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Reportagem
Morar na rua é trabalhar e resistir à repressão
Por Carolina Cantarino
10/06/2007

A visita do papa, em maio último, trouxe à tona algumas das práticas que as prefeituras brasileiras costumam dispensar aos moradores de rua. Por conta da hospedagem de Bento XVI no centro da cidade de São Paulo, a subprefeitura da Sé removeu os moradores de rua da região para albergues da cidade. A guarda metropolitana foi acusada de recolher seus objetos, apreender suas carroças e, para fazer a “limpeza” de locais como a Praça da Sé e o Vale do Anhangabaú, utilizou caminhões-pipa, jogando água, durante a noite, naqueles que dormiam na região, para expulsá-los.

Em Aparecida do Norte também houve remoção de moradores de rua, que foram mandados para outras cidades da região, prática, aliás, recorrente em municípios brasileiros, já que muitos “resolvem o problema” dos moradores de rua recolhendo e mandando-os para outras localidades. A prefeitura de Apucarana (PR), em março deste ano, fez isso: a medida foi assumida pela administração municipal e houve a ameaça, para quem quisesse retornar, com a possibilidade de ser enquadrado na lei da vadiagem e da mendicância, consideradas como atividades de contravenção pelo Código Penal brasileiro. No final de 2006, em Paranaguá, no mesmo estado, moradores de rua foram recolhidos pela prefeitura durante a noite e abandonados em cidades vizinhas. Houve denúncia do Ministério Público de que eles chegaram a ser agredidos e mesmo torturados pela guarda municipal.

Na história recente da cidade de São Paulo a chamada rampa “antimendigo” que começou a ser construída, em setembro de 2005, na passagem subterrânea que liga a avenida Paulista a Doutor Arnaldo, também gerou polêmica. Pressionada por uma série de entidades ligadas aos moradores de rua, a prefeitura decidiu pela paralisação da obra. Mas ela acabou sendo adotada por outros municípios como Campinas, onde a mesma tecnologia foi utilizada na reforma de um conhecido viaduto da cidade.

No Rio de Janeiro, por sua vez, em outubro do ano passado, Maria Dora dos Santos Arbex foi condecorada pela Câmara Municipal, por ter baleado um morador de rua do Flamengo, que tentou roubá-la. “Se não tem albergue ou não quer ficar em albergue, então fica no meio do mar. Bota num navio e descarrega longe. Na minha calçada, na minha rua é que não vai ficar”, discursou a aposentada durante a “homenagem” promovida pelo vereador Carlos Bolsonaro. Aliás, segundo ele, foi “uma pena que o tiro tenha pegado na mão e não no coração pois seria um vagabundo a menos”.

Casos e mais casos como esses se multiplicam no cotidiano das médias e grandes cidades brasileiras, ganhando às vezes pouca ou nenhuma visibilidade. Como explicar toda essa violência contra os moradores de rua?

“A violência a que estão submetidos os moradores de rua refere-se, além da violência física e moral, às políticas públicas que não levam em conta os valores, as práticas, a cultura e os diversos engajamentos de indivíduos e grupos excluídos no espaço público da rua, seja para fugir do pagamento da passagem de volta para o trabalho, seja para fugir do pagamento do aluguel, ou como alcoólatras ou doentes mentais abandonados pela família e pelo Estado”, lembra Denise Bomtempo Birche de Carvalho, professora do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília, num artigo escrito por ocasião do massacre ocorrido em 2004, quando sete moradores de rua foram assassinados em São Paulo. Os crimes nunca foram totalmente esclarecidos. O Ministério Público apresentou denúncia contra 13 policiais militares e seguranças privados mas o Tribunal de Justiça aceitou apenas duas delas.

Segundo Carvalho, a violência contra os moradores de rua poderia ainda ser explicada a partir da suposta ameaça que eles representariam em relação a certos valores sociais. “Como os moradores de rua estão excluídos dos mundos socialmente aceitos (a casa, a família e o trabalho), suas práticas incomodam nossa sociedade extremamente preconceituosa, haja vista que os mendigos dos grandes centros urbanos continuam sendo encarados como parasitas, prevalecendo ainda, na contemporaneidade, a visão higienista das elites brasileiras do passado”.

