Reportagem |
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Os números da paixão |
Por Flávia Gouveia
10/08/2006
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Quartas de final da Copa do Mundo de 2006, Argentina e Alemanha
disputam uma vaga nas semifinais e a partida vai para os
pênaltis. Antes da cobrança, o goleiro
alemão Jens Lehmann recebe da comissão
técnica um pedaço de papel com os nomes dos
batedores argentinos e a direção onde cada um
provavelmente fará a cobrança, com base nas
estatísticas dos últimos três anos.
Entre um pênalti e outro, Lehmann confere sua "cola" e
então posiciona-se corretamente para defender os chutes de
Ayala e Cambiasso. Os números levantados pelo
suíço Urs Siegenthaler, contratado pelo
técnico Jüergen Klinsmann, influenciaram a atitude
do goleiro alemão, que definiu a vitória da
equipe anfitriã. Será mesmo que, como se costuma
dizer, o "se" não entra em campo e que futebol
não é mais "é uma caixinha de
surpresas"?
Embora o resultado de um jogo seja sempre imprevisível, as
probabilidades de vitória, empate e derrota não
são. Há 70 anos, a estatística,
ciência secular utilizada para diversas finalidades,
colocou-se também a serviço do jogo mais popular
do mundo e hoje é considerada uma ferramenta útil
por profissionais e torcedores. Desde então, a forma como
essa ciência atua sobre o futebol tem evoluído e
hoje já se produzem relatórios detalhados com
estatísticas sobre os clubes e os jogadores. O professor do
Departamento de Matemática Aplicada da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp) Laercio Vendite, por exemplo, desenvolveu uma
metodologia de análise das equipes de futebol com base em
uma série de indicadores estatísticos. Ele
já analisou mais de 600 partidas. "Levantamos dados que
mostram o perfil do time, coletivamente ou individualmente. Em
mãos adequadas, esses dados podem levar a
decisões mais objetivas e eficientes", afirma Vendite.
Os relatórios produzidos pelo grupo coordenado por Vendite
incluem não apenas as estatísticas de cada
partida de um campeonato (o chamado scout), por equipe e por jogador,
mas também informações não
quantitativas, como a localização dos lances
dentro do campo e o momento da partida em que os lances ocorreram,
além de mostrarem as diferenças de desempenho dos
jogadores no primeiro e no segundo tempo e o comportamento dos times
adversários. Desde 1996, Vendite vem utilizando sua
metodologia junto ao clube campineiro Ponte Preta, do qual se tornou
também diretor do Departamento de Estatística.
"Ter uma ferramenta como essa não determina a
vitória nas partidas e nos campeonatos, mas pode ajudar
muito", diz o matemático. Atualmente, a Ponte
está em uma posição de risco de
rebaixamento no Campeonato Brasileiro, mas Vendite lembra que "depois
da implantação dessas
avaliações no clube, o time já
conseguiu acessos ao futebol de elite tanto no Campeonato Brasileiro
como no Paulista, uma ótima performance nos Brasileiros de
1999 e 2002 e Paulista 2000, Paulista 2001 e Copa Brasil 2001."
São oito os quesitos levantados durante as partidas, nas
avaliações coordenadas por Vendite: passes,
desarmes, cruzamentos, finalizações, faltas,
atuações do goleiro e do adversário e
sistema de jogo. Para cada um deles há um
responsável, que acompanha a partida com a
atenção voltada estritamente para aquele quesito.
Ao final, formula-se um conjunto de tabelas e gráficos que
resumem a partida e podem influenciar as decisões do
técnico. "Acredito que nem mesmo a
seleção brasileira utilize uma análise
com esse grau de detalhamento", diz Vendite. "A
constatação numérica dos erros de
Roberto Carlos e Cafu na Copa do Mundo talvez tivesse levado Parreira a
substituí-los, alterando o resultado do campeonato".
Prevendo resultados
Quando se trata de previsões de resultados, a
estatatística também é considerada por
muitos uma boa ferramenta. Para Sérgio Wechsler, professor
do Instituto de Matemática e Estatística da
Universidade de São Paulo (USP), as estatísticas
do scout são úteis para os treinadores e
técnicos dos clubes, mas também os torcedores e
apostadores estão interessados nas previsões de
resultados que se baseiam na análise das probabilidades. De
acordo com Wechsler, "há uma vasta gama de modelos para
calcular essas probabilidades, com diversas variáveis, mas a
variável mais importante é a dos 'resultados
passados', seguida por 'mando de campo' se o time joga ou
não na sua cidade". Marcelo Leme de Arruda, um dos alunos
orientados por Wechsler, dedicou sua dissertação
de mestrado, defendida em 2001, aos modelos estatísticos de
previsão de resultados das partidas de futebol. Em sua
dissertação, Arruda testou 11 modelos de
previsão de resultados para eleger o melhor, denominado
"Modelo SD" (de Soma e Diferença), que ele utiliza
até hoje. Atualmente ele é membro-diretor da
RSSSF (The Rec. Sport. Soccer Statistics Foundation) e idealizador do
site Chance de Gol (www.chancedegol.com.br).
"O modelo resolve um sistema com diversas
equações, cada uma delas representando o
resultado de uma partida", diz Arruda. O que se obtém
são as probabilidades de vitória, empate ou
derrota. Arruda explica que a probabilidade não determina o
que vai acontecer, mas dimensiona as possibilidades. Assim,
é possível dizer qual é a mais
provável. De acordo com as previsões de Arruda, o
Brasil era o favorito para a Copa do Mundo 2006. "O Brasil tinha 21,3%
de probabilidade de vencer o torneio antes do início dos
jogos. Era o maior percentual entre todas as equipes, mas ainda assim
havia quase 80% de chances de perder, divididos entre os 31 outros
times", afirma Arruda. Antes do início das quartas de final
esse valor estava em 32%, contra apenas 6,7% de probabilidade de a
França vencer a Copa.
