REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
Aids: fazer ou fazer - Carlos Vogt
Reportagens
Os caminhos e descaminhos de uma epidemia global
Rodrigo Cunha
A luta ímpar contra os big killers na África
Yurij Castelfranchi
HIV desafia a compreensão científica
Daniela Klebis
Feminização traz desafios para prevenção da infecção
Carolina Cantarino e Paula Soyama
Os soropositivos de ontem e de hoje
Flávia Gouveia e Patrícia Mariuzzo
Artigos
A evolução e distribuição social da doença no Brasil
Ana Maria de Brito
O enfrentamento da pandemia
Maria Fernanda Macedo
ONGs criam uma trincheira de luta contra a doença
Dilene Raimundo do Nascimento
O protagonismo das pessoas vivendo com HIV/Aids no combate à epidemia
Nelio José de Carvalho
Crianças e jovens vivendo com HIV/Aids: estigma e discriminação
José Ricardo Ayres, Ivan França Jr e Vera Paiva
Os vinte e cinco anos da Aids
Vicente Amato Neto e Jacyr Pasternack
A Aids em Campinas
Maria Cristina Januzzi Ilário e Salma Regina Rodrigues Balista
Resenha
Aids como ela é
Patrícia Piacentini
Entrevista
Rogério de Jesus Pedro
Entrevistado por Germana Barata
Poema
Ariadne
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Resenhas
Aids como ela é
Três histórias de personalidades que descobriram a contaminação pelo HIV nos anos 80. Depoimentos deles, de amigos e familiares mostram as aflições que vieram com a doença.
Patrícia Piacentini
09/05/2006

Uma doença mortal, com sintomas e formas de contágio incertas: assim a Aids era vista nos anos 80. O testemunho público de artistas doentes foi o começo da divulgação da enfermidade. Como os primeiros casos foram detectados em homossexuais, estava criada a relação direta da Aids com esse grupo social.


Ilustram bem esse quadro as histórias reais de personagens homossexuais – que descobriram a contaminação pelo vírus HIV nesse período – relatadas nos livros: A doença, uma experiência (1996), do cineasta e pesquisador Jean-Claude Bernardet que conta as aflições e conflitos que vieram junto com a Aids, de uma forma que leva o leitor para as horas marcadas pelo desespero, pavor e alívio vividas por ele; Cazuza - só as mães são felizes (1997), em que Lucinha Araújo conta a trajetória de seu filho Cazuza, desde a infância passando pelo diagnóstico do vírus (1987) até sua morte em 1990; e Cartas - Caio Fernando Abreu (2002), livro organizado por Ítalo Moriconi com cartas trocadas por Caio com sua família e amigos, e que apresentam relatos do escritor sobre o medo da Aids e de como ele passou a viver depois de receber a notícia de que "o teste" deu positivo, em 1994.

No livro de Bernardet, o leitor é levado imediatamente a participar do cotidiano de um paciente com Aids e da carga psicológica enfrentada por ele: suas emoções, crenças, carências e desejos; além de medo, insegurança com a auto-imagem, confiança e desconfiança da equipe médica, e também a preocupação com a opinião alheia. O autor inicia contando sobre uma consulta em que o médico o indaga sobre quando ocorreu a contaminação e ele, vítima de uma doença que ainda estava mostrando sua cara, não sabia como responder com certeza. Suspeitava que tudo tivesse começado com uma relação que teve em Paris, em 1984, época "em que ninguém se preocupava muito, ninguém falava em camisinha...". Bernardet revela que não se importava em morrer logo, só ficava com medo dos "meses de agonia, cama de hospital, a tez embaçada, o olhar dos outros".



A imagem da Aids na época era mesmo esta: a de uma pessoa muito debilitada como descreve o crítico de cinema. Basta lembrar das imagens de Cazuza, na cadeira de rodas, muito magro e com a pele amarelada. O cantor, uma das primeiras pessoas famosas a anunciar publicamente que tinha o HIV (fevereiro de 1989, no jornal Folha de S. Paulo) no Brasil, se tornou a representação da doença nos anos 80. Caio Fernando Abreu, numa carta de 1988 revela a impressão que teve sobre o cantor depois de assistir a um show: “lindo, vital, sereno. Mas você olha a cara dele e vê a cara da morte”. A exemplo de Cazuza, o escritor também comunicou o seu público que era soropositivo. Ele o fez na crônica Carta para além dos muros, publicada no jornal O Estado de S. Paulo em 21 de agosto de 1994, alguns dias depois de fazer o exame.