Quem são os moradores de rua?

A população de rua não faz parte dos recenseamentos do IBGE por não ter domicílio. A ausência de dados dificulta ainda mais a formulação de políticas públicas para essa população. Em São Paulo, a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) realizou os chamados Primeiro e Segundo Censos da População de Moradores de Rua da Cidade de São Paulo, nos anos de 2000 e 2003.

A metodologia utilizada foi dividida em duas etapas. A primeira consistiu numa observação para a contagem da população de rua. Tendo em vista a circulação intensa dessas pessoas pela cidade, ao longo do dia, a equipe trabalhou à noite, concentrando-se nas filas dos albergues e outros pontos da cidade nos quais os moradores de rua costumam dormir. Foram identificadas as formas como circulam por São Paulo, quais os distritos em que mais se concentram e os principais pontos de reunião (praças, viadutos, grandes avenidas, áreas comerciais com muito movimento durante o dia e desertas à noite, locais próximos a igrejas e albergues): 54% habitam a região central da cidade.

No ano de 2000, o Censo identificou 8.088 moradores de rua em São Paulo. Um pouco mais da metade deles foi encontrada nas ruas da cidade e o restante em albergues. No Censo de 2003, foram contadas 10.399 pessoas. A situação, nesse ano, se inverteu: 6.186 foram localizadas em albergues e 4.213 nas ruas.

Na segunda etapa da pesquisa foram realizadas entrevistas com os moradores de rua. A partir delas é que foi traçado o perfil dessa população. A maioria é de homens negros com idade média de 40 anos, sem família e com problemas de saúde: a equipe não trabalhou com uma noção de saúde estabelecida a priori; os pesquisadores perguntavam aos moradores se eles tinham algum problema. “O conceito de saúde deles é muito diferente. Costumam dizer que estão bem e quando assumem que tem um problema é porque é muito grave. Sofreram algum tipo de violência física: facadas e atropelamentos, por exemplo. As mulheres têm sérios problemas ginecológicos. Sofrem abortos espontâneos e não contam com nenhum tipo de tratamento posterior. Muitos sofrem de depressão, principalmente os mais velhos”, conta Silvia Maria Schor, professora da Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA/USP) e que coordenou os dois censos realizados pela Fipe.

E por que essas pessoas foram parar nas ruas? Segundo Schor, a partir dos relatos dos próprios moradores de rua, as causas recorrentes que aparecem nas histórias sobre como foram viver nas ruas são o desemprego, problemas familiares e o alcoolismo. “Esses três fatores aparecem sistematicamente. Mas sempre numa combinação com pesos diferentes. É difícil definir se começaram a beber porque perderam o emprego ou o contrário. Depois de muito tempo nas ruas, principalmente, essas pessoas perdem a noção de tempo cronológico e de causalidade”. Schor salienta que costumamos contar o tempo a partir dos eventos que compõem nossa rotina: acordar, trabalhar ou ir à escola, finais de semana e etc. O cotidiano dos moradores de rua é completamente diferente. “Um evento que eles nunca se esquecem é o Natal. Eles sempre marcam a data. E sempre se referem a ela como um período em que as pessoas estão mais generosas”, lembra a pesquisadora da Fipe.

Um dos principais resultados encontrados nos dois Censos foi o de que a atividade de catador de lixo é a principal ocupação dos moradores de rua da cidade. Assim eles estão deixando de depender de doações ou da mendicância para sobreviver. “É um mito dizer que eles vivem só de esmolas. Com a catação de lixo, eles conseguem uma renda monetária, embora ela seja muito variável”, afirma Schor. A pesquisadora ressalta ainda que é preciso fazer uma distinção entre aqueles que vivem e dormem nas ruas e os albergados. Muitos destes últimos, por conseguirem preservar sua aparência, tendo melhores condições para manter sua higiene, por exemplo, possuem empregos: a maioria trabalha como vigia. Garçons, ajudantes de mecânico e de pedreiro e pintores também foram encontrados nos albergues, durante a pesquisa.

