Felicidade
como direito? Sim, há, no Brasil, um Projeto de Emenda à
Constituição – a PEC
10/2010, apelidada de PEC da Felicidade – que
propõe alterar o artigo 6º da Constituição Federal com a
finalidade de “incluir o direito à busca da felicidade por cada
indivíduo e pela sociedade, mediante a dotação pelo Estado e pela
própria sociedade das adequadas condições de exercício desse
direito”. A proposta, apesar de aprovada pela Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) do Senado no final de 2010, aguarda
tramitação, mas coloca em evidência que a busca pela felicidade e
pelo bem-estar coletivo já se consolidou como temática quando o
assunto é desenvolvimento social – e também econômico.
Trata-se
de uma tendência mundial que vem se fortalecendo nos últimos anos.
Na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento
Sustentável, a Rio+20, realizada em 2012 no Rio de Janeiro, os
chefes de Estado discutiram novos modelos de indicadores de
desenvolvimento que fossem capazes de incorporar avaliações de
custos ambientais e sociais. “Precisamos de um novo paradigma
econômico que reconheça a paridade entre os três pilares do
desenvolvimento sustentável. O bem-estar social, econômico e
ambiental são indivisíveis”, discursou o secretário-geral da
ONU, Ban Ki-moon, durante o
encontro. Na ocasião, José Mujica, presidente do Uruguai, também
usou seu discurso
para criticar o atual
estímulo ao consumo em detrimento do bem-estar e da felicidade das
populações.
O
que está em cheque é, sobretudo, a incapacidade do PIB (Produto
Interno Bruto) em refletir o bem-estar em cada nação. Criado na
década de 1930 por Simon Kuznets (Nobel de Economia de 1971)
e Richard Stone (Nobel de Economia em 1984), o índice leva em conta
a soma monetária de todos os bens e serviços produzidos durante um
período específico. Nos países o PIB é, em geral, usado para
direcionar investimentos, definir orçamentos governamentais e como
indicador para o Banco Mundial. No Brasil, ele é calculado pelo IBGE
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) desde 1990 e serve
como base, por exemplo, para o reajuste anual do salário mínimo.
Mas,
para Ladislau Dowbor, doutor em ciências econômicas pela Escola
Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia e professor de
economia da PUC-São Paulo, fazer o cálculo de desenvolvimento de um
país usando apenas o PIB não faz sentido quando o objetivo for
melhorar a qualidade de vida da população. “A composição do PIB
é muito enganadora. Ele mede a intensidade de uso dos recursos, e
não os resultados. Ao se construir hospitais de luxo, por exemplo,
não importa se a população continua doente: haverá melhora no
PIB”, diz. Dowbor cita também o aumento da criminalidade como um
fator de elevação do PIB, uma vez que obriga as pessoas a gastar
com medidas de segurança. Mas o resultado disso para a sociedade não
é positivo.
Assim,
esse parâmetro não é capaz de indicar o benefício das riquezas
geradas para a sociedade, não considera a distribuição de renda,
nem o quanto se reverte em qualidade de vida. Nos anos de 1970 e
1980, o PIB passou a ser colocado em questão por novos pensadores da
economia. O próprio Kuznets
já havia alertado que “o bem-estar de uma nação dificilmente
pode ser inferido a partir da medida da renda nacional”.
PIB
x FIB
O
Butão se tornou o caso mais emblemático do uso de novos parâmetros
para medir o desenvolvimento levando em consideração a felicidade
da população. O pequeno país asiático de 725 mil habitantes que
fica no Himalaia, entre a China e a Índia, foi pioneiro ao criar o
índice de Felicidade Interna Bruta (FIB) nos anos de 1970. Karma
Ura, atual presidente do Center
for Bhutan Studies, avaliou recentemente que os caminhos que
levam ao crescimento econômico e à redução da pobreza são
diferentes. A visão de curto prazo para o crescimento impede que a
sociedade olhe para as gerações futuras e respeite o trabalho das
gerações passadas. Ura afirmou que indicadores alternativos, como o
de felicidade, podem levar a um futuro mais próspero para a
humanidade.
