Imagem: Janine Ierullo
O ano de 1912 apenas começava quando um jovem alemão de 30 anos causou um rebuliço na Associação Geológica em Frankfurt. Em 6 de janeiro e diante de geólogos que defendiam que continentes terrestres eram imóveis, mas que podiam subir e descer nos oceanos, o jovem propôs que os continentes se moviam, mudando constantemente de posição. E mais, que todas as terras emersas um dia formaram um supercontinente, que chamou de Pangea. Estava criada uma grande polêmica científica: podiam os continentes se movimentar como navios? Inicialmente rejeitada e mesmo ridicularizada pelos cientistas da época, essa teoria foi confirmada na década de 1960, 30 anos após a morte de Alfred Wegener, o ousado defensor da deriva dos continentes.
Vários fatores contribuíram para a rejeição da teoria de Wegener. O primeiro deles é que ela foi construída para interpretar de forma coerente observações muito variadas e aparentemente sem qualquer relação entre si, com argumentos oriundos de diversas disciplinas (geodésia, geofísica e geologia, paleontologia, entre outras). Wegener desenvolvia pesquisas principalmente em meteorologia e ousou defender sua teoria mobilista em oposição às concepções dominantes na época. Ou seja, provocou polêmica e perturbou o desenvolvimento gradual e normal da ciência. Nenhuma ciência muda seus paradigmas de forma muito rápida. Afinal, a ciência e os cientistas tendem a defender firmemente suas posições e ideias, consolidadas por anos de estudos e trabalho. Outro aspecto que atiçou os ânimos na época é que Wegener era muito jovem para os padrões do começo do século 20: nenhum cientista era reconhecido como tal antes dos 40 anos de idade!
A rejeição à Teoria da Deriva Continental foi muito grande e, a rigor, não era injustificada. Wegener explicou fatos distintos por meio de uma ideia coerente, mas não conseguiu apontar forças ou mecanismos capazes de mover os continentes. Ele tinha conhecimento dessa deficiência e persistiu na busca de novos e melhores argumentos para a sua teoria. Mas morreu em 1930, sem conseguir provar que estava certo. Foram necessários mais de trinta anos para que as ideias de Wegener fossem reconhecidas.
A ciência avança com as controvérsias...
O estado e a dinâmica do núcleo da Terra só começaram a ser suficientemente bem compreendidos após a Segunda Guerra Mundial. Várias descobertas sobre o paleomagnetismo terrestre e no campo da oceanografia, feitas nos anos 1950 e 1960, mostraram que o fundo oceânico está em constante expansão. No final da década de 1960, foi proposta a Teoria da Tectônica de Placas, construída a partir de dois fenômenos geológicos distintos: a deriva continental e a expansão do fundo oceânico. Por essa teoria, a litosfera encontra-se fragmentada em várias placas tectônicas que se deslocam sobre a astenosfera, formada por rocha altamente viscosa, e se movem alguns centímetros por ano, de forma totalmente independente uma das outras. Atualmente, o movimento dos continentes, proposto por Wegener, é um consenso científico. A Teoria da Tectônica de Placas revolucionou as ciências da terra. Seu alcance tem sido comparado ao desenvolvimento da tabela periódica na química, à descoberta do código genético na biologia e à mecânica quântica na física.
Osvaldo Frota Pessoa Júnior, professor do Instituto de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), explica que uma controvérsia científica pode ser definida como uma disputa pública persistente, envolvendo argumentos epistêmicos, ou seja, argumentos considerados próprios do método científico, e fatores não epistêmicos, como emoções, traços de personalidade, pressões institucionais, influências políticas, rivalidades nacionais, eventos fortuitos e até fraude. Controvérsias científicas envolvem diferentes crenças ou opiniões, e são disputas apoiadas basicamente em fatos. Por outro lado, as controvérsias políticas, éticas e tecnológicas envolvem um conflito de diferentes atitudes ou propostas de ação, sendo disputas relativas a valores.
Pessoa Júnior esclarece que o encerramento de uma controvérsia pode se dar de cinco maneiras: (i) por correção – argumentos são dados ou uma evidência é encontrada, justificando cientificamente que um dos lados da disputa é “correto” e o outro “errado”; (ii) por consenso – a força de uma posição supera as outras, e um consenso é atingido, mesmo sem argumentos conclusivos (neste caso, a controvérsia pode ressurgir posteriormente); (iii) por procedimento – um procedimento formal é adotado para encerrar a controvérsia, por exemplo, por votação ou decisão governamental; (iv) por morte natural – a controvérsia irresoluta deixa de despertar interesse e é esquecida; e (v) por negociação – uma solução minimamente satisfatória para as partes é obtida, sem que uma posição predomine totalmente.
