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Perspectivas profissionais para o educador químico: identidades em desalinho
Por Nyuara Mesquita
10/05/2013

Os cursos de formação de professores em nível superior foram criados no Brasil na década de 30 do século passado. A demanda por esses profissionais surgiu em decorrência do processo de escolarização da população brasileira, atendendo às perspectivas de urbanização e industrialização do país. Nesse cenário de mudanças, a “Reforma Francisco Campos”, primeira reforma educacional no país, em 1931, deu um maior enfoque aos conteúdos de ciências, considerando-se um aumento, em termos de carga horária escolar, das disciplinas de conteúdo científico, pois até então, priorizavam-se as disciplinas de humanidades nos currículos do ensino.

A partir desse aspecto, surgiu a necessidade de profissionais da educação para ministrarem as disciplinas científicas. O primeiro curso de formação de professores de química foi oferecido pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP) e tinha como modelo de formação docente o conhecido “3+ 1”, em que o futuro professor cursava três anos de formação básica de conteúdos específicos da química e mais um ano de curso de didática. Importante salientar que, embora atualmente esse não seja o modelo de formação vigente, durante várias décadas, os institutos de formação de professores se pautaram na ideia de que há uma separação entre os conhecimentos científicos e pedagógicos; porém, as atuais perspectivas formativas consideram a interlocução entre esses saberes para uma formação mais atenta às reais necessidades dos estudantes.

Caminhando no percurso histórico da formação de professores de química no Brasil, é possível identificar elementos que apontam a dificuldade em suprir a demanda por esses profissionais. Em 1965, existiam no país apenas treze instituições que ofereciam o curso de química na modalidade de formação de professores. A implantação de cursos de química, considerando suas diversas habilitações (bacharelado, formação tecnológica ou licenciatura) envolve uma maior destinação de recursos, pois os laboratórios de química exigem equipamentos, vidrarias, reagentes, dentre outros materiais, que podem tornar mais onerosos os investimentos para criação dos cursos. Embora o número de cursos de química não fosse um fator de preocupação por parte das políticas educacionais nas décadas de 1960 e 1970, a demanda por professores de química emergia no mesmo período como consequência do aumento dos anos de escolarização na educação básica.

Dentre as muitas estratégias governamentais para tentar resolver os problemas que envolviam a carências de profissionais da educação destacam-se os Esquemas I e II e a proposta de substituição das licenciaturas plenas por licenciaturas curtas traduzidas na Resolução 30/74. Em relação aos Esquemas, a proposta se fundamentava na oferta de disciplinas pedagógicas para aqueles que já atuavam na docência sem terem formação específica para tal, a partir de uma complementação pedagógica. Apesar de ser uma proposta de cunho emergencial, é importante destacar que, em alguns estados das regiões Norte e Centro-Oeste, a formação por meio dos Esquemas perdurou até a década de 1990.

As licenciaturas curtas de ciências buscavam resolver o problema da formação de professores a partir da proposta formativa de um professor mais generalista que, em um período de tempo menor de curso superior, estaria habilitado a ministrar disciplinas como química e física para o segundo grau e ciências e matemática para o primeiro grau (nomenclaturas adotadas nas décadas de 1970 e 1980 para a atual educação básica). Apesar da pressão do governo federal para a implantação das licenciaturas curtas em todas as instituições de ensino superior no Brasil, a comunidade acadêmica defendeu as licenciaturas plenas e a Resolução 30/74 foi deixada de lado.

Esse traçado histórico busca apontar a despreocupação das políticas públicas em relação ao contexto da formação de professores em geral e, mais especificamente, à formação de educadores químicos. Essa inferência parte do princípio de que propostas de aligeiramento para os profissionais da docência sempre foram priorizadas em termos de orientações legais desde a década de 1930 até o início da década de 1990. A década de 1990 tornou-se um marco divisor de águas, pois a publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 (LDB 9394/96), que se constitui em meio a divergências e disputas de interesse, estabeleceu como requisito mínimo para atuação docente na educação básica a formação em curso de licenciatura plena em áreas específicas do saber.

