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Por uma leitura crítica da ciência
Por Flavia Natércia
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Resenhas
Por uma leitura crítica da ciência
Por diversos rumos e estilos, autores voltam-se para a divulgação da ciência. Em meio a diferentes gostos e verdades transitórias, importa realizar outra leitura
Por Flavia Natércia
10/07/2008

Pode-se dizer que há livros de divulgação científica para diversos gostos, interesses e níveis de familiaridade com a ciência. Eles podem ser escritos por jornalistas ou escritores profissionais, mas os cientistas que se aventuram a escrevê-los inserem-se numa longa tradição que se iniciou com a assim-chamada Revolução Científica. Galileu Galilei foi o primeiro “delineador do campo da natureza” – na bela definição que Giordano Bruno faz da atividade dos filósofos naturais em Sobre o infinito, o universo e os mundos – a escrever não em latim, mas num idioma vernáculo, o italiano.

Uma arrebatadora descrição da chuva despencando na floresta amazônica abre o livro Biodiversidade, de Edward O. Wilson. A teoria de Einstein é apresentada aos não-iniciados, de forma compreensível, pelo matemático e filósofo Bertrand Russell em ABC da relatividade. Movido pelo entusiasmo provocado pela descoberta da radiação de microondas, Steve Weinberg, prêmio Nobel de física em 1979, descreve como teria sido o início do universo em Os três primeiros minutos. As razões para o domínio europeu por séculos sobre o restante do mundo são investigadas por Jared Diamond em Armas, germes e aço. Do mesmo autor, o instigante Colapso busca compreender por que algumas civilizações sobreviveram e até prosperaram, enquanto outras entraram em decadência ou desapareceram completamente.

Stephen Jay Gould aventura-se pela descoberta do “tempo profundo” em geologia, indo do reverendo Thomas Burnet, autor da Teoria sagrada da Terra, no século XVII, a Charles Lyell e seus Princípios de geologia, no século XIX, no fascinante Seta do tempo, ciclo do tempo. Gould escreveu diversos livros em que tratou principalmente, de paleontologia e evolução, os temas que pesquisava, como Darwin e os enigmas da vida, O polegar do panda e Vida maravilhosa. O comportamento social de primatas e humanos é tema do bem-humorado Robert Sapolsky em Confissões de um primata e do habilidoso Frans de Waal em Eu, primata. Muitos outros exemplos poderiam ser citados: toda lista é parcial.

São livros que delineiam o mundo passado, presente e futuro com suas escritas mais ou menos ferozes, mais ou menos contundentes, mais ou menos bem-sucedidas na tarefa de transpor a barreira do jargão e do conhecimento estritamente técnico para atingir audiências mais amplas que as formadas por seus pares. Seus autores enfrentam o risco de usar metáforas, analogias e imagens cotidianas para ilustrar o que se passa no interior dos laboratórios – análise, síntese, busca de relações causais– ou nos campos onde fazem observações, coletas, manipulações ou nos computadores nos quais simulam realidades. No entanto, um dos grandes divulgadores da ciência em atividade, Richard Lewontin, da Universidade Harvard, adverte em A tripla hélice que se torna um problema quando as metáforas são tomadas como reais – “o preço da metáfora é a eterna vigilância”. Lewontin é dono de uma escrita envolvente que parte da compreensão da ciência como parte da sociedade. A palavra desenvolvimento, por exemplo, em inglês, é a mesma para a sucessão de estágios na formação do organismo e para a ampliação de um filme (“to develop”). Embora pareça inofensiva, a palavra remete ao preformacionismo.

