Insígnia dos pilotos do drone militar Reaper: “que morram os outros”
Nos últimos anos assistimos a um sem número de informações envolvendo diversas possibilidades de emprego de drones, conformando um imaginário absolutamente positivo dessa tecnologia para a sociedade. No entanto, o fetichismo de seus usos de baixo custo em atividades “brandas”, como filmagens cinematográficas e atividades científicas – inclusive em práticas de saúde pública –, mascaram a relação de forças, interesses e objetivos que pautaram seu desenvolvimento e principal utilização atual: a chamada guerra cirúrgica.
Os drones que são resultado direto do projeto militar norte-americano original, como o Predator e o Reaper, são atualmente empregados em atividades militares e de inteligência, como as missões de assassinatos extrajudiciais no Paquistão, Iêmen, Somália e Síria. Seu emprego nessas missões busca legitimação no discurso da “guerra cirúrgica”, uma vez que as características técnicas desses dispositivos e a natureza das operações supostamente permitem a eliminação precisa e pontual de insurgentes, sem produzir os “efeitos colaterais” inevitáveis em amplas mobilizações de tropas e nos tradicionais bombardeios.
Os assassinatos extrajudiciais com drones podem ser subdivididos em assassinatos seletivos (em que se conhece o alvo a ser eliminado) e assassinatos por assinatura (com base no padrão de comportamento dos indivíduos analisados). Tais operações são atualmente dispersas em diversas regiões do globo e envolvem comandantes, controladores de missão, militares e até pessoal de apoio jurídico, todos reunidos em centros de comando.
Denominada pelos próprios operadores como “cadeia da morte”, a estrutura típica divide-se em três etapas: a) centros de comando e processamento de inteligência, onde se realiza a análise de imagens combinada com outros tipos de informação; b) estações de controle operadas em terra remotamente, onde ocorre a operacionalização do veículo para captação de imagens e eliminação dos alvos; c) bases de lançamento, onde ocorre a manutenção do drone e o controle de decolagem e pouso. Centros e estações são localizados em solo estadunidense, permitindo a condução remota das operações.
Três décadas de construção de imaginário
Os atuais modelos de drones são resultado de mais de três décadas de pesquisa e desenvolvimento do setor militar dos Estados Unidos, envolvendo Departamento de Defesa, Pentágono, CIA e colégios militares em um complexo processo de negociação de projetos e intercâmbio de imaginários coletivos sobre a futura organização dos conflitos armados. Entenda-se “imaginário” como um consenso cultural que fundamenta as visões coletivas sobre o futuro, com impactos reais sobre as decisões presentes nas políticas científicas e tecnológicas – e não como uma forma de ilusão ou ideologia coletiva que leva a contornos utópicos sobre o presente e o futuro. O conceito de Sheila Jasanoff (2009) sobre imaginários sociotécnicos parte da ideia de que objetos tecnológicos são completamente enredados na sociedade, como componentes da ordem social, e podem ser subentendidos como “formas de vida e ordem social coletivamente imaginadas refletidas no design e no cumprimento de projetos científicos ou tecnológicos de uma nação” (Jasanoff e Kim, 2009: 120). A elevação do pensamento de grupos específicos sobre futuros imaginados à condição de imaginário coletivo depende muito de legisladores, tribunais, meios de comunicação e entretenimento, não se restringindo à ordem tecnológica. Tais “futuros imaginários” englobam o modo como a vida deverá e poderá ser estruturada e como a guerra poderá e deverá ser organizada e lutada.
Buscaremos, neste sucinto ensaio, apresentar as características dos imaginários coletivos que balizaram a trajetória tecnológica dos drones nos Estados Unidos e as operações contemporâneas que os empregam. Ao final, discutiremos os limites do emprego dessa tecnologia, e consequentemente a brevidade desses imaginários diante de um cenário estarrecedor de mortes civis e violação do direito humanitário internacional.