Tal contexto representou um avanço no sentido de estabelecer legalmente um aspecto que delegou o exercício do magistério aos que compreendem esse exercício como profissão e não como “bico”. Essa afirmação se sustenta no fato de que profissionais como médicos, engenheiros, farmacêuticos, veterinários, dentre outros profissionais, faziam da sala de aula uma extensão de seus ambientes de trabalho partindo do pressuposto de que, para ensinar, bastava saber sobre alguns conteúdos. Importante salientar que essas situações ainda ocorrem devido à falta de professores licenciados para atuarem na educação básica. Ao pensarmos a docência como uma atividade que envolve condicionantes específicos sobre a compreensão de como o estudante aprende, como o docente ensina e dos métodos que articulam esse processo do aprender/ensinar, entendemos que apenas saber conteúdos não determina que um professor alcance resultados positivos na sua prática pedagógica.

É preciso aqui, abrir um parêntese para apresentar e justificar nosso posicionamento em relação aos saberes necessários ao efetivo exercício da docência. O saber de conteúdo é importante, mas precisa estar associado aos demais saberes considerados como conhecimentos basilares na formação e atuação do profissional da docência: saberes pedagógicos que são aqueles que possibilitam ao professor a compreensão e percepção sobre os caminhos estabelecidos pelos estudantes na construção das relações conceituais e os saberes curriculares, que são aqueles que dizem respeito às tessituras entre conteúdos, currículos e objetivos do ensino.

No caso da formação de profissionais da docência em química, a promulgação da LDB 9394/96, trouxe dois importantes avanços inerentes à situação de formação e atuação desse profissional. O primeiro deles refere-se à importância do contexto formativo específico, ou seja, legalmente, apenas o licenciado em química poderia exercer a atividade docente em salas de aula de ensino médio. Embora não seja o que realmente acontece atualmente, foi a primeira vez que se frisou essa especificidade em âmbito legal. O segundo avanço se constitui na geração da demanda por esses profissionais, o que desencadeou um processo de criação de cursos de licenciatura em química nas instituições de ensino superior (IES) em diversos estados do país.

O aumento do número de cursos pode ser exemplificado a partir dos Institutos Federais (IFs) que, em 2008, ofereciam cerca de quinze cursos de licenciatura em química em diversos estados da federação. Atualmente, já são mais de sessenta desses cursos. Não se pode deixar de comentar que, por lei, os institutos devem destinar 20% da sua dotação orçamentária para a criação de cursos de licenciatura e, como a demanda por profissionais da docência na área de química é significativa no país e os IFs se caracterizam como instituições de tradição tecnológica com larga experiência na área de ciências, a criação de licenciaturas em química se constituiu como uma prioridade para os institutos. Além da contribuição dos IFs no contexto da formação de professores, o Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) também contribuiu deveras com esse processo de possibilitar a criação de cursos de licenciatura em química, considerando-se que a proposta do Reuni se estruturou, dentre outros aspectos, na ideia de dobrar o número de cursos de licenciatura no país que, em 2002, eram 593 e, em 2012, passaram a 1198.

Um aspecto que salta aos olhos e que justifica a criação de cursos de licenciatura em química é o déficit de profissionais da área. Como exemplo, cita-se o caso do estado de Goiás que conta, atualmente, com dezenove cursos de licenciatura em química oferecidos por universidades públicas, entre instituições estaduais e federais, e particulares. Esse processo de expansão envolvendo as licenciaturas em química no estado é decorrente dos índices relacionados à atuação de educadores químicos em Goiás, pois apenas 14 % dos professores de química atuantes nas escolas de ensino médio possui formação em licenciatura em química.

Tais dados não surpreendem, pois desde 2002, as estatísticas do MEC/Inep já apontavam a alta demanda por professores de ciências, em nosso caso específico, professores de química. Nas referidas estatísticas, a demanda estimada era de cerca de 55.000 profissionais da área e a perspectiva era de que se formassem 25.000 desses profissionais até o ano de 2010. Ou seja, o problema da falta de professores licenciados em química no país ainda não seria resolvido. Como, de fato, não foi.

