Nada parece
mais razoável do que ter uma lei que responsabilize gestores pelo não
cumprimento do desenvolvimento da educação de um povo. A educação é um direito
e um bem público, deve ser organizada pelo Estado e, portanto, quem não o faz
prejudica gerações inteiras e deve pagar por isso. De certa forma, está 400
anos atrasada. As camadas populares foram, historicamente, as mais prejudicadas
nesse processo, quando o desenvolvimento econômico não necessitava de um nível
de qualidade educacional maior. Agora, que se impõe o acesso à educação básica
como forma de aumentar a produtividade e o consumo, os empresários e seus
reformadores educacionais não saem da mídia argumentando a favor da qualidade
da educação. Mas qual qualidade?
Ninguém
discorda da ideia de que o poder público tenha que se responsabilizar pela
educação. É um direito. Mas a maneira de se “garantir” esse direito concedido
historicamente a conta-gotas e suas consequências precisam ser devidamente
consideradas. Não são poucos os relatos indicando que as atuais reformas
educacionais empresariais em aplicação pelo mundo tenham gerado mais segregação
e desigualdade acadêmica do que a “cantada” equidade (Ravitch, 2010). Se,
honestamente, o que se quer é garantir o direito à educação, tais evidências
não podem ser desconsideradas.
A qualquer
crítica de suas teses de responsabilização, os reformadores empresariais da
educação reagem contrapondo a ela a desresponsabilização, a qual seria defendida
por aqueles que não querem sua solução. Não é o caso. A questão é que por trás
desta simples dicotomia existem outros problemas que estão encobertos.
A ideia de
responsabilizar os gestores educacionais pela qualidade da educação vem de
longa data, mas no Brasil, em termos legais, começa a ganhar forma nesta
década. Vários projetos de lei foram produzidos e se encontram em tramitação no
Congresso Nacional tentando criar a base legal para a responsabilização.
Recentemente, foram reunidos em um só e, atualmente, o projeto carro-chefe ao
qual se encontram apensadas a maioria das iniciativas é o PL 7420/2006 de
autoria da deputada Raquel Teixeira, do PSDB. Abaixo mostro seus últimos passos
neste ano:
18/05/2011
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PLENÁRIO (PLEN )
§
Apresentação do Requerimento de Constituição de
Comissão Especial de Projeto n. 1801/2011, pelo Deputado Raul Henry
(PMDB-PE), que: "Requer a constituição e instalação de Comissão Especial
destinada a discutir e dar parecer aos Projetos de Lei nº 7.420/2006,
1.680/2007, 4.886/2009, 247/2007, 600/2007, 1.256/2007, 413/2011, 450/2011 e,
em especial, ao PL 8.039/2010, de autoria do Poder Executivo, todos com o
objetivo de criar a Lei de Responsabilidade Educacional". Inteiro teor
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24/05/2011
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Mesa Diretora da Câmara dos Deputados (MESA )
§
Deferido o REQ 1732/11, conforme despacho do seguinte
teor: "DEFIRO, nos termos do art. 106, do Regimento Interno da Câmara
dos Deputados, a reconstituição do Projeto de Lei n. 7.420/2006 e de seus
apensados, Projetos de Lei n. 247/2007, n. 600/2007, n. 1.256/2007, n.
1.680/2007, n. 4.886/2009, n. 8.039/2010, n. 8.042/2010, n. 413/2011 e n.
450/2011. Publique-se".
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21/06/2011
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PLENÁRIO (PLEN )
§
Apresentação do Requerimento n. 2229/2011, pelo
Deputado Audifax (PSB-ES), que: ""Requer a instalação de Comissão
Especial para discutir e dar parecer ao Projeto de Lei nº 7420, de 2006, e
seus apensados, que ''Dispõe sobre a qualidade da educação básica e a
responsabilidade dos gestores públicos na sua promoção'' - Lei de
Responsabilidade Educacional, em virtude de revisão de despacho inicial que
incluiu Comissões para proferir parecer sobre o mérito da matéria." Inteiro teor
|
Fonte: Sistema de controle de projetos da Câmara dos Deputados
Pela
informação existente no sistema de controle de projetos da Câmara dos
Deputados, acima, vê-se que a questão se encontra em mãos de uma Comissão
Especial e tramita neste momento paralelamente a outra lei, a do Plano Nacional
de Educação.
