É bem provável que as musas de Rembrandt, Vermeer e Da Vinci ficassem desapontadas ao tentar uma carreira nas passarelas e nas capas de revista de hoje. A beleza delas, imortalizada em quadros famosos que podem ser vistos no Louvre, é bastante diferente do “belo” que se vê figurando nas capas da Vogue e nas telas de cinema. O que não quer dizer que seja um ideal mais acessível. Muito pelo contrário! “O mundo (atual) não é feito para os gordos”, avalia a psicanalista e coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (Lipis), da PUC-Rio, Joana Vilhena de Novaes.
O espaço pequeno do assento dos aviões e a numeração das roupas, que parecem ter se encolhido em muitas lojas, são exemplos nada sutis da tão falada “ditadura da magreza”. Para a psicanalista, a discriminação social (culturalmente legitimada) contra os gordos faz parte de um fenômeno mais abrangente, nomeado por Baudrillard de “moralização da beleza”. “Culpabilizar ou não dar ao sujeito o direito a uma estética que varie e que saia dessa ditadura da magreza é que gera todo esse adoecimento do qual os transtornos alimentares já são um sintoma social. As pessoas sofrem e têm uma vida empobrecida com uma sexualidade que lhes é negada”, conta.
No intuito de investigar as causas de tanta desconfiança e preconceito contra pessoas obesas nos dias de hoje, o sociólogo francês Claude Fischler aponta algumas possibilidades em seu ensaio “Obeso maligno, obeso benigno”. Ele sublinha que a gordura está associada a uma tristeza insuspeitada ou um visível descontrole, sinal de que algo não vai bem com aquele sujeito. E mais que isso: no inconsciente coletivo, o gordo pode ser até visto como um possível perturbador da ordem social. “A comida é um bem social finito e o gordo ‘come mais do que a sua parte', podendo, assim, perturbar a ordem no imaginário coletivo”, diz Fischler.
O sociólogo lembra que não é por acaso que na iconografia das charges ocidentais, o capitalista vampiresco seja, não raro, representado como um gordo que vive às custas de pobres famigerados que alimentam o maquínico sistema do capital. Joana Novaes, da PUC-Rio, concorda e completa: “O que gera essa avaliação depreciativa moral do sujeito gordo é o imaginário de que ele gerencia mal o próprio corpo e a própria vida. Essa matemática dos cuidados do corpo – que certamente são entendidos como produtividade – é mal feita. A grande antipatia é por isso. A pessoa dispõe de todos os dispositivos para tentar alcançar esse ideal, mas transgride a regra. É aquele que não compartilha das regras do jogo”. Ser gordo seria, então, imoral e, por consequência, feio.
Mas nem sempre foi assim. Houve épocas em que a gordura era vista como algo positivo e esteticamente desejável. Como lembra Novaes, já foi “parte do discurso dominante, que estabelece as regras do jogo”. A psicanalista e historiadora Dirce Sá Freire, membro do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro e autora do livro Guia do gordo e do magro, conta que “na Idade Média, quando não havia o que comer, o alimento era considerado uma ‘benção divina', pois era ele que evitava a grande mortandade que marcou a época. Não havia nenhuma valorização do corpo magro, porque ele era sinônimo de escassez, de sofrimento e de morte”. Segundo Freire, as regras do jogo mudaram (e mudam) porque valorizamos aquilo de que não dispomos e é a busca desse ideal que confere sentido para a vida no âmbito social. “É condição do humano almejar o que não tem, fazendo emergir o desejo e permitindo que este processo seja o propulsor da dinâmica da vida”, completa.
Mas quando começamos a preferir olhar ou nos parecer com modelos como Gisele Bündchen e não com as madonnas de Da Vinci, um padrão de beleza que perdurou até o século XIX? Para o historiador Peter Stearns, o “ponto de virada” se deu em um período de 20 anos entre o fim do século XIX e início do século XX, quando ter um corpo farto não mais significava riqueza e acesso fácil aos alimentos, e a preocupação com as dietas entre a classe média americana começou a aparecer. “A crescente preocupação com o corpo e o que era consumido por ele se paralelizou com o aumento de novas formas de processamento de alimentos e um novo, senão nervoso, comprometimento com uma economia de mercado comercial. Na Inglaterra, isso se derivou de uma preocupação médica do século XVIII acerca dos efeitos que se alimentar em excesso poderia ter sobre o fígado e os rins”, atesta em seu livro Fat history.