“Total awarenes”: a tecnologia em favor de uma guerra limpa
A atual configuração das operações militares dos Estados Unidos – na qual drones e assassinatos extrajudiciais são o elemento principal – foi pensada a partir de meados dos anos 1980 e ao longo de toda a década de 1990. Essa complexa arquitetura de uma nova organização da guerra consolidou-se como um campo de estudo e foi denominada Revolution in Military Affairs (revolução nos assuntos militares) ou RMA, na sigla em inglês. O objetivo final da RMA é superar definitivamente os principais “contratempos” observados na campanha militar norte-americana no Vietnã e responder a um contexto de novas ameaças caracterizadas como “assimétricas”. Na prática, houve uma série de modificações e combinações entre sistemas tecnológicos de armamentos e métodos operacionais que resultaram, a rigor, em uma forma profundamente nova de organização para a realização de operações militares. Muito além da discussão teórica acerca da mudança do caráter da guerra, a RMA é uma “agenda política enfatizando a exploração de avanços tecnológicos para preservar e ainda aprimorar a posição estratégica dos Estados Unidos no longo prazo” (Shimko, 2010:02).
Os principais determinantes da RMA são: a) uma profunda redução do gasto governamental em financiamento da P&D militar, levando a um rearranjo do famoso complexo militar industrial norte-americano, que se aproxima do setor civil para a obtenção de novas tecnologias, além de permitir o surgimento de “empresas revolucionárias” como novos contratantes do Pentágono (Kaldor, 1999); b) o surgimento de novos tipos de ameaças internacionais, como terrorismo e grupos paraestatais, que obrigam uma modificação na estrutura das guerras tradicionais em guerras irregulares (US Army, 2013); c) um temor tanto na sociedade quanto no meio político – apelidado de “síndrome do Vietnã” – de ingressar em novos conflitos de longa duração, com grande quantidade de mortos (Herring, 2002); d) a busca de maior controle sobre as informações da guerra que vêm a público e de mais informações sobre o inimigo para conduzir as operações (Gray, 1997).
Dentre os entusiastas da RMA nesse período, destacam-se algumas figuras, como os generais Don Starry e Donald Morelli, articuladores da ideia de guerra de “terceira onda” (influenciada pelas ideias de Alvin e Heidi Toffler), além de Andrew Marshall, diretor do Office of Net Assessment do Departamento de Defesa, e do presidente do Naval War College, vice almirante Arthur Cebrowsky, que encaminhariam os debates ao longo da década de 1990. Enquanto Marshall primava por uma série de mudanças na doutrina que envolvia a tipologia das operações militares – guerras de baixa intensidade, guerras irregulares, envolvendo forças de operações especiais, por exemplo –, Cebrowsky debatia o reordenamento de todas as operações militares em torno das novas tecnologias da informação e comunicação, atribuindo a elas maior precisão e interoperabilidade. Em ambos os casos havia um consenso quanto aos “valores” da RMA, além da crença na maior eficiência das operações pela adoção de novos instrumentos de vigilância e informatização da guerra, e de veículos autônomos ou semiautônomos. Mais ainda, esse grupo de pessoas e instituições intencionava desenvolver meios para conduzir remotamente as operações militares, tendo o controle do fluxo informacional dessas operações como um elemento central das operações.
As teorias desenvolvidas por Alvin e Heidi Toffler, acerca de guerras de terceira onda, pautavam-se na ideia de que, ao longo da história, as sociedades tornavam-se plenamente informacionais. Assim, a tendência seria uma alteração das doutrinas militares, reduzindo o uso da força bruta e aumentando o emprego de uma força “cerebral” nas operações. Nesse caso, haveria maior interoperabilidade entre soldados e novas armas teleguiadas de precisão, orientando-se não em função do espaço (mobilização de tropas, deslocamento, posicionamento), mas em relação ao tempo (links de comunicação, feeds em tempo real, velocidade de reação etc.). Total awareness, ou a capacidade de agir sobre qualquer parte do mundo, a qualquer momento, de forma rápida e incisiva, tornava-se o grande símbolo dessa sorte de mudanças que “abalavam” o meio militar, a tal ponto de impregnarem o imaginário militar.
