“A marca de que o rural é atraso tem que desaparecer. Não é verdade que seja um Brasil que não se modernizou”. A frase é da economista Tânia Bacelar, da Universidade Federal de Pernambuco, em entrevista para o jornal Valor Econômico, em março deste ano. Bacelar é responsável por conduzir um estudo sobre o Brasil rural, encomendado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário. O objetivo maior do estudo é diferenciar as várias facetas do espaço rural no Brasil.
Facetas que são resultados históricos de diversos vetores econômicos e sociais. Quando se observa a história de espaços rurais nordestinos, como algumas regiões da Caatinga, pode-se facilmente deduzir que ocorreram mudanças substantivas. O passado da região esteve marcado por pobreza endêmica, experiência compartilhada por diversas populações e revoltas importantes.
A presença do Estado por vezes atuou contra populações autóctones e as dificuldades de sobrevivência foram enormes. Em comparação com épocas passadas, a Caatinga de hoje é certamente mais pacífica. Talvez, contudo, menos rica do que poderia ser no que tange à sociedade.
Para o professor de história do Brasil, Pedro Puntoni, da Universidade de São Paulo, uma das consequências da “guerra dos bárbaros”, assunto que estudou e publicou no livro A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão Nordeste do Brasil, foi o gradual desaparecimento do elemento indígena de algumas áreas. “O que defendo no meu trabalho é que a parte final da guerra, travada em especial no Rio Grande do Norte, representou um verdadeiro extermínio dos índios. Hoje, por exemplo, não existem aldeias indígenas nesse estado”, comenta.
Quem é o bárbaro? A guerra dos bárbaros representou um evento fundamental na história da colonização portuguesa do nordeste brasileiro, e de algumas partes do semiárido. À medida que a criação de gado extensiva avançava no espaço rural, generoso e de parca vegetação, os índios perceberam a movimentação portuguesa como uma invasão de seu território. Para o índio, o gado significava um animal que podia ser abatido. Para os portugueses, o abate do gado pelos indígenas era, contudo, um ataque à propriedade privada. “Os índios resistiram ao avanço da fronteira da pecuária”, explica Puntoni. “O espaço deles estava sendo gradualmente ocupado, o que resultava na destruição do modo de vida indígena e de todos os seus costumes”.
Para os portugueses, contudo, os bárbaros da história eram os índios. “Não importava qual índio – todos eram bárbaros, na visão portuguesa”, afirma o historiador. Dessa forma, os corpos de ordenança, que eram comandados por representantes do império português, atacavam os índios como forma de avançar territorialmente.
Na última fase da guerra, travada no fim do século XVII e início do XVIII, houve uma perseguição sem precedentes. “Nesse período, os índios foram massacrados. No século XVIII, alguns portugueses mais ilustrados comentavam que essa ação comandada por representantes do império lusitano havia prejudicado a colonização”, diz Puntoni.
Uma consequência funesta para o destino da área é que não se sabe até hoje com segurança quem eram esses índios. Os documentos oficiais da época falam em “bárbaros”, não em etnias. Perderam-se ideias de culturas e de costumes, até mesmo das línguas que eram faladas. “Não se sabe, por exemplo, se esses índios tinham desenvolvido uma medicina importante, que até hoje pode nos fazer falta”, afirma Puntoni.
A guerra dos bárbaros, que durou mais de 70 anos, teve fim por volta de 1720. Mais de um século depois, já após a independência, outros movimentos populares explodiriam na Caatinga.
Dom Sebastião na caatinga pernambucana
“Há quase um século correra sangue pelos seus campos, sangue de gente, sangue derramado para embeber a terra em nome de Deus. Aquilo pesava na existência da Vila como um crime nefando, pesava no destino de gerações e gerações”. A prosa é de José Lins do Rego, no romance Pedra Bonita, de 1938, o quinto livro do autor modernista. Mencionada no texto, a comarca de Vila Bella, no interior de Pernambuco, é hoje o município de Serra Talhada, distante 415 quilômetros do Recife.
Houve em Serra Talhada a revolta do Reino da Pedra Bonita, que não foi a primeira e nem a última na região da Caatinga, mas que ficou marcada pelo ineditismo e pelo descalabro. Sobretudo, porém, pelo trágico. Ali, em 1838, o mameluco João Ferreira coroou-se rei e deu início a um movimento que reuniu de 200 a 300 pessoas. João Ferreira afirmava que Dom Sebastião, rei de Portugal desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir no século XVI, aparecera para ele em sonho.
Sonho no qual o rei português dizia que duas grandes pedras de Vila Bella, de cor de ferro e a reluzir raios de sol, eram, em verdade, as torres de uma catedral. Dizia Ferreira que as portas da catedral se abririam e assistiriam ao retorno de Dom Sebastião, que inauguraria uma nova era, de grande paz e prosperidade. A vinda do rei ocorreria, entretanto, depois que alguns participantes se sacrificassem e banhassem a terra em sangue.