Em entrevista à ComCiência, Stearns disse que o boom do ponto de virada aconteceu mesmo por causa das mudanças encabeçadas pela indústria da moda. “Foi o interesse por ela que começou a predominar, embora viesse também acompanhado de um crescente trabalho científico sobre comida e nutrição, com a preocupação com o consumo de calorias e uma crescente percepção da nova indústria de seguros que relacionava longevidade e magreza”, avalia.
No entanto, Stearns adverte que, apesar de o “culto à magreza” ter se intensificado no início do século XX, o ser magro sempre existiu como um valor na cultura ocidental: a sabedoria grega pregava moderação e o cristianismo sempre se posicionou na contramão dos excessos da carne, o que incluía sobriedade no ato de se alimentar. “Os santos normalmente eram retratados como magros e o jejum sempre foi uma virtude entre os religiosos na Idade Média”, escreve. E, mais do que um valor estético, esse padrão que opta pela magreza assume um papel social ainda mais profundo. Segundo Stearns, “a ideia de padrão não é nova em si, mas a ênfase no ser magro, sim”, e, se a sociedade ocidental não inventasse padrões estéticos (como uma forma de restrição), teria que inventar outra coisa para dar sentido à ordem social, para que, de certa forma, pudesse canalizar impulsos da coletividade.
“Essa ordem social vem a serviço de uma ideologia – capitalista –, que certamente prescreve um ideal de perfeição, de um corpo para além da frustração. A norma social, desde a medicina higienista, está aí para organizar, normatizar, adestrar esse corpo, mas atende a essa lógica do consumo, que vem travestido atrás de todas essas práticas que levam o sujeito a crer que ele é insuficiente”, acrescenta Novaes, da PUC-Rio.
No entanto, Novaes, Stearns e Freire alertam que não se pode apenas demonizar tal padrão estético, por ser tão homogeneizante e causador de frustrações, e cair no outro extremo, na complacência completa com a obesidade. A gordura em excesso continua sendo uma doença. “Quando se tem uma perspectiva pessimista demais, parece que as práticas corporais só funcionam como forma de aprisionamento, enquadre e regulação social, o que nem sempre é verdade. Certas práticas podem até mesmo liberar o sujeito de grandes estigmas”, lembra a psicanalista da PUC-Rio. “Não se pode esquecer que a obesidade é um problema de saúde pública e um quadro clínico grave”, reitera. E, portanto, precisa ser tratado – não por uma questão estética, mas de saúde.
Para Peter Stearns, não há como negar que a gordura, em grande quantidade, faz mal ao corpo. “Nenhum entusiasmo por libertar a sociedade das algemas de fazer dietas deveria permitir ignorar as consequências mortais que a gordura pode ter – ou implicar que a ordem social possa existir sem restrições”, afirma. Freire, por sua vez, alerta que a obesidade “é uma doença reconhecida pela OMS (Organização Mundial de Saúde) e é considerada doença crônica que provoca ou acelera o desenvolvimento de muitas outras e causa a morte precoce. É multifatorial, pois o organismo humano é o resultado de diferentes interações entre o patrimônio genético, o ambiente socioeconômico, cultural e educativo, e o ambiente individual e familiar”.
Mas é importante sublinhar que isso não é motivo para que o obeso seja alijado do convívio social e nem que tenha vergonha de seu corpo. Como lembra Freire, a obesidade é uma questão multifatorial que nem sempre tem a ver com o descontrole e o ato de comer demais. Antes de tudo, o corpo “tem que ser um companheiro, não um calvário”, sustenta Novaes. “Acho que o primeiro ato de resistência é esse: fazer uma parceria com o corpo, já que ele está sempre com você e não se corre atrás dele. Esse movimento de se apropriar da própria estética já é quase transgressor. É uma grande forma de resistência você ter uma sexualidade plena num mundo que te diz que você só pode expor esse corpo se for perfeito ou que você precisa envelopá-lo se ele não estiver destituído de seus recheios. É uma grande ousadia botar as carnes de fora quando elas sobram e não colocá-las numa camisa de força”, conclui.
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