Essas teorias foram amplamente difundidas pelos colégios militares, fundamentaram disciplinas, discussões de estudos estratégicos, doutrinas militares, primando pelo remodelamento das operações militares em torno da obtenção de informações e atualização da violência a distância. Da mesma forma, como aponta Douglas Kellner (2001), as produções cinematográficas de Holywood no período consubstanciarão esse imaginário de um militarismo cirúrgico e eficiente, baseado nas novas tecnologias e “centrado em rede”. Kellner irá observar que produções como Top gun, Amanhecer sangrento e Águia de aço, além de construírem os mesmos lugares-comuns da guerra (o lado bom e o enfrentamento com o lado mau), fundamentarão o imaginário da era Reagan, de que todas as mazelas de conflitos anteriores poderão ser resolvidas pelas novas tecnologias em desenvolvimento – e evidentemente por uma conduta heroico-mítica dos militares que as operam. Nas palavras de Kellner (2001: 107): “O projeto ideológico de Top gun é investir desejo nas figuras dos heroicos pilotos de caças aéreos e na guerra high-tech, o que é feito com artistas atraentes, verdadeiras magias da tecnologia cinematográfica e dos efeitos especiais, com mistura de rock e sons de velocidade e poder, além dos aviões sofisticados e dos artefatos militares, evidentemente”.
James Der Derian, um teórico construtivista das relações internacionais, investigando os processos de inovação militar durante a RMA, aponta que eles projetariam um “mito” e um novo “ethos” para a guerra: o de que a superioridade moral do combate se concentra muito mais em seu potencial tecnológico e meticuloso na promoção da violência do que na brutalidade do martírio corpo a corpo. Nesse ponto, o autor afirma a predominância do “espírito” heroico de Odisseu sobre Aquiles no novo modelo de guerra. Isso pois a primeira figura trágica prefere a techné à virtú, a engenhosidade ao enfrentamento, ambicionando apenas o retorno à casa, enquanto a segunda figura mitológica retira do martírio no campo de batalha em terras estrangeiras, da violência e da brutalização da guerra a sua honra e a sua lealdade. Uma mudança que exemplifica a virtualização da guerra e da mudança de rumos das Forças Armadas dos Estados Unidos diante da “ameaça terrorista”, a opção tanto por tecnologias de vigilância quanto por tecnologias stealth (aviões ou submarinos ou qualquer outro equipamento de guerra que atuem furtivamente, invisíveis para os radares inimigos) ou stand-off weapons (mísseis ou bombas que podem ser lançadas a uma distância tão segura que neutraliza qualquer revide inimigo), em detrimento de armamentos de destruição em massa e da logística para a mobilização de grandes contingentes.
Mais do que um elemento discursivo, e como resultado desse imaginário de dominação global remota, é possível observar que de fato houve mudanças e reordenamentos relativos a processos de pesquisa e desenvolvimento, contratação e organização dos sistemas de comando e controle no setor militar. Priorizando esse tipo de tecnologia, o Departamento de Defesa então orquestra a transição dos antigos sistemas de comando e controle para sistemas de comando, controle, computação, comunicação, informação, vigilância e reconhecimento (command, control, communications, computers, intelligence, surveillance and reconnaissance, ou C4IRS). Os conflitos agora se centrariam na obtenção de informações e reconhecimento das posições inimigas, através de uma variedade de instrumentos conectados em rede – tudo isso realizado a distância. Deu-se a isso a denominação de Network Centric Warfare (Cebrowsky, 2000) – permitindo a partir de várias unidades, agindo em rede, ações cirúrgicas e rápidas – base da doutrina de Shock and Awe ou “choque e pavor”: força avassaladora, percepção dominante do campo de batalha, paralisação da percepção do adversário e de sua vontade de reação, domínio rápido (Alberts e Hayes, 2003).
Esse novo sistema expandido e reordenado de comando e controle, devidamente arquitetado pelo Departamento de Defesa, era tido como a principal solução da RMA diante do contexto de mudança política, social e econômica, interna e externa, e passaria a pautar a totalidade das operações militares e de inteligência dos Estados Unidos – as quais cada vez mais se tornavam indiscerníveis. Nesse contexto, havia ainda a necessidade de se obter informações em tempo real sobre o movimento dos inimigos em um campo de batalha. Além disso, no contexto de uma guerra global ao terrorismo, o aparato de inteligência norte-americano demandava uma forma de investigar os inimigos sem comprometer a posição dos agentes de inteligência e de eliminá-los preservando a integridade física dos combatentes.