Não temos um
texto público da lei de responsabilidade educacional que possa ser tomado como
pauta para exame, pois a Comissão Especial encontra-se em constituição. O texto original do PL 7420, de 2006, certamente será profundamente alterado,
portanto, não serve de base. Mas já há na presente versão posicionamentos que
propõem a responsabilização como um processo que envolve a fiscalização da
obtenção de metas de progressão acadêmica pela escola, medidas a partir de
testes padronizados. Ou seja, não é apenas o gestor ou a destinação e aplicação
de recursos que está em jogo, mas o cumprimento de certas metas de aprendizagem
que não dependem, apenas da disponibilidade ou não de dinheiro.
A ideia de
que a qualidade da educação possa ser controlada por uma lei já indica certa
inclinação para o mote da “qualidade por decreto”. Pode-se responsabilizar os
gestores pela gerência de recursos e condições adequadas à implementação da
qualidade, mas a lei dificilmente vai parar por aí.
O exemplo
mais próximo é a lei de responsabilidade educacional americana conhecida como
"No child left behind" ("Nenhuma criança deixada para
trás"). Essa lei fixou o ano de 2014 como referência para que todas as
crianças americanas de todas as escolas fossem proficientes em leitura e
matemática. Tarefa impossível em 2001, quando foi aprovada por unanimidade por
democratas e republicanos, foi oficialmente declarada impossível no começo
deste ano quando Arne Duncan, secretário da Educação dos Estados Unidos,
declarou que 80% das escolas não terão condições de cumprir tal meta.
Mas não é
tudo. A lei americana, ao responsabilizar os gestores pela qualidade da
educação a partir de metas medidas em testes, abriu as portas aos processos de
privatização da educação americana, além de ir bater no andar de baixo – os
professores e alunos. Os gestores transferiram a responsabilização para a
ponta. O sistema está congestionado de múltiplas avaliações (até na educação
infantil) e os professores são permanentemente expostos, juntamente com as
escolas, à execração pública em ranqueamentos sucessivos. Até mesmo seus
salários, contrariando a elite séria de estatísticos americanos, estão sendo
calculados com base no desempenho dos alunos, em testes padronizados para
definir bônus, erodindo salários adequados. A conta está sendo paga pelos
professores e pelos alunos. Essa situação levou à destruição do sistema público
de educação norte-americano (Ravitch, 2010).
A despeito
de termos nomes respeitáveis na presente Comissão Especial que examinará a
matéria, poderá haver uma inclinação – inclusive pela tradição autoritária
brasileira de resolver tudo pela lei – a reproduzir a situação dos Estados
Unidos.
No caso da
lei norte-americana, as escolas que não demonstravam estar ano a ano avançando
em sua qualidade, estavam sujeitas a sanções que incluíam até mesmo o seu
fechamento e conversão em escolas privatizadas por administração de contratos
de gestão (escolas charters) via ONGs e fundações privadas. Sabe-se, hoje, que
tais escolas, em seu conjunto, não são melhores do que as públicas nos Estados
Unidos, mas o processo de destruição já está feito (Credo, 2009; 2010).
Os chamados
reformadores empresariais da educação, defensores das teses da
responsabilização, meritocracia e privatização, vão pressionar para que a lei
de responsabilidade educacional brasileira crie as bases para a privatização do
sistema educacional no Brasil, fortalecendo a ideia de pagamento por mérito.
Podem fazer
isso diretamente nesta lei, ou caso haja muita dificuldade, criando as bases
para que os estados da federação, posteriormente, possam praticar a
privatização e a meritocracia, criando legislação própria, facilitada e
ancorada na lei de responsabilidade educacional federal. Some-se a isso o fato
de que o governo Dilma tem dado indicações de que aceita recorrer à iniciativa
privada quando se trata de resolver problemas vultosos – contrariando suas
teses de campanha eleitoral.
Para
evitarmos o calvário do sistema público educacional norte-americano pós “No
child left behind”, uma lei brasileira de responsabilização deveria ser
exclusivamente voltada para a questão do gerenciamento dos recursos e condições
de trabalho. Metas acadêmicas não deveriam ser assunto de lei. É tão absurdo
quanto se ter uma lei de “responsabilidade criminal” que fixasse metas anuais
para redução de criminalidade nas delegacias de polícia.
Embora
saiba-se, como já mencionado, que o texto atual da lei de responsabilidade
educacional – originalmente apresentado no PL 7420/2006 – será modificado na
Comissão Especial que está em constituição na Câmara, ele já prevê o controle
de metas acadêmicas. Diz:
“A cada
avaliação nacional realizada, as médias de resultados observadas em cada
unidade da federação deverão ser superiores às verificadas na avaliação
anterior, devendo para tanto ser desenvolvidas ações específicas, com a
necessária alocação de recursos financeiros em volume compatível com os
esforços a serem empreendidos em cada sistema e rede pública de ensino.”
