10/02/2010
Uma van desliza sob a neve em uma cidade pacata e rural no interior da França. A cada parada, uma criança entra, cumprimenta o motorista, se despede de sua mãe e observa pela janela o caminho que a levará a mais um dia de aula em uma escola pouco tradicional. Assim começa o filme documentário Ser e ter, que foi um dos selecionados oficiais do festival de Cannes de 2004 e recebeu cerca de 1,8 milhões de pessoas na estréia na França em 2002.
O filme se passa na pequena comunidade de Aubergne em uma escola bem distinta da realidade da educação brasileira. Existe apenas um professor e uma sala de aula com 12 crianças que tem de 4 a 10 anos. Ser e ter mostra um ensino individualizado no qual os estudantes TÊM um professor dedicado e paciente que os conduz da infância à adolescência e SÃO estimulados a pensar em suas profissões e no trabalho em grupo.
O método de aprendizado da escola mostra características de um modelo tradicional e ao mesmo tempo tentativas de um ensino próximo à metodologia do Ensino Baseado em Problemas (do inglês PBL - Problem-based Learning), em que os estudantes são o centro do aprendizado e juntos, de forma colaborativa, entendem o conhecimento e refletem sobre suas experiências.
Como a turma dessa escola no interior da França tem alunos desde o infantil até o final da escola primária, as crianças maiores ajudam as crianças menores e de fato aprendem em colaboração, compartilhando informações e tendo respeito mútuo, como ocorre no PBL. Entretanto, nessa escola o professor é ainda o grande elo para que o sistema dê certo, algo contrário ao PBL, em que o instrutor não providencia o conhecimento e sim guia ao conhecimento. Um exemplo disso ocorre no início do filme quando as crianças tentam escrever a palavra mãe e o professor faz o processo de alfabetização corrigindo uma a uma cada letra das crianças, fornecendo todas as informações de que precisam. “Você deve subir mais a perninha aqui para ficar igual ao meu”, diz ele.
O professor de Aubergne mescla a figura de um educador e um pai e ensina até para um de seus alunos menores, Jojo, como lavar as mãos. A sua relação com os estudantes transcende a educação formal, como fica claro em uma de suas conversas com Nathalie, quando ele explica que, mesmo quando ela mudar de escola para cursar o ensino médio, eles ainda poderão continuar se vendo aos sábados para compartilhar as novidades. Essa abertura do professor é muito importante para Nathalie, já que ele foi a única pessoa com quem ela conseguiu se abrir e conversar com menos timidez.
Por outro lado, uma característica muito forte da escola é o incentivo ao trabalho, aproximando os alunos da realidade das profissões e da comunidade que os cerca, um dos pilares do PBL. O professor em todos os momentos usa a palavra trabalhar ao invés de estudar e parece preparar os alunos para o trabalho no campo, já que a comunidade é baseada na economia rural. Ele ensina a coletividade, faz perguntas sobre gado e permite que as crianças brinquem sob a chuva e a neve. Em uma das cenas do documentário, as crianças conversam com o professor sobre a profissão que querem ter quando crescer, uma aluna quer ser professora, outra veterinária, outro policial de moto.
No filme também é possível identificar elementos característicos da teoria do construtivismo. A PBL é baseada no construtivismo, que é a ideia de que o conhecimento não é dado como algo terminado. A base do construtivismo é a pergunta e não a resposta. Em um dia na escola, Jojo não pôde sair para o recreio, pois não terminou seu desenho e havia prometido que iria terminar. Nesse momento o professor pergunta ao menino por que ele tem que ir à escola e tenta, através de muitas perguntas, fazê-lo perceber por si próprio a resposta. Juntos, eles traçam a seguinte linha de raciocínio: é importante ir à escola para desenhar, que leva a fazer curvas, que leva aos números que aprenderam e, finalmente, leva a contar.
O aprendizado da escola de Aubergne também envolve diversas atividades extras, que não ocorrem com frequência no ensino tradicional, como ir ao campo fazer um piquenique na companhia dos pais, brincar em uma máquina de xerox, fazer panquecas e até mesmo andar de trenó na neve. Como a escola é muito centrada na figura do professor, o documentário mostra a razão de ele ter escolhido esta profissão. Seu pai era imigrante espanhol e tinha um pedaço de terra. Desde criança ele sabia que queria ser professor, viu o quanto era difícil trabalhar no campo, gostava da escola, brincava de dar aulas para os primos e não se via fazendo outra coisa. Ao desenrolar do filme é revelado que o professor está prestes a se aposentar e várias crianças também estão prestes a mudar de escola, pois irão para o ensino médio. Ser e ter termina com todos os alunos se despedindo do professor com dois beijos e dizendo: boas férias, senhor!
Ser e ter (Être et avoir) Direção: Nicholas Philibert Ano: 2002
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