Essa
necessidade de buscar alternativas ao PIB como balizador do
desenvolvimento foi reconhecida pela Organização das Nações
Unidas (ONU), que adotou o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH),
criado em 1993 pelo economista Mahbub ul Haq, com a colaboração de
Amartya Sen (Nobel de Economia de 1998). O IDH, que passou a ser
usado no Relatório do Desenvolvimento Humano, coordenado pelo
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), leva em
conta parâmetros como educação, renda e longevidade.
O
índice abrange aspectos importantes da qualidade de vida, mas tem a
fragilidade de não permitir comparações entre níveis menores,
como bairros de uma grande cidade, ou questões subjetivas, como
requerem os defensores da economia da felicidade. Andrea Bolzon,
coordenadora do Relatório de Desenvolvimento Humano no Brasil,
explica que o IDH serve como alerta para uma primeira análise das
localidades, enquanto outros índices e variáveis complementam esse
estudo e permitem compreender mais profundamente a realidade local.
O
próprio Pnud desenvolve índices complementares ao IDH, como o
Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade (IDHAD), o
Índice de Pobreza Multidimensional (IPM), o Índice de Desigualdade
de Gênero (IDG), entre outros. Além disso, no Brasil, o site
Atlas
do Desenvolvimento Humano Municipal – projeto
realizado pelo Pnud Brasil em parceria com Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) e a Fundação João Pinheiro –
disponibiliza o IDH-M (IDH adaptado ao nível municipal) e mais de
200 indicadores para complementar a análise da região pesquisada.
“Em
2013, foi a primeira vez que todos os 5.565 municípios brasileiros
foram avaliados. Com esse documento, temos uma visão mais ampla
sobre as necessidades locais, porque não se ficou apenas nos três
eixos do IDH. Foram apresentados outros indicadores para ajudar os
prefeitos a administrar as suas respectivas cidades”, avalia
Ladislau Dowbor. Para ele, a iniciativa do IDH-M, que ele considera o
documento mais consistente em termos de parâmetros de bem-estar
produzido no país, permitirá políticas públicas efetivas para a
população: “Agora é necessário generalizar o acesso aos dados.
Não basta elaborar o indicador; ele precisa ser traduzido de forma
fácil”, incentiva.
Ainda
assim, no Pnud e na ONU permanece a discussão sobre outras maneiras
de se medir o desenvolvimento de um país, além do aspecto econômico
e considerando que o desenvolvimento sustentável está diretamente
vinculado com a ideia de bem-estar e felicidade. Uma resolução da
Assembleia Geral das Nações Unidas de 2011 incitou os governos a
darem mais importância à felicidade e ao bem-estar na elaboração
de políticas públicas para alcançar e medir o desenvolvimento
econômico e social. Em reforço a essa ideia, em 2012, foi publicado
o primeiro Relatório Mundial da Felicidade, acompanhado pelo Pnud.
No mesmo ano, um conjunto de diretrizes internacionais foi lançado
pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) para medir o bem-estar.
A
medida da felicidade no Brasil
O
professor de finanças da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e doutor
em administração pela FEA-USP Wesley Mendes da Silva fala no
advento da terceira geração de parâmetros de desenvolvimento
nacional. “A primeira métrica foi o PIB. A segunda, o IDH (Índice
de Desenvolvimento Humano), e a terceira são as métricas de
progresso nacional, onde se leva em consideração a satisfação da
população com suas condições de vida”.
Mendes
coordena, desde 2011, um projeto conduzido pela FGV que busca
elaborar uma metodologia para avaliar o bem-estar no país.
Intitulado Well-Being
Brazil (WWB), o índice
de bem-estar brasileiro não tem o objetivo de comparar o
Brasil com outros países, nem de substituir métricas e indicadores
objetivos, como o PIB e o IDH, mas, segundo Mendes, analisar 68
questões, organizadas em dez grupos, com vistas a mensurar, de forma
inédita no país, o nível de felicidade e de bem-estar subjetivo da
população partindo de seu anseio em saúde, educação, segurança,
poder público, meio ambiente, transporte e mobilidade, família,
vida profissional e financeira, consumo e redes de relacionamento.