Trabalho e resistência

A prefeitura de São Paulo conta com uma rede oficial de coleta seletiva da qual fazem parte 15 cooperativas e cerca de 700 catadores de lixo. Segundo o Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) existem hoje, na cidade de São Paulo, 150 organizações voltadas para a coleta de lixo e que reúnem 20.000 pessoas. Mas essas cooperativas, associações e grupos mantêm uma relação complicada com a prefeitura porque querem preservar sua autonomia, administrando suas próprias organizações.

A autogestão, aliás, é a principal bandeira do MNCR, criado em 2001 e com representações em 23 estados brasileiros. Um dos princípios do movimento é a ação direta. “Nossa intenção é de que os catadores sejam os protagonistas da sua história, tanto no trabalho quanto na própria luta política, sem a mediação de terceiros. Somos independentes”, afirma David Amorim, membro da secretaria estadual e de comunicação do MNCR.

A luta pelos direitos dos catadores de materiais recicláveis é entendida pelo movimento como a luta pelos direitos sociais relativos à educação, moradia e saúde e também por direitos especificamente relacionados ao seu trabalho. Um desses direitos é o da autogestão através do controle da cadeia produtiva da reciclagem (a coleta de papelão, latinhas de alumínio e etc.; a reciclagem; e a venda), sem a intervenção de atravessadores em nenhuma etapa do processo. A luta do MNCR, portanto, é pela autonomia na gestão das cooperativas. E essa reivindicação por uma administração feita exclusivamente por catadores é o que, em geral, promove conflitos entre a categoria e as prefeituras municipais. Mas não só isso.

“Mesmo as cooperativas oficiais de materiais recicláveis enfrentam problemas. Por causa da chamada revitalização do centro de São Paulo, elas estão sendo expulsas para a periferia da cidade. Isso compromete todo o seu trabalho, já que as redes estabelecidas pelos catadores com os comerciantes do bairro, por exemplo, serão desfeitas”, alerta Amorim, que faz questão de ressaltar que além da falta de apoio da prefeitura – tanto da gestão atual quanto de todas as anteriores, sem distinção – ao trabalho das cooperativas autônomas, existe um problema ainda mais grave: a violência. “O poder público reprime duramente a atividade dos catadores. As agressões físicas e as apreensões das carroças são constantes”. No último dia 5 de junho houve uma audiência pública na Câmara Municipal de São Paulo para tratar dessa repressão.

Cultura da rua

Mesmo com toda a violência e repressão que tem que enfrentar, a condição de habitar as ruas oferece a possibilidade de um olhar único sobre a cidade. Algumas revistas vêm conferindo visibilidade a esse olhar singular dos moradores de rua, oferecendo também alternativas de geração de renda para essas pessoas.

Uma das iniciativas mundialmente mais bem-sucedidas são os chamados street papers, jornais e revistas elaborados e/ou vendidos por moradores de rua. No Brasil, as publicações mais conhecidas são a revista Ocas da Organização Civil de Ação Social, que circula na cidade de São Paulo e no Rio de Janeiro, e o jornal Boca de Rua, de Porto Alegre.

Esse último atua de modo diferente da maioria das publicações do gênero. Na medida em que são apenas vendidas por moradores de rua, poucas delas têm o seu conteúdo integralmente feito por eles, já que o objetivo principal desses jornais e revistas é a geração de renda. A proposta do Boca de Rua é conferir cidadania aos moradores de rua por meio de um projeto de comunicação. O tema de cada edição, as reportagens, fotografias e ilustrações são criados por eles, que escolheram o nome e o logotipo do jornal.

A partir de uma perspectiva que concebe a condição dos moradores de rua de modo mais complexo e abrangente, a experiência do Boca de Rua permite, assim, lembrar uma questão pouco debatida a respeito deles: a sua exclusão cultural.