Aprendizado, letramento e leitura são processos fundamentais para a constituição do indivíduo, e quando há algum tipo de deficiência, como a visual, esses processos têm que ser ainda mais refinados e assertivos. Para os deficientes visuais, existe o braille, sistema de escrita em relevo criado por Louis Braille no século 19, composto por 64 símbolos resultantes da combinação de seis pontos, dispostos em duas colunas de três pontos, que é interpretado pelo tato.
Alguns instrumentos disponíveis no mercado permitem a reprodução de textos em braille, como máquinas de escrever, impressoras, scanner e, o mais popular, a reglete. “ Nesse aparelho, o ponto é feito em baixo relevo e da direita para a esquerda. Das tecnologias assistivas, a reglete é a mais utilizada, porém a que mais apresenta problemas na performance, como a leitura da direita para a esquerda, por isso optamos por aperfeiçoá-la”, diz Aline Otalara, mestre em Educação e doutoranda em Educação Escolar, fundadora da empresa Tecnologia e Ciência Educacional (Tece), associada à incubadora tecnológica da Unesp de Rio Claro (Incunesp).
Otalara foi pesquisadora-coordenadora do projeto “Desenvolvimento de tecnologias assistivas para pessoas cegas ou com baixa visão”, na linha de fomento de Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da Fapesp, e após nove anos de pesquisa desenvolveu a reglete positiva. Nesse novo instrumento, os pontos já são escritos em alto relevo, possibilitando a leitura do texto da esquerda para a direita.
A pesquisadora, que lecionava para um aluno cego, começou a desenvolver o aparelho por interesse próprio, pois constatou que crianças cegas matriculadas no ensino fundamental cometiam erros de grafia diferentes dos das outras crianças com visão completa. Junto a professores de física da Unesp de Rio Claro, deficientes visuais e profissionais de centros de reabilitação, foi elaborada uma lista com especificidades que faltavam à reglete comum e que ajudariam a melhorar seu rendimento. Posteriormente foram criados protótipos a partir da experimentação com alteração de sericidade e distanciamento de pontos e células até chegar a uma medida que proporcionasse escrita legível. Os protótipos foram levados para testes a instituições de diversas cidades da região de Rio Claro, além de São Paulo e Rio de Janeiro.
No início de 2004 receberam apoio da Fapesp, com recursos voltados para a contratação de profissionais como pedagogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, engenheiros de materiais, além de financiar viagens de campo para os testes. A hipótese que a reglete positiva facilitaria a alfabetização e adaptação ao braille foi confirmada, e o aprendizado foi 40% mais rápido com esse dispositivo. “Com isso, há um ganho na alfabetização, pois os professores percebem que agiliza o aprendizado de alunos cegos, que antes apreendiam uma quantidade menor de informação pela dificuldade de absorção de conteúdo, além de alterar o interesse das pessoas em aprender o código, pois quebra a resistência de incorporar o braille no dia a dia tanto para deficientes visuais quanto para seus professores e familiares”, afirma Otalara.
Em um ano de vendas os concorrentes foram obrigados a reduzir o preço de seus aparelhos, pois a reglete positiva custa um terço a menos que a reglete comum, gerando maior acesso a esse tipo de tecnologia assistida. A renda das vendas é destinada a fundos de investimento para pesquisas de aperfeiçoamento de novas tecnologias da área. “O braille continua a única forma de leitura para deficientes visuais. Leitor de tela e audiolivro são ferramentas auditivas, não é a mesma coisa. O cego não reconhece a palavra”, pondera a pesquisadora.
Audiodescrição
Outro recurso de acessibilidade à informação a deficientes visuais é a audiodescrição, tecnologia assistida que amplia as possibilidades de entendimento. “No cinema, por exemplo, sem a audiodescrição, é possível compreender o filme, porém nas cenas silenciosas não se percebe o que está acontecendo com relação à mudança de tempo, espaço, caracterização de personagens, cenário, movimento de câmera, montagem de vídeo clipe, em que as câmeras se movimentam rapidamente, ou um plano geral, mais lento, sem corte... Tudo isso faz parte da linguagem do cinema, e a audiodescrição fornece as informações do visível, ampliando o entendimento da pessoa”, explica Bell Machado, audiodescritora, assessora na Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida de Campinas e mestranda em multimeios no Instituto de Artes da Unicamp.
A audiodescrição pode ser utilizada em qualquer situação com informação visual, como passeios turísticos, informática, televisão, salas de aula, atividades culturais e audiovisuais no geral, como teatro, ópera, cinema, espetáculo de dança e palestras. “Há várias áreas que as pessoas podem se especializar. Há, por exemplo, a descrição de imagens estáticas, na qual é preciso grande base em história da arte para realizar esse trabalho, ter ciência das cores que o pintor utilizou, o motivo de sua utilização, a técnica das pinceladas, o estilo. Trabalhamos com as metáforas óticas para educar visualmente a pessoa com deficiência visual. No teatro, a audiodescrição é ao vivo, devido à improvisação dos atores”, conta Machado. No cinema, o filme é colocado na tela, e ele possui minutagem (time code). “Em filmes europeus, iranianos e asiáticos os diálogos são poucos e pausados, então há tempo suficiente para fazer a descrição detalhada de cenas, movimentos e personagens. Já numa produção do Woody Allen, que é extremamente rápida e na qual vários personagens falam ao mesmo tempo, é preciso encontrar uma brecha numa minutagem específica para realizar essa descrição, é mais trabalhoso. O roteiro de audiodescrição fica muito parecido com o roteiro original do diretor”, complementa.