... que estão presentes em todas as ciências
As controvérsias são fundamentais para o desenvolvimento da ciência, em todos os campos do conhecimento. Como a ciência é feita por pessoas, e não por seres perfeitos e neutros, as marcas culturais, sociais e políticas interferem no que os cientistas fazem. As controvérsias também possuem uma temporalidade: o que é controvérsia num determinado momento histórico, deixa de ser controvérsia em outro.
Nas ciências biológicas uma controvérsia que persiste até hoje é a Teoria da Evolução, proposta por Charles Darwin em 1859, no livro Origem das Espécies. A Teoria da Evolução é considerada uma das teorias científicas mais bem sucedidas e aceitas nas ciências biológicas. Entretanto, ainda existem discussões em relação aos mecanismos responsáveis pelo processo evolutivo. Por exemplo, a taxa na qual se dá a evolução é motivo de debates. Também não há consenso se a unidade primária da mudança evolutiva é o organismo ou os genes.
E mais, Roberta Nocelli, professora da Universidade Federal de São Carlos, afirma que talvez a maior de todas as controvérsias que cercam a Teoria da Evolução seja a que coloca em campos antagônicos os evolucionistas e os criacionistas. Estes defendem que a humanidade, a vida, a Terra e o universo são criações de um agente sobrenatural. Doutora em ciências biológicas, Roberta aponta ainda a controvérsia que envolve biólogos e médicos sobre o uso de células-tronco: “não há consenso sobre em que momento se dá a geração de um ser vivo”. Nessas polêmicas estão envolvidos muitos fatores não epistêmicos que, para a bióloga, geram controvérsias de difícil solução.
Roberta desenvolve pesquisas sobre impactos das ações humanas sobre a dinâmica dos polinizadores e dos processos de polinização, especialmente de abelhas. Também nesse tema não existem consensos. “Existem grupos que questionam se as abelhas são essenciais como polinizadores e outros que não concordam que a população desses insetos esteja diminuindo de forma preocupante”, afirma a professora. Para ela, essas discussões poderão ser resolvidas com aprofundamento das pesquisas científicas sobre os mecanismos de ação de polinizadores e o déficit de polinização.
Uma das controvérsias mais marcantes da história da ciência envolve a origem do Universo, para a qual vários modelos já foram propostos. Um artigo de João Evangelista Steiner, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP, faz uma descrição desses modelos. Por meio deles, pode se perceber a evolução das ideias e que, ao longo de séculos, muitos embates foram marcados não apenas por fatos, mas também por crenças e valores. Por exemplo, durante 14 séculos acreditamos que a Terra era estática e que todos os demais astros giravam em torno dela. O homem era o centro de tudo. Nesse período, a Teoria Geocêntrica proposta por Ptolomeu dominou o mundo científico. Os planetas estariam fixados sobre esferas concêntricas de cristal, que girariam com velocidades diferentes, o que, julgava Ptolomeu, explicava as diferentes velocidades médias com que se moviam os diversos planetas. Mas era preciso explicar os movimentos retrógrados e as "aparentes paradas" dos planetas. Ptolomeu então elaborou um sistema bastante complicado, mas geometricamente plausível, que fazia com que o céu se enchesse de várias rodas gigantes com o passar do tempo. E mais, para coroar isso tudo, os teólogos medievais povoaram o céu com exércitos de anjos, querubins e outros entes, cada um responsável por um círculo feito por um planeta.
Derrubar a T teoria Geocêntrica implicava não apenas em explicar os movimentos dos planetas, mas tirar o homem do centro do sistema e colocar o Sol em seu lugar. Quem fez isso foi Nicolau Copérnico ao propor a Teoria do Heliocentrismo. Mas Copérnico era eclesiástico. Ele não só respeitava como temia as autoridades religiosas, para as quais a teoria de Ptolomeu era mais conveniente para a Igreja, pois confirmava as citações bíblicas. Assim, em 1530, Copérnico inicialmente apresentou suas ideias na forma de hipóteses e para um círculo de astrônomos. Somente dez anos depois autorizou sua publicação. A Teoria do Heliocentrismo foi sucessivamente aperfeiçoada por Giordano Bruno, ainda no século XVI, por Galileu Galilei, no século XVII, e posteriormente por Johannes Kepler e Isaac Newton, no século XIX.
As teorias em torno do átomo também foram motivo de muitas controvérsias, particularmente nos séculos XVIII e XIX. Um artigo publicado na revista Química Nova, em 1997, por Francisco Caruso do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e Vitor Oguri, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), traça um interessante painel sobre a evolução da compreensão da constituição da matéria, ressaltando a diferença entre o átomo filosófico, produto do pensamento grego clássico, e o átomo científico, que teve origem na química moderna.
