Há algo novo na ciência. O comportamento imprevisível muitas vezes exibido pela sociedade, a natureza e até mesmo pela nossa vida cotidiana, já não são considerados por certos pesquisadores, distribuídos por praticamente todos os campos científicos (inclusive muitos ganhadores do prêmio Nobel), como ilusões a serem desfeitas logo que resultados apropriados de pesquisa puderem ser obtidos. É que a diversidade e as incertezas que dominam a nossa percepção imediata da sociedade e da natureza têm sido evidenciadas, cada vez mais frequentemente, em resultados de pesquisa obtidos mesmo nas chamadas ciências exatas, consideradas como as formalmente mais rigorosas.
Para o físico-químico Ilya Prigogine, prêmio Nobel de Química em 1977, e a filósofa Isabelle Stengers, tais evidências abrem a possibilidade de uma “nova aliança” entre a ciência e as preocupações mais prementes da humanidade, na medida em que a ciência, ou pelo menos uma parte da comunidade científica, tem reconhecido o caráter irredutível da complexidade de determinados fenômenos. Contrariando a visão corrente entre os cientistas de que a vida e, portanto, a humanidade, não passa de um acidente isolado em meio a um universo inanimado, alguns autores, como o biólogo Stuart Kauffman, sustentam que a humanidade pode sentir-se “em casa no universo”. Segundo estes autores, os resultados obtidos pela ciência contemporânea, relacionados aos estudos sobre a complexidade e a auto-organização, evidenciam que a vida, em todas as suas manifestações, incluindo a diversidade das sociedades humanas, nada apresenta de excepcional. A dicotomia entre um mundo inanimado, frio e mecânico e um mundo vivo, diverso e imprevisível é, portanto, apenas aparente.
E se os estudos sobre a complexidade têm proporcionado avanços importantes em direção a uma ciência menos distante do mundo tal como este é percebido cotidianamente por homens e mulheres, avanços importantes nesse sentido também foram alcançados no campo da filosofia, especialmente na epistemologia. Numa perspectiva de rompimento com a hegemonia positivista, autores como Thomas Kuhn e Roy Bhaskar têm, desde o final dos anos 1960, proposto abordagens para a interpretação do fazer científico amparando-se numa visão aberta e evolutiva, embora não menos rigorosa, da ciência. Dentro dessa tendência, a filósofa Isabelle Stengers afirma a emergência das “ciências da complexidade”, destacando como uma das suas principais características o abandono das pretensões controladoras e preditivas em prol de um caráter prospectivo e emancipatório da atividade científica ; em outras palavras, uma ciência que não é concebida como um instrumento de controle, mas sim como um meio para construir alternativas e revelar oportunidades. É importante salientar, porém, que as abordagens da ciência baseadas na complexidade destacadas neste texto se contrapõem às correntes pós-modernas, segundo as quais todo conhecimento, inclusive o científico, corresponde a uma mera interpretação da realidade, cuja validade depende de critérios subjetivos, estritamente relacionados ao seu contexto cultural. Ao contrário, os estudos sobre a complexidade aos quais nos referimos neste texto reafirmam a universalidade, a objetividade e o rigor como características fundamentais da ciência.
A comunidade acadêmica relacionada às ciências da complexidade é ainda minoritária, mas a sua influência tem sido crescente. Uma das razões dessa crescente influência é a constatação de que o atual padrão dominante de desenvolvimento é incompatível com a sustentabilidade das sociedades contemporâneas, ao mesmo tempo em que se torna cada vez mais evidente a disparidade entre, de um lado, a complexidade dos problemas relacionados ao desenvolvimento e a sua sustentabilidade e, de outro, os métodos reducionistas usualmente adotados pelas ciências para explicá-los.
As concepções sobre o que é e, especialmente, como promover o desenvolvimento sustentável, portanto, têm sido afetadas, de uma forma profunda e radical, por certas abordagens baseadas na complexidade.