A questão fundamental da audiodescrição no cinema, tese de mestrado de Machado, é a pluralidade do olhar do audiodescritor, considerada uma tradução visual intersemiótica, na qual cada indivíduo dá seu significado para as coisas, seu conceito sobre algum objeto. “Ao mesmo tempo em que é uma tradução visual, é também uma criação artística, estou fazendo uma tradução do que o meu olhar reparou naquele momento. Cada audiodescritor faz sua tradução de uma maneira, considerando a imagem que achar relevante, seguindo as normas da ABNT de audiodescrição”, explica.
Desde 2006 está aprovada a lei que obriga as emissoras de televisão abertas a exibirem duas horas de programação com audiodescrição por semana, e é a própria emissora que escolhe qual programa terá esse recurso, comumente encontrado nos filmes. Basta apertar a tecla SAP duas vezes para entrar na audiodescrição da TV. Apesar dessa iniciativa, o tempo definido é insuficiente, e grupos formados por políticos, comunicadores, professores, audiodescritores e deficientes visuais estão engajados para ampliar a quantidade de horas de audiodescrição na TV aberta.
Outro aspecto frisado por Machado foi a importância de inserir a atividade nas universidades para desenvolver estudos na área, desfragmentando as informações sobre inclusão. “Existem 35 milhões de pessoas com deficiência visual no Brasil, é preciso ampliar o entendimento e conceitos da condição, e a audiodescrição cria uma nova visão de mundo, de olhar a vida, e proporciona autonomia intelectual desse indivíduo. Não existe inclusão social sem a autonomia intelectual, e ela só existe quando há liberdade do relacionamento do deficiente visual com o mundo em sua plenitude. Quanto mais ele assistir a filmes que contemplem a linguagem cinematográfica e quanto mais ele se apropriar dessas terminologias e artifícios, é proporcionada melhor fruição do cinema, desenvolvendo olhar crítico sobre as produções”, afirma a audiodescritora.
O fenômeno da “desbraillização”
Porém, com o advento de todas as tecnologias assistivas, o que se percebe é que em vez de auxiliar o processo de aprendizado, elas estão substituindo a leitura em braille. Segundo Maria da Glória de Souza Almeida, professora e chefe de gabinete da direção-geral do Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro, centro de referência nacional na área, estamos vivendo um fenômeno mundial de “desbraillização”. “Hoje temos recursos atraentes demais e que não exigem sacrifício, como os audiolivros, e isso traz certa acomodação ao deficiente visual. Temos uma geração de pessoas que não querem ler em braille, só ouvir. O audiolivro, o livro digital, é muito importante, e colocou o cego na contemporaneidade, pois quase tudo é disponibilizado simultaneamente para os deficientes visuais. Porém negar o sistema de escrita e leitura é um absurdo, a leitura é extremamente importante, e quando há convivência com o livro a fruição da obra é mais profunda, uma simbiose perfeita entre autor-leitor”, justifica a professora, que é deficiente visual.
Ainda de acordo com Almeida, se a criança não for habituada a ler e escrever com as próprias mãos, ela não vai querer fazer isso posteriormente, já que é mais cômodo digitar e ouvir o trabalho do que escrevê-lo manualmente e ter que corrigi-lo depois. Para ela, o computador precisa ser algo complementar, e não o carro-chefe da educação das crianças, sejam elas que enxerguem ou não.
Os professores também necessitam se preparar para lidar com essa questão tão comum na sala de aula. “As escolas têm que ser instrumentalizadas para que os deficientes visuais tenham visão mais ampla de conhecimento. A reglete requer muita precisão da pessoa, e se ela não tem o tato bem desenvolvido, a leitura do braille também se torna complicada. Porém tudo tem jeito quando o professor pode e sabe trabalhar”, afirma Almeida. Ela cita o exemplo de pessoas que devido a problemas orgânicos, em especial neurológicos, não desenvolveram o tato, não possuindo a parte motora refinada que o braille exige, e a consequência é a frustração. Nesses casos, a tecnologia está à disposição. “Não é decretar que daqui para frente somente um método é utilizável, a liberdade de escolha tem que ser exercida, e não imposta. Como já dizia Paulo Freire, não há educação imposta como não há amor imposto. A educação é abertura de caminhos, alavanca, promove o ser humano em todos os sentidos, na parte intelectual, profissional, social. A pessoa só é humanizada de fato quando ela tem todos esses ingredientes bem trabalhados e refinados”, argumenta.
Almeida afirma que, para que o processo de aprendizado seja eficaz, é preciso diagnosticar e identificar o aluno deficiente visual: saber quem ele é, o que quer, qual grupo social, cultural e econômico pertence, como é a família, e a partir daí fazer um planejamento que possa dar uma caminhada menos complicada e atrelada ao sucesso pessoal. O tripé acessibilidade, inclusão e cidadania é que vai ditar o sucesso da empreitada, dando autonomia, independência, capacidade de gerenciar a sustentação de atitudes. E, mais importante, a inclusão da família no processo. “A família tem que andar lado a lado com a escola, e o professor deve orientar a família para não superproteger ou excluir as crianças. É preciso ter a mente aberta, direcionando ao outro um olhar além da deficiência”, finaliza.
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