Ao contrário dos outros dois livros em que os sentimentos trazidos pela Aids são contados pelos próprios autores, a obra Só as mães são felizes apresenta o depoimento da mãe de Cazuza, seu desabafo, suas impressões e o peso emocional para falar sobre uma enfermidade que estava tirando a vida de seu único filho. A dificuldade em se tratar a doença tanto no Brasil como nos Estados Unidos aparece claramente no livro, uma vez que a família tinha recursos e conseguiu ter acesso a todos os avanços que estavam ocorrendo na luta contra a Aids. Um pouco antes da morte do cantor, foi montada uma espécie de UTI na casa de seus pais. João Araújo, pai do cantor, conta as dificuldades com o tratamento: “em 1987, nem mesmo os Estados Unidos (...) tinham a menor idéia do que era essa doença. (...) as primeiras recomendações foram no sentido de não se comer no mesmo prato que o doente, não usar as mesmas roupas, não beijar”. Lucinha, apesar de acompanhar dia-a-dia a piora no estado de saúde de seu filho, conta que ainda acreditava na cura da doença.

A idéia do livro de Ítalo Moriconi é, por meio das cartas, mostrar ao leitor um pouco do cotidiano de Caio F. Abreu, como em um diário. O ponto central não é a Aids, que acaba aparecendo diversas vezes, mesmo antes dele saber que estava com o HIV. Há muitas passagens em que Caio cita algum amigo, ou conhecido, que morreu por causa da síndrome e, ele mesmo, faz a associação do contágio com o homossexualismo, prevendo que deverá se cuidar. “Bem, está hospitalizado (...) Diagnóstico: Aids. É então, quando essa peste começa a sair das páginas dos jornais para atingir pessoas conhecidas que você pára e pensa ‘meu Deus, a tal doença parece que existe mesmo’. E dá medo. Porque te ameaça no que você tem de mais precioso: a sexualidade. Medo, medo, medo.” (pág. 106)

Entretanto, as cartas dão a impressão de que Caio não considera que doença o atingirá. Isso porque, em diversos momentos, ele fica doente, com gripes fortes, otites de longa duração e aftas. Acaba procurando médicos (que não estão preparados para detectar a doença e, por isso, não o aconselham a fazer o exame) e responsabiliza qualquer outro fator, como a poluição paulistana, por seus problemas de saúde. “Na verdade, não sei se estou com Aids. Eles os médicos acham que não há absolutamente nenhum sintoma. Prefiro acreditar, claro”.

Impedimentos

Além do preconceito em relação aos homossexuais, a Aids trouxe limitações aos pacientes. Cazuza, depois de assumir publicamente a doença, não conseguiu ter seu visto revalidado pelo consulado norte-americano. Bernardet precisou consertar uma prótese dentária, mas seu dentista, um pouco envergonhado, recusou-se a atendê-lo, alegando que seu consultório não estava preparado para os soropositivos, indicando, como recomendava a Associação dos Dentistas, que ele procurasse um profissional mais especializado. Caio também trata dessa situação em uma de suas cartas de 1992 enviada da França, quando fala que Israel está proibindo a entrada de portadores de HIV.

Morte programada
Os personagens dos três livros se queixavam do conceito que as pessoas tinham de que os soropositivos teriam uma morte anunciada. Bernardet, ele mesmo também faz essa associação quando está estressado, depressivo em conflito com seu trabalho de fazer um filme. Seu médico lhe diz: “Você se programou para morrer depois do filme e agora não sabe o que fazer com sua vida”. Cazuza passou por sofrimento semelhante ao conceder entrevista para a revista Veja. A capa da edição de 26 de abril de 1989 traz uma foto do cantor bastante debilitado e a seguinte manchete: Uma vítima de Aids agoniza em praça pública. Lucinha conta no livro a revolta da família pela distorção dos fatos, pela falta de sensibilidade e pelo uso apelativo que a revista fez da condição de seu filho. Os três livros apresentam a Aids de uma maneira verdadeira, com depoimentos de HIV positivos que detalham, muitas vezes até de forma irônica, todas as mudanças físicas e psicológicas e as transformações na relação com a família provocadas pela doença.

Os livros não se propõem a traçar um panorama da Aids no Brasil nos anos 80 e 90. Mas, de certa forma, vão nessa direção, porque ninguém melhor para ilustrar a síndrome do que os próprios pacientes, na sua busca pela aceitação social, pelos melhores tratamentos, novos medicamentos e pela cura.

A doença, uma experiência
Jean-Claude Bernardet Companhia das Letras: São Paulo 1996 (68 p.)

Cazuza - Só as mães são felizes
Lucinha Araújo Editora Globo: Rio de Janeiro 1997 (400 p.)

Caio Fernando Abreu - Cartas
Ítalo Moriconi Aeroplano: Rio de Janeiro 2002 (536 p.)