Essa
redação, apesar de não associar consequências explícitas do ponto de vista do
não alcance das metas, deixa aberta a porta para que os estados da federação
assim o façam em legislações específicas.
Na lei
norte-americana, por exemplo, as escolas são acompanhadas através de um plano
anual de progresso da escola em cada estado, o qual implementa as consequências
para o sucesso ou fracasso do plano. Em vigência desde 2001, a lei não melhorou o
desempenho dos alunos norte-americanos nos testes nacionais (NAEP) e nem nos
internacionais (Pisa). Os Estados Unidos, antes desta lei, estavam na média do
Pisa e, dez anos depois dela, continuam na média do Pisa. Portanto, ter chegado
à média do Pisa, não foi produto da lei de responsabilidade educacional
norte-americana (Ravitch, 2010).
Temos, no
momento, pelo menos duas concepções de responsabilização em pauta. Uma é voltada
para a responsabilização de cima para baixo, baseada em leis que regulam não só
idoneidade das relações financeiras, mas que incluem o controle de metas nas
escolas. A atual lei de responsabilidade educacional brasileira, para alguns,
poderá ter a função de criar as condições para que os estados possam produzir
legislação específica que fiscalize a obtenção de metas pelas escolas e permita
sua associação a consequências (bônus ou demissão, privatização etc.).
A outra
concepção está baseada em uma responsabilização participativa e democrática,
ancorada no envolvimento de todos os responsáveis pela questão educativa na
escola e nos sistemas educacionais. Para esta visão, a lei de responsabilidade
educacional não deveria tratar do controle de metas acadêmicas.
A primeira
formulação de responsabilização é uma transferência de responsabilidade para a
escola, associada a premiações ou punições. Muito conveniente para os governos
em todos os níveis. A segunda propõe uma responsabilização que exija de cada
ator do sistema educacional sua parcela de responsabilidade, em um processo de
negociação bilateral em que a escola, protagonista do processo, tem suas
responsabilidades delimitadas, assim como também os responsáveis pela
administração do sistema – em especial, na questão da criação das condições
adequadas de funcionamento do sistema educacional – carreira, salários,
infraestrutura, capacidade administrativa, etc. Nesse caso, o indicador de
sucesso não é apenas o desempenho do aluno em um teste padronizado. Este é
apenas um dos componentes da avaliação do desempenho da escola e, além disso,
há indicadores para os gestores cumprirem também (carreira, tamanho de turma,
piso salarial, recursos, infraestrutura, custo-aluno etc.).
Não será
apenas uma lei de responsabilidade educacional, entretanto, que poderá alterar
positivamente o interior da escola, passando a produzir o sucesso educacional
das crianças. É reconhecido que mais de 60% dos fatores que causam o fracasso
escolar está fora da escola. Só uma construção coletiva, no interior das
escolas, amparada pela ação dos sistemas naquilo que lhes compete poderá
implementar metas acadêmicas superiores. O controle externo sem essa
legitimação política interna na escola somente produzirá competição, fraudes e
destruição das relações internas da escola. A miséria é o maior inimigo do
sucesso educacional. Lutar contra ela supõe uma articulação entre esferas do
poder público e não apenas uma “solução educacional”.
Os
educadores deveriam estar tão preocupados com a lei de responsabilidade
educacional em tramitação na Câmara, como estão com o Plano Nacional de
Educação (PNE) que corre paralelo. Infelizmente, não é assim. Todas as atenções
estão concentradas no PNE, enquanto a lei de responsabilidade corre solta.
Luiz Carlos de Freitas é docente da
Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
http://avaliacaoeducacional.zip.net
Referências:
Brasil.
Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 7420 de autoria de Raquel Teixeira. 2006.
Credo
(2009). Multiple Choice: charter school performance in 16 states. Acesso em 10
de novembro de 2010, disponível em http://credo.stanford.edu/reports/MULTIPLE_CHOICE_CREDO.pdf
Credo
(2010). Charter School Performance in New York City. Acesso em 28 de janeiro de
2011, disponível em http://credo.stanford.edu/reports/NYC%202009%20_CREDO.pdf
Ravitch, D. Death and life of the great American
School System. New York: Basic Books, 2010
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