O
primeiro
relatório, de 60 páginas, foi publicado em janeiro
deste ano e traz a pesquisa feita em campo com 786 residentes na
cidade de São Paulo. Os resultados foram apresentados para o
presidente da Câmara Municipal e para o prefeito da cidade, Fernando
Haddad. “Nossa intenção era coletar as impressões da população
sobre o seu bem-estar para que os formadores de políticas públicas
tomassem conhecimento sobre esses anseios. Neste ano de eleições, é
possível que as informações possam ter influenciado na elaboração
de propostas”, explica Mendes.
As
próximas fases, que já têm financiamento privado, acontecerão no
Rio de Janeiro e em Brasília. “Nosso benchmark é o usado
pela prefeitura de Londres, o London
Ward Well-Being Scores, que ganhou força nas Olimpíadas de
2012. Trata-se de métricas mais sofisticadas para monitorar o
desempenho do governo, para além das existentes. Com essa pesquisa,
o padrão de avaliação não será mais a quantidade de escolas
construídas, mas a qualidade do serviço entregue por elas”,
avalia.
Outro
projeto brasileiro para medir a qualidade de vida vem sendo estudado,
desde 2004, por pesquisadores do Núcleo de Pesquisa em Qualidade de
Vida da Universidade Mackenzie. Hoje o grupo desenvolve um índice
que considera "suficientemente robusto” para sinalizar
prioridades para políticas públicas e se diferenciar em relação a
outros parâmetros. Ele também mede a qualidade de vida, mas a
partir de dados objetivos (tal como o IDH). Ao mesmo tempo, considera
as desigualdades locais e regionais a partir de diferentes dimensões
(diferentemente do IDH).
Para isso, o Índice
Multidimensional de Qualidade de Vida para os Municípios
(MIQL-M) analisa
seis dimensões: renda; educação; sobrevivência (saúde);
habitação; infraestrutura e meio ambiente; e acesso à informação.
Os microdados dos censos demográficos de 2000 e 2010, do IBGE são a
base para o levantamento feito em 2013. A partir dessa base de dados
é possível reproduzir o índice em qualquer lugar do país onde o
censo é feito.
Na
mira dos críticos
Bem-estar
é algo desejado por qualquer ser humano e, mesmo com o
reconhecimento amplo na economia e na política sobre sua importância
para o progresso social, continua em questão quais meios podem
quantificar esse conceito subjetivo e, principalmente, como traduzir
os números em propostas práticas para melhorar a vida das pessoas.
Vladimir
Fernandes Maciel, professor de economia e coordenador do Núcleo de
Pesquisa em Qualidade de Vida na Universidade Mackenzie,
analisa que os índices para questões subjetivas ainda são vistos
como curiosidade no campo econômico em geral. Eles não fazem parte
dos livros da área. Mesmo assim, estão evoluindo na forma como são
construídos e nas possibilidades de uso, quando antes tinham
aplicações muito locais. Uma das dificuldades é metodológica,
segundo o professor, já que analisar questões subjetivas exige
maior tempo e custos com entrevistas em campo conduzidas por
profissionais com preparo específico.
Maciel
afirma que os índices de felicidade e bem-estar têm uma
contribuição para a reflexão e discussão que vai além de
governos, políticas públicas e propõem pensar um sentido para a
vida. A ideia se aproxima das origens desses parâmetros quando foram
criados no Butão. Como autocrítica de um economista, o professor
lembra que a utilidade dos dados levantados é fundamental. “Nesse
mundo de profusão de índices, é preciso transformá-los em algo
para embasar políticas públicas”. Para o professor, esses índices
devem ser ferramentas que a imprensa e a sociedade compreendam, de
modo que possam se basear e ter como parâmetro para cobrar ações
de quem está no poder.
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