A ciência integra cada vez mais a cultura contemporânea e, às vezes, é tratada com um mito de eficiência e neutralidade, contra a qual ninguém pode se insurgir. Mas muitas vezes, as controvérsias chegam aos não cientistas de uma maneira singular. Luzia Matos Mota, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA), desenvolveu uma pesquisa em sua dissertação de mestrado sobre a abordagem das controvérsias científicas, em especial da mecânica quântica na formação de licenciados em física da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mota, que também é licenciada em física, constatou que as controvérsias que cercam a interpretação da mecânica quântica não são abordadas nem em discussões em sala de aula, nem em livros usados na formação de licenciados. Por outro lado, a mecânica quântica é explorada pela indústria cultural em revistas especializadas, em livros, em músicas, em séries televisivas. Quem assiste a série Big Bang Theory, por exemplo, certamente já se divertiu com as explicações que Sheldon dá a Penny do "problema do gato de Schrödinger” mesmo sem saber que se trata de uma controvérsia surgida em 1935 e que até hoje ainda é motivo de discussão. Ou seja, “as informações atingem a sociedade”, afirma Mota, que concluiu em 2013 seu doutorado em difusão do conhecimento da UFBA. Segundo ela, “as informações que chegam por meio de revistas e jornais especializados em divulgação científica, ou por qualquer outro meio capaz de tratar coerentemente os resultados da física moderna, são geralmente de difícil compreensão, até por conta da pouca familiaridade da maioria das pessoas com o tema”. E acrescenta: “servem muito mais para alimentar o mito escolar de que física é coisa para gênios do que para esclarecer a que se propõem”.
Separando o joio do trigo
“Controvérsias sempre fizeram parte da ciência. Elas são essenciais para a formação, o desenvolvimento e a avaliação de teorias e de métodos, bem como para a interpretação de dados. Alguns autores chegam mesmo a afirmar que a ciência é uma sucessão ininterrupta de controvérsias que persistem ou são reformuladas. Mas controvérsias não devem ser confundidas com disputas e farsas. As disputas muitas vezes são movidas por vaidades exacerbadas ou por interesses. Uma disputa quando levada ao extremo pode levar um ou mais protagonistas à construção de argumentos e dados falsos que caracterizam uma farsa”. Quem afirma isso é Pessoa Júnior, físico e filósofo, que estuda, entre outros temas, modelos causais na história da ciência.
Segundo ele, uma controvérsia científica é um grande debate acalorado, que envolve uma parcela significativa da comunidade, e que inclui fatores não epistêmicos: “Se não tiver calor, emoção, agressão, não é uma controvérsia, é um mero debate”. Pessoa Júnior cita como exemplo a discussão entre Bohr e Einstein que começou como um debate, entre 1928 e 1935. “Com o passar das décadas o debate tornou-se acalorado, e passou-se a falar em controvérsia dos quanta", explica Pessoa Júnior.
Mas às vezes controvérsias são confundidas com rixas, farsas e mesmo com pseudociência. A rixa envolve fatores não epistêmicos, ou seja, competição pessoal, ataques etc. Pessoa Júnior afirma que a rixa é algo bem menor do que uma controvérsia, sendo tipicamente uma competição agressiva entre indivíduos ou laboratórios. Ou seja, não envolve uma parcela significativa da comunidade e é muito mais fruto de vaidades exacerbadas e disputas de poder do que um embate real de ideias. A farsa é um ato de um indivíduo, ou de um pequeno grupo, de violação intencional das regras do método científico, geralmente para obter vantagens pessoais, ou financeiras, ou de prestígio. Pessoa Júnior aponta como exemplo a atitude de Robert Gallo ao usar indevidamente amostras de vírus da AIDS enviadas a ele por Luc Montaigner.
Algumas controvérsias envolvem visões tão distintas do mundo que nos cerca que o grupo dominante considera a posição contrária pseudociência. Marcelo Knobel aponta, em artigo publicado na revista Física na Escola, que a pseudociência tem esse nome porque tenta mimetizar uma aparência de ciência, incluindo uma linguagem mais complexa, com afirmações veementes de que os resultados são “comprovados cientificamente”, ou abalizados por “estudos aprofundados”. Pessoa Júnior pondera que a pseudociência constitui uma controvérsia entre uma maioria de cientistas ortodoxos ou estabelecidos e uma minoria de cientistas e outras pessoas que compartilham uma visão de mundo "espiritualista" ou mesmo "mística", segundo a qual as capacidades mentais dos seres humanos extrapolam aquelas reconhecidas pelo primeiro grupo. “É uma grande controvérsia, em que o primeiro grupo tem melhores argumentos, mas o segundo tem apoio grande da população de não cientistas e da maior parte da mídia”, assinala o professor Pessoa Júnior. Porém, segundo ele, chamar um experimento, ou um resultado, de pseudociência é semelhante a chamá-lo de farsa: “a diferença é que um resultado pseudocientífico pode não ser fruto de uma farsa intencional, mas pode ter sido um resultado obtido de maneira honesta, com violação não intencional do método científico, ou mesmo sem violação do método científico mas, segundo os críticos, com alguma falha operacional”.
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