Desenvolvimento sustentável: um processo aberto e evolutivo
De acordo com certos estudos sobre a complexidade, o desenvolvimento sustentável deve ser entendido como um processo aberto e evolutivo, o que implica em importantes consequências sobre as ações a serem realizadas visando a sua promoção. Neste sentido, a promoção do desenvolvimento não pode estar baseada na noção de que a sociedade deva atingir um determinado estado específico, ou seguir uma determinada trajetória, cuja definição possa ser baseada em algum exemplo já existente (países, regiões ou locais considerados desenvolvidos ou experiências exitosas). Ao contrário, ao conceituarmos o desenvolvimento sustentável como um processo evolutivo, o importante não é o seu estado final, mas sim os fatores que condicionam a evolução da sociedade de forma que esta possa manter, ou criar, características consideradas desejáveis. Assim, segundo a abordagem aqui proposta, não existem países, regiões ou locais desenvolvidos, mas sim sociedades capazes de se desenvolver. Para analisar tais sociedades, consequentemente, o importante não é o que diretamente proporciona as características porventura consideradas desejáveis do desenvolvimento como, por exemplo, aquelas que se relacionam com a melhoria da qualidade de vida, envolvendo a renda, a organização econômica, as formas de exploração dos recursos etc. O importante na análise do desenvolvimento, e da sua sustentabilidade, são as propriedades sistêmicas ou emergentes que permitem que as sociedades consigam se adaptar e evoluir adequadamente.
Segundo o sociólogo David Byrne as sociedades apresentam certas propriedades, que o autor denomina sistêmicas, que são atributos tanto dos indivíduos como das relações que estes mantêm entre si, as quais exercem uma influência profunda sobre a sociedade como um todo, alterando sua capacidade de se desenvolver. Nesta perspectiva, novas formas de relações sociais e novas formas de manipulação de energia e uso de recursos são os principais fatores geradores de diversidade em uma sociedade. Pode-se argumentar que a capacidade de inovar, para se manifestar plenamente, necessita que os seres humanos desfrutem de um mínimo de liberdade substantiva, isto é, que os seres humanos tenham não apenas o direito formal de exercer sua liberdade, mas também as condições materiais para tanto. A abordagem do desenvolvimento que procuramos descrever aqui apresenta, assim, uma grande convergência com a noção de desenvolvimento como liberdade proposta por Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia em 1998. De acordo com esse autor, a liberdade supõe não apenas um rigoroso respeito aos direitos dos indivíduos, mas também o acesso a meios materiais e intelectuais que possibilitem a expressão das suas potencialidades. Além disso, a liberdade substantiva também pressupõe capacidade de ação política que possibilite uma efetiva participação de toda a população nos processos decisórios da sociedade.
A tentativa de promover uma liberdade que não seja apenas formal, no entanto, levanta problemas de difícil solução já que, em situações concretas, caracterizadas pela escassez de recursos e por conflitos de interesse, a expansão da liberdade de uns gera, inevitavelmente, a limitação da liberdade de outros. A promoção da liberdade substantiva, portanto, implica também em formas de regulação do acesso aos recursos disponíveis e da solução de conflitos. O que determina a liberdade substantiva, então, não é a ausência de regras. Ao contrário, ela só pode ser assegurada por meio da existência de formas de regulação das relações sociais que assegurem certa igualdade do que Amartya Sen conceitua como funcionamentos e capacidades1. E tal regulação, para que seja efetiva, deve ser fruto de processos democráticos de organização da sociedade.
Vários autores, como Pierre Lévy, James Surowiecki, George Pór, Tadeusz Szuba, dentre outros, têm estudado fenômenos relacionados ao que tem sido denominado de inteligência coletiva para explicar porque certos problemas são mais eficientemente resolvidos coletivamente do que a partir de decisões individuais. Assim, em uma sociedade que se auto-organiza, diferenciando suas estruturas internas, os indivíduos que a compõe passam a ocupar posições cada vez mais específicas, o que dificulta uma plena compreensão, por parte de qualquer um desses indivíduos, do estado ou do comportamento global da sociedade. Além disso, a existência de interesses conflitantes que afetam a todos os indivíduos, embora em diferentes graus, aumenta ainda mais essa dificuldade.
Como destacado pelo jornalista James Surowiecki em seu livro The wisdom of crowds: why the many are smarter than the few and how collective wisdom shapes business, economies, societies and nations, de 2004, processos de decisão em que os indivíduos, analisando problemas de forma independente e descentralizada, geraram, coletivamente, soluções mais precisas do que as soluções elaboradas por eles mesmos de forma isolada. É interessante observar que nesses processos são as soluções genuinamente coletivas que se mostram superiores, e não apenas soluções individuais, devidamente selecionadas pelo grupo. Já o cientista da computação Tadeusz Szuba chega a propor modelos formais, utilizando técnicas de inteligência artificial, para mostrar que processos computacionais distribuídos, descentralizados e paralelos, podem ser muito superiores a processos computacionais centralizados, mesmo quando estes últimos dispõem de maior capacidade de processamento. Portanto, segundo esse autor, os fenômenos de inteligência coletiva podem ser explicados na medida em que as pessoas agem como unidades de processamento paralelas, descentralizadas e independentes.