É a partir de então que tanto a Força Aérea (USAF) quanto a CIA passam a investir no desenvolvimento de drones de vigilância e, posteriormente, armados. Através deles os Estados Unidos poderiam não apenas colher informações e antecipar os movimentos dos inimigos mas, fundamentalmente, agir sobre eles. Tornava-se possível eliminar um inimigo em outro país a partir do território americano, sem arcar com o ônus político e diplomático de operar os ataques em território estrangeiro – o que tornou os parâmetros legais e éticos desses atos muito mais complexos.
“Que morram os outros”: as consequências da política do distanciamento
Segundo a plataforma Out of Sight, Out of Mind (2014), desde 2004, quando se inicia o uso de drones armados pelos EUA, cerca de 370 ataques provocaram mais de 3 mil vítimas. Desse total, 22% seriam civis e crianças e 78%, militantes. Das 3 mil pessoas mortas, apenas 52 eram líderes identificados pela CIA e pelo governo norte-americano como alvos prioritários. Diversas pesquisas revelam que os ataques de drones têm contribuído para um forte sentimento anti-americano no Paquistão, por exemplo, induzindo à formação de mais insurgentes.
Ainda que os números acima sugiram que a “cadeia da morte” e o emprego de drones constituem um sistema frágil e pouco eficiente (porque resultam na morte de inocentes), o sistema e a tecnologia são absolutamente eficientes e cumprem à perfeição seus objetivos. Desde o princípio, o objetivo de desenvolver drones e estruturar um sistema de comando e controle para operação remota nunca foi promover ataques “contidos” e mortes dignas, mas garantir o distanciamento físico, moral e perceptivo da guerra. Mais do que isso, a intenção era estruturar um sistema em que fosse possível realizar operações cotidianas e persistentes, eliminando de forma massiva alvos em países não engajados em guerras declaradas, sem com isso sofrer repreensão política, pressão da opinião pública ou condenação do judiciário.
Uma das provas de que o sistema “vai bem” é a que, de acordo com uma pesquisa promovida pelo Instituto Gallup, mais de 70% dos norte-americanos apoiam os ataques com drones no exterior, acreditando em sua eficácia e saboreando o fato de que os “seus” não serão mortos nos conflitos. Desde os primeiros ataques com drones, pouco se discutiu sobre a regulamentação do seu uso, seja por agências internacionais ou mesmo internamente, possibilitando o aumento do seu emprego pelos Estados Unidos. Por fim, outro elemento que comprova a eficácia do sistema é o fato de que, de acordo com pesquisas desenvolvidas pelo psiquiatra Wayne Chappelle (2010), a grande maioria dos operadores de drones não estão sob efeito de “stress pós-traumático”, o que lhes permite uma rotina contínua de combate, mesmo estando imersos em um cotidiano pacífico e civil .
Nesse sentido, é possível compreender que o uso de drones cristaliza não apenas um imaginário de conflitos enxutos e rápidos, mas de uma forma de conflito sem restrições, sejam políticas ou temporais. Isso implica que desde sua origem, a RMA e seus entusiastas buscavam não uma forma de conduzir conflitos rápidos, humanos e de baixa intensidade destrutiva, mas conflitos em que os efeitos colaterais e toda a destruição e horror da guerra não fossem percebidos – em outras palavras, que a distância física e moral mitigassem os efeitos corrosivos da promoção da violência. Como interpreta o filósofo Grègoire Chamayou (2013), a ruptura da reciprocidade se dá em relação aos atos cometidos pelos operadores de drones, e em relação à reação dos adversários, da comunidade internacional e da opinião pública.
Os imaginários sociotécnicos de uma guerra informacional, que dão margem ao emprego de drones, inauguram na verdade uma forma de conflito centrado no distanciamento, desinformação e indiferença. Nessa nova forma de promover a violência, pouco importa a dignidade ou identidade dos alvos, apenas “que morram os outros”.
Alcides Eduardo dos Reis Peron é graduado em relações internacionais (2006) e em ciências econômicas (2007) pela Facamp. Mestre (2011) e doutor (2016) em política científica e tecnológica pela Unicamp, foi pesquisador visitante do Departamento de Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia da Lancaster University (Inglaterra). Atualmente, entre outras atividades, é pesquisador do Grupo de Estudos em Tecnologias de Defesa e Evolução do Pensamento Estratégico (Geted-Unesp).
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