal emitido pelo artista “para evitar a entrada do mal”
no coração dos espectadores. Portanto, um personagem como Tersites seria uma
porta para a aparição do feio. Lessing acrescenta uma sutileza à sua leitura de
Homero. Sua explicação é semiótica: Homero descreve Tersites em toda sua feiúra
justamente porque sabia quais são os efeitos da descrição na literatura. Para
ele “a feiúra exige muitas partes não apropriadas que nós devemos poder
igualmente ver de uma só vez se nós quisermos sentir então o oposto do que a
beleza nos faz sentir”. Através da descrição, Homero teria diluído o efeito da
feiúra. O que nos importa aqui é a conclusão do autor: “aquilo que o poeta não
pode usar por si mesmo, ele utiliza como um ingrediente para gerar e reforçar
certos sentimentos mistos com os quais ele deve nos entreter na falta de
sentimentos puramente agradáveis.”
A teoria dos “sentimentos mistos”
introduziu ao longo do século XVIII uma paulatina superação da estética da
imitação que estava intimamente ligada à manutenção da entronização clássica do
belo. Mais e mais passa-se a valorizar uma retórica das emoções fortes, do
impacto, em oposição à retórica racionalista que ainda submetia o campo das
artes ao dever de ensinamento e educação do público (seguindo o mote da Arte
poética de Horácio: “aut prodesse volunt aut delectare poetae”, “os poetas
querem ser úteis ou deleitar”). Lessing na sua análise da descrição homérica de
Tersites, assim como Sulzer na sua teoria do uso do feio como admoestação,
ainda seguem esse preceito da arte como educadora. Mas eles já estavam
conscientes do que se passava no campo do estético, ou seja, eles pressentiam o
fim da era da valorização da arte em função de sua fidelidade para com a
natureza-bela. Quando Lessing, no Laocoonte, conclui a sua análise de Tersites
com as palavras: “se a feiúra inofensiva pode ser ridícula então a feiúra
prejudicial é sempre terrível”, ele já indicava um outro conceito-chave na
teoria da estética (e que sintomaticamente fica de fora do seu Laocoonte, no
seu limite, por assim dizer), a saber, o conceito de “sublime”. (com relação a
este conceito cf. os capítulos iniciais do meu livro O local da diferença,
Editora 34, 2005; bem como o link para o artigo "Arte, dor e kátharsis ou variações sobre a arte de pintar o grito".
Este conceito de sublime tem uma origem
na retórica clássica. O principal tratado antigo sobre esse tema é o Sobre o
sublime, do primeiro século d.C., de um autor que ficou desconhecido para a
posteridade. Neste tratado, o autor apresenta o sublime como o resultado de
maior impacto que o poeta pode atingir. Ele valoriza aqui mais “a grandeza com
alguns defeitos” do que “a mediocridade correta”. Trata-se da poética da
comoção em oposição à da frieza. Para o autor anônimo “o sublime é o ponto mais
alto e a excelência, por assim dizer, do discurso”, ele gera o arrebatamento
por meio de uma “força irresistível”. No século XVIII este conceito foi
amplamente debatido. Ele foi apresentado por alguns autores como sendo uma
espécie de ápice do belo. Para outros, no entanto, o sublime era o oposto do
belo, assim como na visão clássica de Lessing o cômico era o oposto do trágico.
Mas o interessante desse novo conceito de sublime que nasce então é que ele
justamente supera essa divisão entre o cômico e o trágico. Se, como vimos,
Lessing via na feiúra inofensiva o ridículo, ele anunciava também que existe
uma feiúra prejudicial que seria sempre terrível. Na primeira versão de seu
texto ele acrescentou a essa definição da feiúra prejudicial terrível que ela
seria “sublime”.
Edmond Burke foi o principal teórico
desta noção de sublime no século XVIII. No seu tratado de 1757 sobre este
conceito ele o definiu de um modo que não deixa dúvidas quanto à sua
proximidade com o conceito de trágico: “As paixões que pertencem à
auto-preservação relacionam-se com a dor e o perigo; elas são simplesmente
doloridas quando as suas causas afetam-nos de modo imediato; elas provocam
deleite quando temos uma idéia da dor e do perigo, sem, no entanto,
encontrarmo-nos em tais circunstâncias. ... Tudo o que excita tal deleite eu
denomino de sublime. As paixões pertencentes à auto-preservação são as mais
fortes de todas as paixões”. O feio ao invés de ser contido no campo do cômico
ou da descrição que o atenua, é tratado por Burke como um dos meios de gerar essa
emoção radical do sublime. Esse conceito teve ampla recepção entre os
principais teóricos das artes do século: Diderot, Moses Mendelssohn, Kant,
entre outros, vão tentar esmiuçar essa nova concepção de deleite estético
ligada à exploração da dor, do perigo, do feio, em uma palavra, das
manifestações da morte e da nossa pequenez diante dela.
Diderot, em uma carta a Sophie Volland,
caracteriza esse conceito de modo a destacar o elemento “misto” dessa paixão,
que põe lado a lado o belo (normalmente representado na estética do XVIII pela
mulher) e as aparições da morte (significadas normalmente pelo homem): “Efeitos
poderosos sempre nascem da mistura do voluptuoso e do terrível, por exemplo,
uma bela mulher semi-nua oferecendo-nos uma poção deliciosa nas caveiras
sangrentas de nossos inimigos. Este é o modelo de tudo que seja sublime. Temas
como este, que fazem a nossa alma derreter de prazer e tremer de medo. A combinação
destes sentimentos mergulha-nos em um estado extraordinário e é a marca do
sublime que ele nos abale de um modo excepcional”. Aqui fica claro em que
medida o sublime mistura temas ligados à beleza, ao feio, ao terror e ao medo.
Nele sexo e morte se encontram. Uma nova concepção de fantástico também se
anuncia aqui. Os romances góticos, com destaque para o Frankenstein de Mary
Shelley, assim como o gênero da narrativa fantástica de um modo geral, é uma
decorrência dessa estética do sublime. No século XIX Goya, Caspar David
Friedrich, Turner, Arnold Böklin e autores como Victor Hugo (autor do famoso
texto “Do Grotesco e do sublime”), E.T.A. Hoffman, Adalbert von Chamisso,
Baudelaire (não apenas autor das Flores do mal, mas também o grande teórico da
caricatura e do cômico), Stevenson, Nietzsche, entre outros, deram continuidade
a esta tradição do sublime. No século XX esse conceito vai ser central na
teoria de Walter Benjamin, Adorno, Jean François Lyotard, entre outros.
Bataille, Freud e a releitura destes autores por Julia Kristeva levaram a uma
revisão do conceito de sublime a partir dos anos 1980, que passa a ser
diferenciado da noção de “abjeto”. Na teoria do século XVIII esse conceito de
abjeto era pensado ainda sob o signo do conceito de “asqueroso”. Para Lessing
ele representava o limite que deveria ficar de fora do campo das artes. Agora
podemos dizer que ocorre mais ou menos o contrário: o “belo” foi expulso do
campo do estético. Agora acreditamos mais na “beleza” do feio e na
“sublimidade” do mal.
Márcio
Seligmann-Silva é professor do Departamento de Teoria Literária, Instituto de
Estudos da Linguagem, da Unicamp.
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