Ao alardearem os resultados negativos de nossos estudantes em programas avaliativos como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes ( Pisa), que considera, além das competências relacionadas à leitura e à matemática, os indicadores avaliativos sobre o conhecimento em ciências, as mídias, em geral, não relacionam esse chamado “fracasso escolar” à falta de professores habilitados na condução dos processos de ensino aprendizagem nas nossas escolas. Ao contrário, atribuem o fracasso dos estudantes ao fracasso dos professores. No entanto, um país em que advogados, músicos, pedagogos e outros profissionais assumem aulas de química não poderia apresentar bons resultados nas avaliações de seus alunos em relação às ciências. Nada contra, lógico, as categorias citadas, mas é claro e evidente que ensinar química exige conhecimentos e saberes pertinentes à formação de profissionais da educação química que não são objetivos de formação profissional de outros trabalhadores.

Outro aspecto que merece destaque na discussão que centraliza o presente texto – identidades em desalinho do profissional da docência em química – refere-se à falta de perspectivas em relação ao exercício dessa profissão. Há uma contradição entre as ações propostas pelas políticas educacionais, pois se de um lado observamos a realidade de aumento na oferta de cursos de licenciatura em química, por outro, as condições de trabalho na educação básica não se mostram promissoras para um professor recém-formado. Não são promissoras nem em termos estruturais, nem em termos salariais.

Ao falarmos em questões estruturais, não defendemos uma perspectiva de escolas com laboratórios de química de última geração, já que essa realidade não existe nem na maioria das nossas universidades públicas. O ensino de química pode, sim, ser organizado a partir de experimentos com materiais alternativos, a partir de uma abordagem dialógica, por meio de materiais que envolvem as tecnologias da informação e comunicação. No entanto, o ensino e, consequentemente, a aprendizagem de conceitos químicos em seus significados precisa também de um aparato estrutural mínimo, considerando-se que o conhecimento químico é simbólico e necessita estabelecer seus sentidos por meio de processos de representação de situações e fenômenos que, muitas vezes, não se constroem apenas por meio da fala e da escrita, embora sejam esses instrumentos necessários à sua apropriação. Dessa forma, ao se formar educador químico e ter em seu curso de formação inicial acesso a propostas metodológicas para exercer sua escolha laboral, esse professor vai para o mercado com a perspectiva de utilizar seus conhecimentos acadêmicos em consonância com sua prática docente. Porém, poucas são as escolas que atendem essa perspectiva.

Além da questão estrutural relacionada à prática da docência em química, há a questão da insatisfação geral com a estruturação dos próprios processos que gerenciam os sistemas de ensino tanto nas redes públicas quanto privadas. Problemas concernentes às avaliações que envolvem, em alguns casos, aprovações automáticas de estudantes, inserção de alunos inclusivos nas salas de aula sem as mínimas condições de trabalho e preparo para o docente, violência e desrespeito contra professores e não apenas a violência física, mas também a violência simbólica a partir da qual diversas formas de imposição estabelecem para os sujeitos da docência uma condição de dominados e exclui para estes, a consciência de sua privação de direitos.

Em relação às questões salariais, existem vários resultados de pesquisa que apontam que o profissional bem remunerado pelo serviço prestado desenvolve de maneira satisfatória suas atividades profissionais. Os educadores não fogem a essa regra e não há muito que se ponderar nesse sentido. Os professores no Brasil não são bem remunerados. Nem os de química, nem os outros. Incentivar a formação de professores e não remunerar bem a categoria mostra que o projeto educacional brasileiro ainda não atingiu sua maioridade e patina na contramão da necessária valorização de políticas que contemplem valores éticos, epistêmicos e sociais visando a melhoria da qualidade de vida dos sujeitos alunos, professores e cidadãos brasileiros.

Nyuara Mesquita é doutora em química e professora do Instituto de Química da Universidade Federal de Goiás, onde trabalha na área de formação de professores de química.