Mas não se pode dizer que as previsões de Arruda
falharam. Ele afirma que, "tecnicamente, só se poderia falar
em erro ou acerto se fosse dito que há 100% de chances de
algo acontecer. E 100% não existe para cálculos
de vitória, empate ou derrota". O que é
possível afirmar com absoluta certeza é a
condição de classificação
de uma equipe, pois há situações em
que, mesmo que o time seja derrotado em todos os jogos dali para
frente, a pontuação necessária para ir
à próxima fase já está
garantida. Nos últimos oito anos, as previsões de
Arruda mostraram-se mais satisfatórias do que a simples
afirmação de que há 1/3 de chances
para cada resultado. De todos os jogos analisados, 54% apresentaram
resultado real em conformidade com o resultado mais
provável, calculado pelo modelo de Arruda. O segundo
resultado mais provável ocorreu efetivamente em 32% dos
casos e o resultado considerado menos provável foi observado
em apenas 14% das partidas. "É um bom desempenho do modelo",
diz Arruda.
A ajuda de um software
O pesquisador do Departamento de Informática da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio) Celso Carneiro Ribeiro e o então
pesquisador do mesmo departamento (hoje na Universidade Federal de
Minas Gerais) Sebastián Urrutia desenvolveram um software,
ao qual deram o nome de Futmax, que
provê informações detalhadas a cada
rodada de um campeonato, sobre as condições
exatas de classificação e o desempenho das
equipes de diferentes competições
futebolísticas. As últimas
competições acompanhadas pelo Futmax foram as da
disputa pelas quatro vagas na Taça Libertadores da
América através do Campeonato Brasileiro e as
eliminatórias sul-americanas para a Copa do Mundo 2006, mas
ele deve voltar a ser utilizado no segundo turno do Campeonato
Brasileiro, dentro de um mês e meio. "No início do
campeonato há poucas informações que
auxiliem os cálculos. Os dados fornecidos pelo Futmax passam
a se tornar interessantes a partir do segundo turno", diz Ribeiro.
Para cada equipe participante dessas competições,
o Futmax informa o número de jogos já jogados e
de pontos já conquistados, o número de pontos
ainda a conquistar para garantir a classificação,
independentemente de outros resultados dos adversários, e o
número mínimo de pontos a conquistar para ainda
manter chances de classificação, dependendo de
resultados de outros times. De acordo com Ribeiro, esses
números, obtidos por meio da técnica de
programação linear inteira, são
precisos e mais consistentes do que as
informações baseadas em estimativas de
probabilidade de vitória. "São resultados de um
modelo matemático exato, que considera exaustivamente todas
as possibilidades de combinação de
resultados”, diz.
Esquemas táticos
A estatística pode ser utilizada no futebol
também na elaboração de
táticas de jogo, com base em análises dos
prováveis comportamentos dos times adversários. O
uso cada vez mais sistemático dessa ciência no
futebol comprova a profissionalização tanto de
clubes quanto de comissões técnicas. Essa forma
de pensar o esporte influencia a maneira de se jogar. Os times buscam
saídas para melhorar o desempenho em campo. Tanto
é assim que o esquema tático usado pela maioria
dos treinadores mudou nos últimos 30 anos, assim como o
preparo físico dos jogadores. O tradicional 4-3-3 foi
substuído pelo 4-4-2. O ápice desse processo
aconteceu durante a Copa de 1982, quando o técnico da
seleção brasileira Telê Santana adotou
o esquema 4-4-2 e sofreu duras críticas. Jornalistas e
apaixonados por futebol organizaram uma verdadeira "campanha" que pedia
a volta do antigo esquema 4-3-3. A "campanha" ficou conhecida como
"Bota o ponta Telê", bordão cunhado pelo humorista
Jô Soares.
O esquema 4-3-3 significa que o time é formado por quatro
defensores (um na lateral esquerda, um na lateral direita e dois na
"região da área"), três meio-campistas
(um que apóia a defesa e dois que apóiam o
ataque) e três atacantes (centroavante, ponta direita e ponta
esquerda). Nesse esquema, os jogadores têm menos mobilidade
em campo, ou seja, os defensores só fazem a
marcação e os atacantes se preocupam em fazer
gols.
Já o esquema 4-4-2 é composto por quatro
defensores (os mesmos dois zagueiros e dois laterais), quatro
meio-campistas (dois que apóiam a defesa e dois que
apóiam o ataque) e dois atacantes. Nesse esquema
não há pontas, os laterais apóiam o
ataque. A seleção brasileira de 1982, que jogava
no tão criticado esquema 4-4-2, é hoje vista como
uma das melhores seleções do mundo. Apesar de
jogar sem pontas, ela tinha um meio-campo extremamente criativo. Os
esquemas táticos mais comuns na atualidade são o
4-4-2, o 3-5-2 e o 4-5-1. Mesmo com as mudanças observadas
nos últimos anos, para Vendite, "esse instrumental
numérico deveria ser mais utilizado pelos preparadores
físicos e pelos técnicos dos clubes".
Estatísticas, probabilidades, modelos, previsões.
Esse vasto universo matemático presente no futebol
não foi capaz de tirar-lhe o elemento fundamental que
emociona o torcedor, chamado acaso. "Os números
são frios, nós os analisamos e os tornamos
úteis para as partidas futuras, mas o suspense e a surpresa
estarão sempre presentes", diz Vendite.
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