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Muitas contribuem para semear o gosto pela ciência, o que se confirma no depoimento de cientistas como Carl Sagan, que “queria ser cientista desde os primeiros dias de escola”, mas cujo interesse pelo tema foi mantido nos anos escolares “pela leitura de livros e revistas sobre a realidade e a ficção científicas”. Mas as obras de divulgação da ciência foram e são escritas também com outras finalidades. Por exemplo, tornar públicas descobertas capazes de alterar visões de mundo, como fez Galileu. Ou explicar ao público geral conceitos, teorias e disciplinas cuja sofisticação técnica parece ter afastado da cultura dos que não pertencem ao seleto grupo de pesquisadores daquela área ou daquele campo. Pode-se citar como exemplo disso Uma breve história do tempo, de Stephen Hawking.

http://www.labjor.unicamp.br/comciencia/img/divulgacao/resenha/breve_hist_final.jpg

Outra finalidade pode ser justificar ou defender um projeto, o que fez Steve Weinberg em Sonhos de uma teoria final em relação ao supercolisor de partículas que acabou sendo construído na Europa, e não nos Estados Unidos. Ou ainda interferir num debate sobre idéias, conceitos, teorias em voga (ou decadência) na época em que são escritos, como os livros de Lewontin que procuram desmontar o determinismo subjacente à divulgação de feitos recentes da biotecnologia, como o projeto Genoma e a transferência nuclear de célula somática (“clonagem”): A tripla hélice,It ain't necessarily so, Not in our genes, Biology as ideology.

Richard Dawkins, por sua vez, fez O gene egoísta para divulgar as idéias desenvolvidas a partir dos anos 1930 com os trabalhos de Robert A. Fisher, John Maynard-Smith e outros pioneiros do neodarwinismo e tornadas explícitas somente nos anos 1960 por C. George Williams e William D. Hamilton. Em prefácio a uma reedição portuguesa de seu livro mais polêmico, publicado originalmente em 1972, disse:

"Para mim, suas idéias eram visionárias. Mas achei que as exprimiram muito laconicamente e que não as espalharam e divulgaram suficientemente. Estava convencido de que o desenvolvimento e a amplificação de uma versão podiam fazer com que todos os fatos da vida tivessem sentido, tanto no coração como no cérebro. Eu escreveria um livro para enaltecer a evolução vista pelos genes. Ele concentrar-se-ia em exemplos sobre o comportamento social para ajudar a corrigir a febre de seleção de grupo inconsciente que então invadia o darwinismo popular".

O embrião de sua cruzada contra a religião encontra-se no livro O relojoeiro cego, em que rebate o argumento teológico do filósofo William Paley (1743-1805), segundo o qual Deus é um relojoeiro e o olho humano, tão complexo, organizado, adaptativo era evidência de que o homem era fruto da criação por um designer inteligente. Depois vieram O rio que saía do Éden e, mais recentemente, Deus, um delírio. Dawkins teve como um grande interlocutor outro importante divulgador da ciência, Stephen Jay Gould. Em geral, batiam de frente. Um dos pontos em que convergiram, porém, está a negação do caráter teleológico da evolução, que teria no homem sua obra mais perfeita e acabada. Afinal, lembra Dawkins, todos os seres vivos evoluíram a partir de um ancestral comum por mais de 3 bilhões de anos, por seleção natural: “reprodução diferencial, não aleatória, dos genes”. Gould, por outro lado, insistia no caráter contingente da evolução que, se fosse um filme e se pusesse a rodar novamente, teria certamente outro resultado.

Outro cientista que se dedicou intensamente à divulgação foi Carl Sagan, que escreveu, entre outros, Pálido ponto azul, Os dragões do Éden e O mundo assombrado pelos demônios – a ciência vista como uma vela no escuro. Este último tem como alvo a pseudociência e o misticismo, mas também a reverência excessiva à autoridade científica, e busca equipar seu leitor com um kit de ferramentas para o pensamento cético. Sagan concorda com Einstein, que disse: “Toda a nossa ciência, comparada com a realidade, é primitiva e infantil – e, no entanto, é a coisa mais preciosa que temos.” Diante de verdades que, se existem, são provisórias, transitórias, efêmeras, o que resta é ler ciência criticamente.