Em 14 de maio de 1838, como descreve o Dicionário do Brasil Imperial, “os sectários se entregaram, por três dias, a impressionantes cerimônias de sacrifícios, ao fim dos quais a base das pedras e os campos estavam banhados com o sangue de 30 crianças, 12 homens, 11 mulheres e 14 cães”. Como, 100 anos mais tarde, José Lins do Rego assinalaria. Denunciado por um participante, que percebeu os descaminhos do episódio, o movimento teve fim com a chegada de tropas militares.
Pouco tempo antes, outra revolta, a da serra do Rodeador, já indicara que o sebastianismo, cujo teor social ligava-se ao mito da volta de Dom Sebastião, estava presente no Brasil. Mais precisamente, na Caatinga pernambucana. A tentativa de criar a Cidade do Paraíso Terrestre, que reuniu de 200 a 400 pessoas crentes na volta de Dom Sebastião, terminou em 1820, quando o governo da capitania de Pernambuco massacrou os partícipes do movimento, que esperavam, como diz o mesmo dicionário, a volta de “um rei encantado para um país imaginário”.
O reino imaginário de Suassuna e o país real
Outro escritor a abordar o sebastianismo no interior nordestino e na caatinga foi Ariano Suassuna. No Romance d’a Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, de 1971, Suassuna constrói uma narrativa que toma como base o evento histórico. Pelas páginas, a tradição sertaneja convive com certos aspectos do espírito europeu, as dificuldades provocadas pelas más condições de sobrevivência na região e com o sonho de melhores tempos.
A quase fábula de Suassuna aponta o sebastianismo como um vetor histórico marcante da população da Caatinga. Em sua dissertação de mestrado em geografia, defendida na Universidade Federal Fluminense, Natallye Lopes Santos Oliveira aponta que a “(...) representação do sertanejo de Suassuna também é fomentada por valores como o sebastianismo e seu viés messiânico (...) O sebastianismo marca aqui a presença de um messianismo luso adaptado às condições nordestinas. Ele traduz uma inconformidade com a situação alimentada pela tragédia, o sofrimento e a esperança”. E quais eram as condições nordestinas?
Malgrado poucas iniciativas particulares, a população da Caatinga, na primeira metade do século XIX, padecia da falta de condições dignas de sobrevivência. Parte escrava, parte pobres homens livres, pequenos pecuaristas e alguns pouquíssimos senhores de terra, essa população quase não tinha acesso à escassa presença do Estado.
Símbolo da falta de empenho estatal em realizar políticas públicas de qualidade foi o setor educacional. Ainda que a Constituição de 1824, que durou todo o período imperial, assegurasse, no seu artigo XXXII, a instrução primária e gratuita a todos os cidadãos, os relatórios do governo nos anos seguintes falavam em abandono das necessidades materiais para a tarefa. Eram poucos os livros didáticos, menos ainda os edifícios públicos, além da sempre constante baixa remuneração de professores. Apenas em 1836 surgiu a primeira escola normal na Bahia. No Ceará, esta apareceria ainda mais tarde, em 1845. Dentro desse contexto regional, educação básica constituía artigo de luxo.
Na segunda metade do século 19, aumentou a preocupação governamental com os problemas da população. As recorrentes secas na região da Caatinga e as dificuldades para contornar o problema, agravado pela grande seca de 1877, fizeram com que o governo criasse, em fins do ano seguinte, a Comissão de Açudes. Em 1884, engenheiros e técnicos chegaram à região de Quixadá, a cerca de 170 quilômetros de Fortaleza. A ideia era realizar a limpeza do local, construir estradas de rodagem e fazer o nivelamento do terreno, mas foi apenas no início da República que as obras para o açude efetivamente tiveram início.
O açude foi construído na primeira década do século seguinte. Nessa época, a história de Antônio Conselheiro e do arraial de Canudos já estava escrita. A Comissão de Açudes se transformaria na Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS) que, mais tarde, em 1945, daria origem ao atual Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS).
A constituição do IOCS, contudo, não impediu que a seca de 1915 produzisse efeitos devastadores. Os esforços estatais eram insuficientes – conforme mensagem do presidente Wenceslau Brás em 1914, dos 42 poços escavados na região naquele ano, 33 foram feitos por particulares. No início da década de 1920, o movimento do cangaço, que teve Lampião como líder importante, representaria mais um movimento de revolta a ocorrer na Caatinga.
A chegada ao poder de Getúlio Vargas, no início da década de 1930, e, mais tarde, a constituição da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), pelo governo de Juscelino Kubitschek, fortaleceriam as políticas públicas para a região.
O espaço rural, mesmo o de áreas da Caatinga, passou por enormes transformações. No século XX, houve uma modernização importante, para a qual concorreram, além da construção de açudes, estradas, ferrovias, hidrelétricas. O rural da Caatinga é plural – deriva do passado, de múltiplos vetores, de histórias pouco conhecidas e pouco contadas.
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