O economista Samir Rihani também destaca a importância dos processos de aprendizado coletivo como um dos elementos centrais para o entendimento do desenvolvimento como um processo evolutivo. Segundo esse autor, as mudanças observadas nas sociedades não dizem respeito apenas às formas como elas se organizam, mas também à maneira como os indivíduos passam a compreendê-la a partir das suas experiências e da aquisição de novas informações.
A liberdade substantiva e a inteligência coletiva, por consequência, são propriedades sistêmicas essenciais a serem promovidas em ações de desenvolvimento.
Nem “mais mercado”, nem “mais Estado”, mas por um aprofundamento da democracia
Afirmar que a promoção do desenvolvimento sustentável é essencialmente a promoção da liberdade substantiva e da inteligência coletiva significa subordinar as propostas de solução de problemas específicos do desenvolvimento sustentável ao caráter evolutivo das sociedades humanas. É entender que a solução dos problemas sociais, inclusive os relacionados ao desenvolvimento sustentável, passa por um amplo processo de aprendizado da sociedade como um todo, e não pela sua organização, de forma centralizada, por alguma das suas partes, tais como o Estado, o mercado, a comunidade científica ou organizações da sociedade civil.
A interpretação das sociedades humanas como sistemas complexos auto-organizados tem, portanto, profundas consequências sobre as formas de promoção do desenvolvimento sustentável. Segundo esta visão, promover o desenvolvimento sustentável não significa estimular supostos mecanismos espontâneos de regulação econômica, tal como o mercado, na medida em que este é apenas uma dentre várias instâncias importantes para o funcionamento da economia e, portanto, para o desenvolvimento sustentável.
Da mesma forma, a abordagem do desenvolvimento sustentável aqui proposta não implica na defesa de um papel proeminente do Estado na organização da sociedade, pois ainda que o Estado seja uma instituição cujo funcionamento é uma condição necessária para a reprodução das sociedades contemporâneas, ele não deixa de ser uma instituição interna à sociedade, estando sujeito aos mesmos condicionantes que regem o seu funcionamento. Em outras palavras, segundo a abordagem aqui proposta, não se pode considerar o Estado como um "deus ex-machina", capaz de organizar a sociedade a partir de um ponto de vista externo à mesma. Ao contrário, o Estado também tem que ser considerado como uma dentre várias instituições importantes para a promoção do desenvolvimento sustentável.
O mesmo se aplica aos pesquisadores e técnicos. A ciência é, evidentemente, um poderoso instrumento de aprendizagem e, neste sentido, um grande esforço pedagógico deve ser realizado por parte dos pesquisadores e técnicos para que os resultados científicos possam estar disponíveis a um grande número de pessoas, o que pode torná-los elementos de importância central do debate sobre o desenvolvimento sustentável. Ao desempenhar o seu papel nesse debate, no entanto, pesquisadores e técnicos devem considerar os demais agentes sociais como verdadeiros interlocutores, legítimos e qualificados, pois apenas assim é possível promover o desenvolvimento sustentável a partir de uma visão evolutiva da sociedade.
As consequências da consideração do desenvolvimento sustentável como um processo aberto e evolutivo, portanto, vão muito além da necessidade da elaboração de métodos científicos mais adequados à compreensão da sua complexidade. Tal consideração implica também em mudanças profundas nas concepções hegemônicas, altamente verticalizadas, que presidem as relações entre, de um lado, os cientistas e seus porta-vozes e, de outro, os demais grupos sociais, tornando assim a atividade científica um importante instrumento de democratização da sociedade.
Benedito Silva Neto é d outor em desenvolvimento agrícola pelo Institut National Agronomique Paris-Grignon (INA-PG/França) e professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Email: bsilva@uffs.edu.br
David Basso é doutor em desenvolvimento, agricultura e sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e professor da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijui). Email: davidbasso@unijui.edu.br
(*) Este artigo é uma versão simplificada do artigo "A ciência e o desenvolvimento sustentável: para além do positivismo e da pós-modernidade" publicado em Ambiente & Sociedade, Vol. XIII, no. 2, pp.315-329, jul.-dez. 2010.
Nota de rodapé
1. Em seu livro Desenvolvimento como liberdade, publicado no Brasil em 2000, Amartya Sen define o conceito de “funcionamentos” como reflexo das várias coisas que uma pessoa pode considerar valioso fazer ou ter, podendo incluir desde as mais elementares, como ser adequadamente nutrido e livre de doenças evitáveis, até atividades ou estados pessoais muito complexos, como poder participar da vida da comunidade e ter respeito próprio ou autoestima. Já o conceito de “capacidade” de uma pessoa consiste nas combinações alternativas de funcionamentos cuja realização é factível para ela.
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